NOTÍCIA
Por que o modelo australiano de educação vocacional deveria servir de inspiração para o Brasil e como ele poderia contribuir com o avanço das carreiras técnicas
Publicado em 20/04/2019
No Brasil, 31% dos jovens de 15 a 19 anos estão fora da escola e, entre os que estão na faixa dos 20 a 24 anos, esse percentual chega aos incríveis 71%. Na média dos países da OCDE, organização internacional que reúne 36 países, dentre eles as nações mais ricas do mundo, essas taxas são de 15% e 58%, respectivamente.
Não por acaso, mais da metade dos adultos brasileiros (25 a 64 anos) não têm o ensino médio completo, taxa bem acima de alguns países da América Latina. O ensino técnico seria uma saída para resolver o problema da baixa atratividade dessa etapa escolar, visto sua forte conexão com o mercado de trabalho. Porém, apenas 9% dos estudantes de ensino médio frequentam a modalidade, contra 44% nos países da OCDE.
Como a Austrália desenvolveu um dos melhores sistemas de ensino do mundo
Os alunos querem montar a própria grade curricular. Como viabilizar isso no ensino superior?
Uma das razões dessa baixa adesão é a falta de reconhecimento dos cursos profissionalizantes. Em geral, prevalece a percepção de que eles precisam ser complementados com uma graduação por se tratar de algo “menor”, enquanto em países como a Alemanha eles são tratados como uma alternativa ao ensino superior. A falta dessa perspectiva deixa muitos jovens pelo caminho: eles não concluem nem o ensino médio convencional (por falta de motivação) nem o ensino técnico (por não enxergar valor na formação).
A graduação tecnológica sofre de um mal parecido, pois também enfrenta dificuldades para conquistar o público, principalmente os empregadores. Uma pesquisa encomendada pelo Semesp revelou que algumas agências de recrutamento sequer sabem que se trata de um curso de nível superior. Problemas na legislação também impedem que os programas sigam as tendências do mercado, dificultando que eles cumpram a função para a qual foram designados: prover educação profissionalizante em áreas técnicas.
Diante desse quadro, o modelo australiano de educação vocacional se apresenta como uma referência importante para o Brasil, especialmente nesse momento em que se discute as reformas que precisam ser feitas no sistema educacional brasileiro.
O documento Diretrizes de Política Pública para o Ensino Superior Brasileiro, elaborado de maneira coletiva por um grupo de acadêmicos e profissionais das mais diversas áreas a partir da iniciativa do Semesp, ganhou, inclusive, um capítulo sobre educação vocacional baseado na experiência do país australiano.
Seus autores defendem que a adoção desse modelo no Brasil poderá beneficiar “um expressivo contingente de trabalhadores, formando-os com as habilidades exigidas pela economia moderna e oferecendo-lhes um treinamento prático de alta qualidade associado com o conhecimento especializado voltado para carreiras acadêmicas”.
O material vem sendo usado como ponto de partida para uma série de discussões, no Brasil e no exterior, sobre a criação de políticas de Estado para o ensino superior em substituição às politicas de governo. Recentemente, ele serviu para pautar um debate realizado na sede do Semesp com representantes dos candidatos à Presidência da República.
A Educação Técnica e Profissional (ou Vocational Education and Training – VET), da Austrália, chama a atenção por ser uma trilha de aprendizagem que se conecta tanto com a educação básica quanto com o ensino superior, permitindo que o aluno migre de uma modalidade para outra. De acordo com Cristina Elsner, gerente de Educação e Ciências do Departamento de Educação e Ciência da Austrália, o VET é a junção do ensino técnico com a educação tecnológica.
Enquanto está matriculado no ensino médio, o aluno pode cursar paralelamente programas que duram de seis meses a um ano para obter titulações que o habilitem a trabalhar. Cada título indica um nível de conhecimentos e habilidades, sendo o último deles um diploma avançado de nível superior.
Quando chega ao último nível do VET, o aluno pode continuar sua formação com um programa de bacharelado e até com uma pós-graduação, dependendo da carreira. O inverso também pode ocorrer: o aluno do curso de bacharelado migrar para o VET (veja o diagrama).
Há ainda a possibilidade de profissionais graduados e pós-graduados ingressarem no VET para se atualizar ou aprender uma nova qualificação. Os conhecimentos e habilidades já adquiridos são testados e validados, de modo que o aluno tem a possibilidade de avançar rapidamente no programa. Nesse estágio, a atuação do VET é semelhante à de um programa de MBA no Brasil, compara Cristina.
Craig Robertson, presidente da TAFE, uma das entidades provedoras do VET, explica que esse intercâmbio é possível porque a Austrália adotou em 1995 uma matriz nacional de qualificação (Australian Qualifications Framework – AQF) que vale tanto para todos os níveis vocacionais. Essa matriz contempla 10 níveis de qualificação e cada uma delas descreve o que os alunos devem conquistar em termos de conhecimentos e habilidades. O setor da educação superior concede certificações e diplomas do nível 5 ao 10, enquanto as certificações do VET são oferecidas nos níveis de 1 a 6 e no nível 8. Tal como em um sistema de créditos, os alunos vão evoluindo nessa matriz conforme estudam e trabalham.
Um dado bastante enfatizado pelo Departamento de Educação e Ciência da Austrália é a participação do setor industrial na elaboração dessa matriz, o que a torna aplicável a 85% das ocupações da Austrália. “Os governos fornecem financiamento, desenvolvem políticas e determinam as regulamentações e o controle de qualidade do setor. Os comitês industriais e de empregadores contribuem para a definição de políticas e prioridades para a capacitação, como também para o desenvolvimento de competências necessárias pelo mercado de trabalho”, informa o departamento australiano no documento Perfis Educacionais do País – Austrália.
Cristina Elsner afirma que os comitês industriais e de empregadores se reúnem frequentemente para atualizar a matriz e que ela serve de parâmetro em todo o território australiano. Nada impede, contudo, algumas adaptações. De acordo com a executiva, as instituições têm de seguir macrodiretrizes para não perder a articulação com o mercado, mas há também flexibilidade para inovar ou customizar o currículo. Atualmente, o VET é ofertado por instituições educacionais (públicas e privadas), incluindo universidades, organizações de capacitação e empresas.
Na opinião de Robertson, essa forte conexão com o setor produtivo torna o VET vantajoso para todos os envolvidos. Para os indivíduos, ele melhora o acesso ao mercado de trabalho e permite a prática do conceito de lifelong learning. Os profissionais podem se qualificar continuamente e se manter atualizados às necessidades contemporâneas. “Eles podem, inclusive, mudar de carreira”, fala.
Para os empregadores, o VET propicia a formação de profissionais mais qualificados, inclusive em áreas emergentes. Por fim, o país também se torna mais produtivo e menos defasado em termos científicos, tecnológicos e intelectuais. Segundo Robertson, “o VET ajudou a Austrália a superar momentos econômicos difíceis”, lembrando que a reformulação do sistema educacional, iniciada em 1970, ajudou o país a migrar de uma economia manufatureira para uma economia de serviços.
O VET tem ainda mais uma característica interessante, que é a validação de conhecimentos adquiridos fora do sistema educacional. Dessa forma, uma pessoa que tenha aprendido sua profissão na prática pode fazer um exame e obter um certificado que a habilite tanto a continuar estudando como a avançar na carreira. Isso explica o alto número de matrículas no VET. Segundo Cristina, um em cada quatro australianos faz cursos de educação técnica e profissional e 34% da população economicamente ativa possui algum tipo de certificação técnica ou profissionalizante. Estima-se que 42% dos estudantes possuem de 25 a 44 anos e mais da metade deles estão inseridos no mercado de trabalho. No total, em 2017 foram registrados 4.542.600 matrículas no VET.
De acordo com Rodrigo Capelato, diretor executivo do Semesp, a implantação de uma estrutura similar ao VET no Brasil permitiria ao país responder a diferentes demandas da sociedade, tais como: reconhecer o conhecimento empírico de profissionais que já trabalham; prover atualização profissional permanente; capacitar a população para as profissões do futuro; aumentar o acesso ao ensino superior; e fortalecer as carreiras técnicas e vocacionais.
O texto do documento Diretrizes de Política Pública para o Ensino Superior Brasileiro menciona que, para viabilizar essa política, seria necessário criar um organismo específico, diferente daquele que gerencia o ensino técnico, para estabelecer uma matriz nacional de qualificação, tal como existe na Austrália, e para credenciar as organizações que avaliariam as instituições provedoras da modalidade.
Estas instituições autorizadas a emitir os certificados seriam avaliadas periodicamente para comprovar que os padrões definidos estão sendo devidamente implementados e, sobretudo, para garantir a articulação com os setores produtivos e empresariais e a empregabilidade dos egressos.
Cristina Elsner, do Departamento de Educação e Ciência da Austrália, acredita que a implantação do modelo VET no Brasil é factível, mas cabe ao governo fazer a aposta. “É preciso uma decisão política para viabilizá-lo”, aponta. Em sua visão, o Sistema S, que reúne entidades privadas, entre elas o Senai e o Senac, é o que mais se aproxima do VET. Como estão ligadas aos setores produtivos, principalmente às industriais, algumas dessas entidades conseguem formar profissionais com competências específicas. Porém, não há articulação com o MEC e tampouco há padrões nacionais. Em cada estado vigora um conjunto de referências, comenta Cristina.
Para superar isso e fazer dos casos bem-sucedidos um projeto nacional, o primeiro passo é reconhecer a necessidade de mudar. “Tem de ter visão para reconhecer que o modelo pode contribuir para aumentar a inserção da população no mercado de trabalho, modernizar o setor público, elevar a renda per capita da população, entre outros ganhos”, aponta.