NOTÍCIA
É necessário explicar o porquê do erro para que não volte a ocorrer
Publicado em 15/12/2016
Em muitos manuais ou artigos que tratam de ensino de língua, em especial de língua escrita nas escolas, tanto ao se considerarem casos específicos (concordâncias, vírgulas), quanto pretendendo encarar a questão geral, quase nunca se lê um diagnóstico adequado do “erro” ou problema. Assume-se que se trata de erro e se propõe uma “metodologia” que só repete uma regra, e na suposição de que ela é clara. Assim considerados, os erros ficam parecendo insuportáveis (e resultam em listas de “pérolas”, ótimas para programas de humor que se divertem rebaixando). O resultado de tal “metodologia” é que pouca gente aprende o que se supõe que seja necessário aprender.
Defendo a necessidade de um bom diagnóstico. Não basta assinalar um erro e propor uma regra. É preciso ser capaz de explicar o erro (por que o erro é este e não outro?). Só assim se pode propor a melhor terapia: impor uma regra ou seguir outros procedimentos?
Consideremos brevemente a questão dos erros de grafia. Análises sistemáticas de erros ortográficos mostram que cerca de 70% deles se devem a fatores associados à variação linguística. Apenas cerca de 30% estão entre os oficialmente previstos (dúvidas entre s e z, s ou ç ou ss; entre g ou j etc.). Entre os erros não previstos nos livros didáticos estão trocas de l por r (e vice-versa) no meio ou no final da sílaba (“framengo”, “carça”); trocas de l por u (e vice-versa”) em final de sílaba (“degral”, “mau”/”mal”, “exalstor”); trocas de e por i (e vice-versa) e de o por u (e vice-versa) em sílaba átona (“mininu”, “curuja”, “enventar”); juntar (“serhumano”) ou separar palavras (“amor daçado”) etc.
Se o professor apenas “corrige”, o resultado será nulo: na próxima vez que uma dessas palavras estiver para ser escrita, o aluno, com máximo cuidado, verificará sua pronúncia e, exatamente em consequência desse cuidado, cometerá o erro que quer evitar. Até por ter aprendido, mais ou menos equivocadamente, que a cada som corresponde uma letra: para escrever “resolveu”, sussurrará trinta vezes [h/rezowvew], que é como fala, e escreverá “resouvel” ou “resolvel” (variando “s/z”) e, quem sabe, “resolveu”, com alguma ajuda do acaso.
Se um aluno escreve “serhumano”, um professor deverá ser capaz de compreender que essa grafia se deve ao fato de que “ser” no contexto é palavra (mais) átona, e, portanto, é percebida como primeira sílaba de palavra mais longa (os fonólogos chamam casos assim de “vocábulos fonológicos”). Será também como resultado de avaliação errada, mas compreensível, que um aluno escreverá “amor daçado”: além de a segunda sílaba de “amor” ser marcada por tonicidade bastante saliente, a sequência “amor” é (para ele) a palavra que conhece e ouve muito.
Uma placa fez enorme sucesso na internet e pode servir de modelo para a necessidade de analisar os erros: um senhor que vendia pó de guaraná o anunciava como afrodisíaco: o cartaz dizia “A FLÔR DE ZÍACO DO AMAZONAS”. Erros? Vários. Afinal, a grafia é regida por lei. Mas é erro que revela uma análise – e a escola deve ser capaz de “reproduzir” as etapas dessa análise. O que revelará que não é só um erro, é grafia que tenta dar sentido à placa e se baseia numa análise.
Esse senhor certamente não sabe o que é “zíaco”, e deve se lixar para essa “palavra”. Mas age como se soubesse o que é “afrodi”: acha que é “a frô de”, e por isso escreve “corretamente” “a flor de”. Se considerarmos várias questões (a “troca” de l/r nesta posição silábica, a atonicidade do artigo a e que esse [i] se escreve e), nos convenceremos de que ele cometeu erros, mas que são bem interessantes. Prefiro alguém com esse tipo de erro a quem escreva “a escola é amarela” e “Dedé deu um dado a Dadá”.
O fundamental, para meu argumento, é: você sabe explicar por que é que os erros foram exatamente esses e não outros? Qual é sua relação com sotaques regionais e com os limites entre palavras? Se não souber, pelo menos não ria do vendedor de guaraná…
Uma das maneiras de aprender a analisar erros de grafia é comparar a exigência legal (que uniformiza só imaginariamente – mas isso nunca é pouco – certos aspectos da língua, dando-lhes aparência de objetividade) com realizações orais, considerando tanto a pronúncia de cada segmento (a que correspondem mais ou menos letras) quanto ritmo e diversos graus de tonicidade de uma sequência.
Representando grosseiramente um caso simples, teríamos, de um lado, “a casa é verde” e, de outro, [akázèvérdj]. Mesmo uma representação pouco exata da cadeia falada mostra que: a) se “juntam” artigo e nome; b) o /e/ se transforma em [i]; c) a vogal final de “casa” desaparece, e d) a vogal final da sequência pode desaparecer ou ser enfraquecida.
Dificilmente um aluno escreverá “verde” sem o e final, mas pode ser que na posição apareça um i. Mas não seria surpresa se “a casa” fosse grafada “acasa”. Já ouvi depoimentos de um professor segundo o qual seus alunos diziam “oite” em vez de “oito”. Como não acreditei e pedi um exemplo concreto, veio este: “eles dizem oitemeia”. Eis um exemplo de distinções que a escola deve fazer: uma coisa é “oite”, como resultado de “oito e” (simples crase); outra é supor que se diz “oite” no lugar de “oito”…
É curioso, e essa é a segunda forma de aprender aspectos interessantes ligados à grafia, verificar que esses “erros” podem ser encontrados em documentos históricos. Por que os “problemas” são os mesmos lá e cá? Por exemplo, Caminha escreveu, em sua famosa Carta, juntando clíticos átonos que hoje a lei manda escrever separados: “E entam enfadouse ocapitã e lixouo – E andauam asy mesturados… e hiamse” E em José Maria da Silva Paranhos, já em 1725, por exemplo, casos até mais complexos podem ser vistos. “Selhedeviã (se lhe deviam), seachar (se achar), demeinstar (de me instar).”
Deveríamos levar a sério o fato de que os erros de escrita dos alunos equivalem aos das opções dos grandes escritores de outras épocas.