NOTÍCIA
Especialista no tema da quarta revolução industrial, Thomas Philbeck afirma que é possível moldar a direção das mudanças e assegurar o protagonismo aos seres humanos. Para isso, basta estabelecer regras
Publicado em 18/07/2018
Apesar de o conceito da indústria 4.0 ter emergido em 2011, foi somente em 2016, com a publicação do livro A quarta revolução industrial, que o novo paradigma socioeconômico global se popularizou. Escrito por Klaus Schwab, economista alemão idealizador do Fórum Econômico Mundial (FEM) de Davos, a obra detalha a velocidade, o alcance e o impacto das novas tecnologias de informação, como internet das coisas, computação em nuvem, Big Data e inteligência artificial.
Entre todos os impactos, o que mais provoca discussões é o extermínio de milhões de postos de trabalho, algo que está acontecendo nas nações mais desenvolvidas, onde a automatização de funções já é uma realidade. O cenário, contudo, não é tão sombrio quanto parece. Em entrevista exclusiva à Ensino Superior, Thomas Philbeck, diretor da área de estudos científicos e tecnológicos do FEM, afirma que “quando empregos estão em risco, é importante saber onde e como as tecnologias serão usadas, e como interagir com elas. Não devemos apenas reagir às mudanças; podemos moldar a direção dos avanços”.
Moldar não quer dizer contê-las. Portanto, os governos e os sistemas educacionais precisam de flexibilidade para adaptar seus programas de formação à nova realidade, acrescenta o executivo, que em setembro virá ao Brasil participar da 20ª edição do Fnesp, realizado pelo Semesp em São Paulo. Ele também afirma que os setores público e privado têm de se mobilizar para pensar em novos currículos e estruturar um sistema de ensino continuado, para a vida toda, uma vez que a “educação formal não é mais capaz de ensinar tudo o que é requerido pelo mercado de trabalho”.
Como a quarta revolução industrial se aplica em países como o Brasil, que ainda está em desenvolvimento?
O Brasil tem muitas grandes indústrias automobilísticas, petroquímicas, farmacêuticas, eletrônicas. Estas e outras serão impactadas por tecnologias emergentes como inteligência artificial, drones e robôs. O processo não irá demorar mais comparado com países desenvolvidos, uma vez que ele já está em curso. Nós já vemos novas tecnologias sendo usadas em diversas áreas industriais e inclusive em setores que até pouco tempo atrás eram baseados na manufatura. Como isso ocorre em diversas partes do mundo, as indústrias brasileiras terão de se adaptar para se manterem competitivas.
A desigualdade social e econômica é talvez o maior desafio no mundo atual. Como a quarta revolução industrial poderia ajudar a atenuar a desigualdade?
A maior decepção da revolução industrial e também seu aspecto mais injusto é que os benefícios não são distribuídos igualmente. Não há sequer uma distribuição geográfica, basta lembrar a coexistência de áreas ricas e pobres dentro de um mesmo país. Temos de usar as inovações para criar um futuro mais inclusivo e sustentável ao invés de permitirmos que as grandes empresas, que detêm as tecnologias, fiquem com toda a riqueza e aumentem a grande disparidade entre ricos e pobres. As pessoas já estão pensando e discutindo alguns pontos cruciais: deveríamos taxar dados e robôs? Podemos criar um programa de renda mínima universal? Não significa que alcançaremos as respostas certas, mas a coisa certa a fazer é discutir o assunto e propor soluções.
Falando nisso, Bill Gates propôs taxar robôs e inteligências artificiais para garantir um futuro socialmente justo para os humanos. O que o senhor pensa disso?
É uma ideia interessante, com prós e contras. Seria importante vermos como isso funcionaria na prática, o que poderíamos extrair dessa proposta. Talvez pudéssemos testar a hipótese em um experimento controlado em uma determinada área do planeta, para estudar as consequências. Quando temos pessoas como o Bill Gates defendendo isso, significa que já está na hora de levarmos a proposta a sério.
Algumas notícias sobre os impactos da quarta revolução industrial soam bem pessimistas, sobretudo quando mencionam que milhões de empregos podem desaparecer. O futuro o assusta?
Eu não quero me assustar. Tenho filhos e espero que eles tenham emprego. Eu diria que deveríamos ficar preocupados. Por preocupados, eu entendo que deveríamos dar atenção especial para o desafio e trabalharmos para fazer uma transição justa para as pessoas trocarem um emprego que irá desaparecer por outros trabalhos que irão surgir. É importante não deixarmos pessoas para trás e nos contentarmos com os poucos sortudos que terão empregos. Quando empregos estão em risco, é importante saber onde e como as tecnologias serão usadas, e como interagir com elas. Não devemos apenas reagir às mudanças; podemos moldar a direção dos avanços, podemos implantar regras e políticas públicas. Já há no mundo muitas agências públicas e privadas preocupadas com isso, que colocam os seres humanos e o bem-estar social no centro de seus projetos para o futuro.
Quais seriam os impactos da quarta revolução industrial em carreiras das ciências humanas, como para um advogado ou um sociólogo, por exemplo?
Boa parte do trabalho de muitos advogados é ler longos textos e resumi-los, fazer sumários. Uma inteligência artificial como um Watson poderia fazer isso. A tecnologia não vai substituir os humanos, mas poderá fazer algumas tarefas desempenhadas por humanos. Eu vejo a tecnologia como uma companheira ao invés de uma competidora. Hoje, uma parte muito importante do processo educacional é o autodesenvolvimento e as habilidades para ajudar a pensar criticamente, a entender diferentes contextos, ter a capacidade de interpretar textos e diferentes mídias. Essas habilidades são tão imprescindíveis hoje e no futuro quanto as ciências exatas. Não somos robôs, somos organismos sociais vivos.
As novas tecnologias podem contribuir para termos governos melhores e mais eficientes?
Eu tenho certeza de que é possível criar governos melhores e mais eficientes, mas não poderia me atrever a sugerir o que eles deveriam fazer, especialmente em países complexos sobre os quais eu não conheço a realidade. Mas posso dizer que tenho visto pessoas usando novas tecnologias aplicadas aos serviços públicos. Há governos preocupados em desenvolver plataformas seguras de código aberto para que as pessoas possam interagir e contribuir; para que as pessoas possam deliberar sobre diferentes assuntos. É uma responsabilidade que precisa ser compartilhada entre os governos e a própria sociedade. É uma via de mão dupla.
De acordo com um estudo do FEM, mais da metade dos CEOs dizem que o maior desafio que eles enfrentam é contratação e a retenção de talentos. Sabendo disso, como grandes empresas poderiam ajudar na educação?
Podemos ver muitos benefícios e conflitos nisso. Há empresas preocupadas em dar treinamentos e ensinar habilidades a pessoas de modo que só elas se beneficiem disso, ao invés de beneficiar a sociedade. E podemos notar que a educação formal não é mais capaz de ensinar tudo o que é requerido pelo mercado de trabalho. Os setores público e privado podem se mobilizar para ajudar a educação, discutindo os novos currículos de que precisamos, estruturando modelos educacionais para sustentar não apenas a educação formal, mas um sistema de ensino continuado, para a vida toda. Se as pessoas quiserem se atualizar ou aprender novas habilidades, devem fazer um mestrado ou um MBA de dois anos de duração? Por que não poderiam dedicar 5 ou 10 horas semanais por semestre fazendo isso, de acordo com sua disponibilidade de tempo? É uma questão para líderes do setor público, privado, sociedade civil e instituições acadêmicas.
O senhor conhece algum país que já esteja preparado para absorver sem crises as mudanças provocadas pela quarta revolução industrial?
Nenhum país está já totalmente preparado, o futuro é imprevisível. Teremos disrupções e mudanças em diversas áreas, serviços e comportamentos. Todos nós teremos de nos tornar adaptáveis e flexíveis. Os países que terão maior sucesso são aqueles que já possuem alguma flexibilidade e adaptabilidade em seus sistemas educacionais. Se não tivermos isso, estaremos ensinando e treinando as pessoas para atividades e empregos que não mais existirão. Devemos prestar atenção na Finlândia. Eles têm uma maneira inovadora de incorporar novas tecnologias, com muitos bons exemplos.
Estamos enfrentando problemas diários causados pelo mau uso de tecnologias. Fake news, fraudes eletrônicas, hackers, etc. Como poderíamos nos preparar para evitar e combater tais problemas?
Humanos e a tecnologia não existem em mundos separados, portanto não é um problema apenas de um ou de outro, são os dois juntos que causam danos. A tecnologia dá escala e abre oportunidades. Eu creio que esse problema não é discutido com a profundidade que deveria. É muito fácil aceitar que as tecnologias podem ser usadas para o bem e para o mal e deixar a decisão toda nas mãos das pessoas, se eximindo de responsabilidades. Temos de considerar que a tecnologia tem sua maneira própria de afetar o tecido social e prejudicar a economia. A prevenção necessita de educação, conscientização pública e privada, recursos financeiros e humanos, melhorias legais e marcos regulatórios. E o combate também envolve tecnologia, como o uso de inteligência artificial na cibersegurança, por exemplo.