Entre os poucos consensos possíveis está a certeza de que nada permanecerá como antes
Publicado em 29/05/2020
A pauta de desafios do ensino superior brasileiro já era suficientemente longa e complexa, no início de 2020: financiamento estudantil, desentraves regulatórios, avaliação, tendências de inovação… De repente, um vírus pouco conhecido e inesperado veio promover o maior tsunami já vivido pelas IES. É verdade, não foi uma questão setorial. Em meses, o planeta literalmente virou de cabeça para baixo. Mas é justamente nas horas de maior incerteza que todos voltam seus olhos para a educação. Se todos já sabem que nada permanecerá como antes, vai ser no ensino que o chamado “novo normal” se fará sentir com mais força. O que será das faculdades e universidades?
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Uma ordem complexa de problemas se instalou. Não há como pensar no presente sem falar no futuro; não há como chegar ao futuro sem sobreviver ao presente. “Um colapso dessa magnitude tem muito a nos ensinar. Os desafios do setor educacional são imensos e a inovação há muito já se apresentava como o caminho a ser trilhado”, antevê Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedores do Ensino Superior (ABMES).
Sim, o futuro passa pelo mundo virtual e por novos modelos de educação. Mas, em primeiro lugar, é preciso lidar com a ordem do dia, uma vez que a Covid-19 não mata apenas pessoas, mas asfixia economias inteiras. Prédios fechados, risco de inadimplência e evasão, pressão por descontos – tudo isso pôs em xeque um modelo de negócio preso a despesas elevadas já contratadas (principalmente em recursos humanos), dependente de uma única fonte de receita (as mensalidades), com capital imobilizado e, principalmente, com os dias contados diante do avanço da tecnologia e das novas demandas sociais.
Já no primeiro mês de distanciamento social, uma pesquisa do Instituto Semesp apontava elevação de 7% da inadimplência e 11,5% na taxa de evasão sobre o ano anterior. “Mas só teremos uma visão mais clara a partir de maio”, disse Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, no lançamento do estudo Como está o cenário econômico de sua IES durante a pandemia?
As instituições privadas de ensino superior já lidavam, então, com pressões de curto e médio prazos, nos campos jurídico e econômico. O risco mais imediato vem de iniciativas parlamentares em vários estados e no Distrito Federal, além de um projeto no Senado Federal, que estabelecem descontos lineares nas mensalidades, de 10% a até 50%.
O argumento comum entre elas é a necessidade de aliviar as despesas das famílias, que tendem a enfrentar o aumento do desemprego e a queda de renda. “Ao propor a redução das mensalidades, a proposta busca também evitar a inadimplência e manter as matrículas”, defende o senador Rogério Carvalho (PT-SE), cujo projeto prevê um corte de 30% nos valores cobrados pelas faculdades e universidades particulares. “Independentemente do que for aprovado, essa é uma realidade que vai se impor. As instituições que quiserem manter seus alunos vão ter de adotar medidas nesse sentido”, acrescenta.
Para além da necessidade de negociações entre alunos e escolas, a redução linear de mensalidades, por conta da suspensão das aulas presenciais, não tem fundamento jurídico, segundo nota publicada pela Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça. Um estudo realizado pelo órgão argumenta, entre outros aspectos, que a carga horária, em algum momento, será reposta ou, então, “serão necessários novos investimentos tecnológicos em função da disponibilização das aulas na modalidade a distância”.
O Procon-SP, por sua vez, recomendou que se busque construir soluções negociadas, incluindo aulas em modalidades alternativas, com qualidade equivalente, a modificação do calendário escolar para possibilitar o cumprimento da carga horária e a ampliação dos canais de comunicação. “A ideia é manter a mesma situação existente antes do coronavírus. Ninguém levando vantagem em cima de ninguém. Terminada a situação, restabelece-se a normalidade”, afirma Fernando Capez, ex-diretor-geral do órgão, que atualmente está à frente da Secretaria Especial de Defesa do Consumidor, criada por conta da Covid-19 para funcionar até agosto.
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A realidade que se configura com nitidez crescente é o aumento do desemprego e a queda generalizada da renda. As projeções para o futuro que desponta no horizonte preocupam. Em levantamento realizado pelo Google, no final de abril, 70% dos internautas ouvidos afirmaram que sofreram redução de renda – e, para 45%, a queda foi significativa. Cerca de 40% das pessoas passaram a ter de compartilhar sua renda com outras pessoas e, como reflexo, metade dos respondentes reduziram o consumo do que consideram itens supérfluos.
Em outras palavras, muitos jovens perderam o emprego logo no início da crise, ou precisaram abrir mão de parte dos ganhos para manter seus trabalhos. “Inevitavelmente, todos ficaremos um pouco mais pobres”, afirma o economista Luiz Alfredo Santos, doutor pela Universidade Complutense de Madrid, que vem acompanhando de perto o movimento das universidades no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos.
As projeções
de queda do Produto Interno Bruto (PIB) para este ano ainda variam bastante,
diante das incertezas da epidemia de Covid-19 e do tempo de duração das
quarentenas determinadas pelos governos estaduais e prefeituras. O Instituto
Semesp desenhou três cenários para o desemprego. “O país, que já estava
enfrentando um cenário complicado em relação ao número de desempregados nos
últimos anos, deve atingir uma taxa de desocupação de 14,9% em 2020, o que
significa cerca de 15,8 milhões de pessoas em idade ativa desempregadas. Mesmo
em um cenário otimista, esse percentual deve chegar a 13,7% (ou 14,5 milhões de
desempregados).
Já no cenário pessimista, a taxa de desocupação pode ficar em 17,1%, com mais
de 18,3 milhões de pessoas desempregadas”, prevê o Instituto.
Dentro da elevação geral do desemprego está a crise dos que frequentam a universidade. Um levantamento da startup Quero Educação no início de abril mostrou que as medidas da quarentena levaram ao desemprego cerca de 29% dos estudantes de universidades privadas no Brasil. A pesquisa ouviu quase 4,5 mil alunos. Da amostra, 43% indicaram como baixa a probabilidade de conseguir manter mensalidades em dia e outros 36% apontaram elevada a chance de evasão. No mesmo estudo, 51% dos candidatos ouvidos pensam em deixar para o ano que vem o sonho de cursar o ensino superior.
O Banco Santander, por exemplo, prevê que o tombo no PIB pode ficar entre 2% e 6%. O economista Santos chama atenção para uma discussão importante sobre o chamado período de pós-pandemia. Diferentemente do que acredita o ministro Paulo Guedes, Santos não enxerga um comportamento em V da economia, ou seja, com uma queda brusca e uma retomada igualmente rápida. O mais provável, na visão dele, é um comportamento em U, ou seja, com uma depressão mais longa. “Resta saber o tamanho do vale”, destaca.
Para o ensino superior, muito sensível ao andamento global da economia, não são boas notícias. As primeiras estimativas do Instituto Semesp, em abril, eram de uma inadimplência média que pode variar de 10,1% a 11,2%. A evasão pode ficar entre 32,4% e 34,4%. Mas, em um cenário tão imprevisível, qualquer projeção precisa ser atualizada constantemente. As IES já se movimentavam em abril, pois não há tempo a perder.
Tão logo esse cenário começou a se desenhar, faculdades e universidades começaram a agir. O Eniac, em Guarulhos, definiu três linhas de ação. O primeiro, claro, foi dar suporte tecnológico aos professores para ministrarem aulas remotas. Mas foi muito importante a ação direta com o aluno. “Centralizamos o atendimento e colocamos as principais lideranças na linha de frente para conversar por videoconferência ou telefone com os alunos, tanto os que nos procuram como aqueles que estão perdendo aderência”, relata o diretor Ruy Guérios.
O Eniac também intensificou a atuação na comunidade, com projetos maker na área de saúde para a produção de máscaras de acetato, cubas de acrílico usadas em entubação e na fabricação de peças de reposição de respiradores. As aulas on-line do Colégio e da Faculdade foram abertas gratuitamente para a comunidade. “Hoje estamos com mais de 3 mil alunos das escolas estaduais e da comunidade estudando conosco virtualmente”, conta Ruy Guérios.
Por fim, a instituição, com seus ex-alunos, preparou certificações e formações em tecnologia para colocar no mercado alunos de baixa renda que vão pagar as suas mensalidades apenas após estarem empregados nas empresas de ex-alunos e outras que estão aderindo a essa rede. “Temos que humanizar nossa relação e conseguir ajudá-los a se manter estudando, postergando parte dos pagamentos para depois da crise, prestando auxílio na sua carreira, ajudando o aluno e sua família para passar por este momento de crise estudando, se fortalecendo profissionalmente”, explica. “O foco agora é o de preservarmos nossa instituição, alunos, professores e técnicos administrativos, ajudando a comunidade a superar a crise. Depois, passaremos à fase de reconstrução”, ensina Guérios, com a experiência de quem passou por muitas crises.
Em Araras, o Centro Universitário da Fundação Hermínio Ometto (FHO) também rapidamente mobilizou esforços para lançar um Programa de Apoio Emergencial aos Alunos (PAE), para atender aqueles mais atingidos pelos efeitos da pandemia. O programa permite a postergação dos pagamentos de três mensalidades para pagamento após o término do curso, com possibilidade de renovação. Para ter direito, o aluno se cadastra no site da Instituição e uma Comissão analisa as solicitações e delibera rapidamente. “Acreditamos que os recursos limitados de que as IES dispõem devem ser direcionados para aqueles que realmente precisam, numa análise caso a caso”, explica o reitor José Antônio Mendes.
A FHO já tem uma expertise anterior de apoio ao aluno. Com jovens que têm de gastar em deslocamento a partir das cidades vizinhas, há mais de 10 anos a instituição criou dois programas próprios – um para oferta de bolsas de estudos e outro para concessão de crédito estudantil. “Esta experiência está sendo muito útil na atual situação”, diz o reitor.
E o futuro virá
No encontro difícil de expectativas entre saúde e economia, globalmente o mundo começava a se movimentar, no final de abril, para planejar a retomada gradual das atividades. No cenário mais provável, as aulas recomeçam em agosto, e poucos acreditam que tudo será como antes. “A crise veio agitar a percepção das transformações em curso. Só para citar um exemplo, a grande resistência em relação à utilização de tecnologias no processo de ensino e aprendizagem, por vezes calcada em preconcepções, terá de ser revista. Iremos numa direção de processos mais flexíveis, modernos e com o aluno ainda mais no foco do processo, sempre permeado pela utilização de tecnologias”, acredita Niskier, da ABMES.
Para os especialistas do setor, as mudanças acontecerão em pelo menos três planos distintos. Em primeiro lugar está a difusão do uso dos meios digitais na educação a distância, agora incorporado à rotina de professores e alunos. Para o presidente do Semesp, Hermes Figueiredo, a resposta inicial das IES foi rápida e eficiente. “Fiquei extremamente contente com as ações para que os alunos não tivessem perdas significativas. O segmento respondeu, principalmente as instituições de médio porte para cima. As menores tiveram impacto maior, por não conseguir fazer a mudança tão rapidamente, mas estão resolvendo. Fizemos lição de casa. Cada um se mexeu”, diz Figueiredo.
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Mas, a transição tão veloz para o mundo da educação virtual também deve gerar reação em cadeia na direção de novas didáticas. O uso da tecnologia vai exigir práticas pedagógicas mais atuais, como as chamadas metodologias ativas de aprendizagem – em que o aluno é o protagonista, com mais independência e autonomia. “Há um colapso da aula tradicional, precisamos criar estratégias para ensinar os alunos a buscarem o seu caminho. Promover a pesquisa-ação, trabalho em equipe, novas formas de avaliação”, sugere Mozart Neves Ramos, do Conselho Nacional de Educação. “Não tenho dúvida de que a aula não pode mais ser a mesma”, conclui.
A mudança pedagógica será possivelmente acompanhada por mudanças no consumo de informação e conhecimento pelos jovens. “Os alunos não serão como antes, pois já sentiram o gostinho do EAD e vão querer mais aulas fora da sala de aula tradicional”, aposta o empresário Antônio Carbonari Netto, fundador da Faculdade Anhanguera, hoje nos Estados Unidos. Para ele, a consequência disso vai chegar ao próprio modelo das instituições de ensino superior. “Vamos passar de um modelo de ensino, com professores ministradores de aula, para o de aprendizagem com mais tutores, desenvolvedores, incentivadores”, defende.
Para Carbonari, com menos aulas presenciais, os cursos de ensino superior poderão ter orçamentos mais enxutos e maiores ganhos de escala. Mas, ressalva, isso vale para os que já construíram uma base pedagógica e tecnológica para a Educação a Distância. Para os que não possuem capacidade instalada nem recursos para investir, o empreendedor recomenda a busca de novos modelos de negócio, também, como a contratação de provedores de conteúdo e a formação de consórcios entre pequenas faculdades e grandes instituições.
Outra consequência da nova cultura pedagógica nascente está na dissolução das fronteiras entre cursos presenciais ou por EAD. O futuro verá, provavelmente, uma desregulamentação que torne equivalente o trabalho pedagógico entre o virtual e o físico. “O conceito de modalidade precisa acabar. Curso superior é curso superior e pronto”, defende Carbonari. Ele prevê que o próprio formato do bacharelado deve entrar rapidamente em discussão, para que possa responder de forma mais ágil às demandas da sociedade contemporânea. “Temos que entender que as coisas estão mudando e que precisamos ser rápidos. Uma coisa é atualizar o tradicional, só tirar o pó da escrivaninha. Outra é romper com modelos existentes”, enfatiza.
Para Figueiredo, a pandemia precipitou tendências que estavam no ar. “Já caminhávamos para isso, sem dicotomia entre distância e presencial, mas um curso superior ofertado de muitas maneiras, ora visitas técnicas, estágios, aulas virtuais, presenciais”, lembra. Ele vê, por exemplo, a maior compreensão da eficácia do EAD por parte das empresas e também do aluno. “O preconceito estava diminuindo. Com a mudança, com pouca reação negativa, os alunos tomaram contato com algo que vai lhes despertar ainda mais o desejo. Vamos para o ensino híbrido”, acredita. “Os dados sugerem que a diminuição dos cursos noturnos se relacionava já à migração para o on-line”, exemplifica Capelato.
Por fim, o esforço de construção de novos caminhos vai deixar também a lição da formação de redes. “As pequenas e médias vão ter que trabalhar em rede, as universidades vão precisar se unir. Não há outro jeito”, acredita Mozart Neves Ramos. Um entusiasta da formação de redes entre municípios, Ramos aprendeu que não basta querer, é preciso saber como construir pontes sólidas. “Para constituir rede vai precisar identificar quais são os parceiros estratégicos. A força da rede é proporcional ao seu ponto mais fraco”, diz. Além disso, diz o educador, é preciso que o papel de cada elo da corrente esteja bem definido, bem como sua responsabilidade. Por fim, Ramos ressalta o peso da liderança, que precisa ter horizontalidade, e da boa comunicação entre os integrantes. “O importante é estar juntos para resolver problemas que são comuns. Inovação é caro. Para se tornar competitivo, somente vejo saída por meio do trabalho em consórcio”, aposta Ramos.
“As instituições de ensino superior que vão sobreviver são aquelas que atuam com inovação e que estão se fortalecendo constituindo redes de cooperação”, concorda Guérios, do Eniac. Para ele, o Semesp já é uma excelente referência nesse sentido, com mais de 11 redes de cooperação regionais e nacionais em funcionamento. Se as incertezas podem assustar, os tempos de pandemia trazem consigo também o fortalecimento da importância da ciência e do conhecimento – única saída para a crise. Por isso, é consenso que a educação é a ação humana mais importante para a construção do futuro, e isso está presente também nas projeções sobre o perfil de consumo pós-crise.
Com a queda de renda, as pessoas também tendem a passar por mudanças importantes de comportamento, que afetam as decisões de consumo e podem ter impacto na relação que elas estabelecem com as instituições de ensino.
“O mais provável é o surgimento de um novo normal econômico, baseado em segurança financeira, na busca de custos mais baixos, mais restrito às fronteiras nacionais, por exemplo”, comenta o economista Santos. Pesquisa pela TWF/Competence e pela Sunbrand, que ouviu mil pessoas no início de abril, indica que a internet tende a assumir um papel central na vida de todos, “como um grande ambiente com diferentes frentes de solução, a representação máxima da conveniência”.
Os bens e serviços considerados essenciais devem se tornar mais centrais no orçamento das pessoas. Alimentação será o gasto prioritário para 74,2% dos entrevistados e, em seguida, aparecem Saúde (43%) e Educação (26,3%). Só depois aparecem os bens duráveis, as viagens e o entretenimento, com cerca de 17% cada um. E, na hora de enfrentar a crise, apenas 15,2% apontam a Educação como foco de possível economia de recursos.
Portanto, é hora de navegar por mares novos, como os de Vasco da Gama cantados por Camões, aqueles nunca dantes navegados. Se a Educação foi, historicamente, a instituição responsável por preservar o patrimônio civilizatório da cultura e do conhecimento, agora dela se espera também um papel ainda mais importante: é tempo de inventar o futuro.
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