NOTÍCIA

Edição 236

Escolhida de Trump pode significar prejuízo à aprendizagem, adverte economista americano

Douglas N. Harris, economista da Universidade Tulane, critica nomeação de Betsy DeVos como secretária de Educação

Publicado em 01/02/2017

por Beatriz Rey

unnamed 2 Douglas N. Harris, economista da Universidade Tulane | © Divulgação

Douglas N. Harris fala da escolha de Trump para secretaria de Educação

Douglas N. Harris, economista da Universidade Tulane | © Divulgação

O presidente eleito Donald J. Trump deu início a um polêmico processo de transição logo após ser eleito, em novembro de 2016. O republicano vem sofrendo duras críticas de especialistas e jornalistas por escolher para sua equipe nomes de pessoas sem experiência relacionada aos cargos que ocuparão. Ben Carson, por exemplo, foi indicado para chefiar o Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano sem nunca ter ocupado cargo público ou trabalhado na área – é neurocirurgião. Steve Bannon, novo estrategista-chefe, tem experiência como documentarista e executivo de mídia. É outro que nunca passou pelo governo. Uma das poucas nomeações lastreadas em experiência anterior na área para a qual foi designada foi a de Betsy DeVos, que assumirá a pasta da Educação. Bilionária (é nora do fundador do grupo Amway),   envolvida com filantropia e advocacy no meio educacional, DeVos foi uma das responsáveis pela implementação do sistema de escolas charter no Estado de Michigan, na década de 1990.

A notícia de sua escolha, entretanto, caiu como uma bomba no meio educacional. Em artigo publicado no jornal The New York Times no final de novembro, o economista da Universidade Tulane Douglas N. Harris escreveu que, de todos os candidatos para o cargo, DeVos tem “facilmente o pior currículo”. Simpático ao modelo de livre mercado defendido por Trump, ele critica as políticas de “escolha” apoiadas por Devos, como vouchers e escolas charter. “O problema da eficácia dessas políticas começa quando mudamos para áreas rurais e periféricas, que representam a maior parte do país”, afirma. Em entrevista concedida por telefone, Harris, também pesquisador no Brookings Institute e diretor-fundador da Aliança pela Pesquisa em Educação em Nova Orleans, enxerga a nomea­ção de DeVos como o triunfo da ideologia sobre a evidência empírica. “Haverá uma redução em desempenho acadêmico. Isso é o que as pesquisas existentes sugerem”, prevê.

O presidente Barack Obama passou parte de sua gestão em atrito com a comunidade educacional por adotar políticas com lógica de mercado, sem dialogar com educadores. O presidente eleito Donald Trump apoia políticas semelhantes. A mudança entre as duas gestões será grande, ou seria maior se Hillary Clinton tivesse sido eleita?

O impacto da eleição de Donald Trump no sistema educacional será muito maior do que seria com Hillary Clinton. De fato, muitas das mudanças promovidas na educação básica pela gestão Obama focaram um modelo implementado de cima para baixo, com responsabilização de escolas e de professores. Recentemente, entretanto, houve um movimento contra esse modelo. O Congresso passou uma revisão da lei existente até então [No Child Left Behind, NCLB], que diminui o papel do governo federal na responsabilização de escolas. Independentemente de quem fosse eleito, o controle da educação já havia sido devolvido para os estados. Hillary Clinton estava mais alinhada com os sindicatos, mas as reivindicações dos professores, de certa maneira, já tinham sido atendidas com a revisão da NCLB. Com a eleição de Trump, o papel do governo federal diminuirá ainda mais. Podemos esperar níveis menores de regulamentação de todos os tipos de escola (públicas, charter e particulares). DeVos promoverá políticas de vouchers e incentivo fiscal para as famílias que matricularem seus filhos em escolas particulares. O número de escolas charter também deve aumentar.

O senhor escreveu recentemente que Betsy DeVos tem “facilmente o pior currículo” para assumir o cargo, em referência à expe­riência da nova secretária com as reformas educacionais de Detroit. Por quê?

Há três categorias de evidência sobre a experiência dela em Detroit que me levam a fazer esta afirmação. A primeira são as preocupações de pessoas que apoiam o modelo de escolas charter nos âmbitos estadual e nacional (há republicanos nesse grupo). Em Detroit, não há monitoramento sobre o sistema de matrículas e o sistema de disciplina escolar. Não há coordenação de políticas entre as escolas públicas e as charter, ou até mesmo entre as charter.  É como usar estradas sem nenhum farol, nenhuma sinalização. O resultado é caos. Neste ano, uma comissão bipartidária em Michigan tentou discutir a falta de monitoramento nessas escolas. Foram feitas recomendações contrárias, e DeVos brigou. A segunda categoria de evidências diz respeito ao desempenho acadêmico dos alunos da rede de Detroit. O estudo que cito no NYT é difícil de interpretar. Olhando para os dados de maneira simplista, parece que Detroit produz alunos cujo desempenho acadêmico segue a média obtida por escolas charter no país. Essa média é melhor do que a obtida por escolas públicas. O problema é que é difícil saber se as charter estão indo melhor ou não porque há falta de monitoramento. Ou seja, as escolas podem estar selecionando seus alunos, ao invés de os alunos estarem selecionando as escolas.

DeVos também defende o uso de vouchers em educação.

Sim, essa é a terceira categoria: evidências sobre vouchers e incentivos fiscais para a educação (os incentivos direcionam alunos para escolas particulares). DeVos fundou uma organização cujo propósito é defender essas políticas – ela acredita mais em voucher do que em charter. O nível de monitoramento de vouchers e incentivos fiscais para a educação é ainda menor do que o observado para escolas charter. As experiências dos estados de Loui­siana e Ohio com essas duas políticas mostram efeitos negativos na aprendizagem dos alunos. O mesmo vale para escolas vir­tuais, que são uma versão de escolas charter e voucher: você basicamente faz cursos on-line em vez de ir à escola. Todas essas políticas têm efeitos negativos para o aprendizado. Note que é muito difícil achar efeito negativo em qualquer política em educação. O que encontramos em geral é efeito nulo.

A evidência acerca da eficácia dessas políticas públicas não é inconclusiva?

Meu argumento é que essas políticas (charter, vouchers, incentivos fiscais à educação) não são eficazes em parte porque não são pensadas para onde seriam mais plausíveis de funcionar. Há evidência de que escolas charter, e até certo ponto vouchers, geram ganhos de aprendizagem em regiões urbanas, como Detroit, Washington, D.C. e Nova York. Quando, entretanto, você olha para estados como Louisiana ou Ohio, as políticas começam a não funcionar. O problema tem ínicio quando mudamos para áreas rurais e suburbanas, que representam a maior parte do país. Não sabemos ao certo por que essas políticas funcionam melhor em áreas urbanas, mas enxergo duas razões para isso. Primeiro, há mais oportunidade de “escolha” em regiões urbanas por causa de inúmeras opções de escola e melhores redes de transporte. Segundo, escolas em regiões urbanas em geral apresentam resultados ruins, o que facilita a criação de alternativas melhores.

Por que elas continuam sendo adotadas se há pouca evidência sobre sua eficácia?

Em parte, por uma questão de ideologia. As pessoas se agarram a um princípio. Toda ideologia de DeVos pode ser resumida em uma palavra: escolha. Minha preocupação é que não há evidências de que essas políticas trarão bons resultados. Sabemos quais problemas são causados quando alunos não podem escolher escolas, mas as escolas escolhem os alunos. A ideologia de escolha e de liberdade é poderosa nos Estados Unidos. Ganhou espaço nos últimos 20 anos. O número de escolas charter, de programas de voucher e de alunos fazendo home schooling vem subindo. É uma ideia que tem ressonância com os valores culturais do país, o que faz sentido. Mas devemos nos preocupar com o que é efetivo. Veja, sou economista. Por que me oporia à lógica de livre mercado? Acredito nela. Mas a teoria de economia básica nos ensina que alguns mercados não funcionam bem sozinhos. Nesses casos, o governo precisa entrar com regulamentação. Por exemplo, aceitamos que o setor bancário deve ser regulamentado para que evitemos crises financeiras como a de 2008. Educação é outro mercado que não funciona sozinho. Sem o governo, não alcançaremos resultados. Ou alcançaremos resultados que não serão equitativos.

O senhor, então, questiona a visão do economista Milton Friedman segundo a qual escolas devem ser entendidas como mercados clássicos. Por quê?

O argumento sobre informação imperfeita – de como é demorado e custoso observar qualidade – não é convincente para explicar por que a educação não pode ser entendida como um mercado clássico. Por exemplo, a maior parte das políticas que DeVos apoia envolve a realização de testes com alunos para que se obtenha informação pública sobre seu desempenho. Minha preo-

cupação maior com as políticas apoiadas por ela está relacionada com monitoramento. Precisamos monitorar as matrículas para ter certeza de que o aluno realmente poderá escolher em que escola estudará. Também há a questão de como decidir se certas escolas devem continuar operando ou não. Desde o começo, a lógica das charter foi contratual: o governo fornece o subsídio financeiro e a organização se torna responsável pela escola. Se os líderes dessas organizações cumprissem o contrato, poderiam continuar operando. Há uma preocupação imensa em Michigan, pois muitas escolas charter continuam operando mesmo sem apresentar resultados. Em Louisiana, pelo contrário, fecham-se escolas que não apresentam resultados. Além disso, há um elemento público em educação. Os objetivos da comunidade onde a instituição escolar se encontra devem ser levados em conta. Não queremos que a educação seja entendida como um produto – a comunidade deve ter voz sobre o que acontece com as escolas. Essa visão está ligada ao processo democrático e ao desejo de atender diversos objetivos em um sistema educacional, e não apenas aqueles que seriam dominantes em um cenário de livre mercado.

Quais serão as consequências do triunfo das escolhas de DeVos sobre a evidência científica, como o senhor diz, para o país?

E difícil dizer o quão longe DeVos conseguirá ir. Em tese, se ela for bem-sucedida em expandir programas de voucher e subsídio fiscal, matricular mais alunos em escolas privadas e reduzir regulamentações para escolas charter, duas coisas acontecerão. Primeiro, observaremos uma redução no desempenho acadêmico dos estudantes. Isto é o que as pesquisas existentes sugerem: não há evidência de que essas políticas funcionam fora de centros urbanos. Segundo, estaríamos concedendo redução fiscal significativa para as populações mais ricas. Isso porque quase 10% dessa população já envia seus filhos para escolas particulares sem que o custo educacional seja mais barato para essas famílias.

Na campanha, Trump prometeu que acabaria com o Common Core Standards (CCS), o currículo americano. Mas sua implementação é responsabilidade dos estados, não do governo federal. Ele cumprirá a promessa?

Esse tema é engraçado por dois motivos. Primeiro, DeVos mudou totalmente sua posição em relação ao CCS depois de entrar para a administração Trump. Era a favor, virou contrária. Segundo, o governo federal nunca teve controle algum sobre o CCS. Os estados escolhem seus próprios parâmetros curriculares. Houve um esforço para desenvolver o CCS e os estados optarem por usar ou não. Essa questão traz mais simbolismo do que substância.

Autor

Beatriz Rey


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