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Ilusões Perdidas

A escola era o caminho da emancipação pessoal, da ascensão social e econômica

Acordávamos cedo, todos os quatro irmãos, e seguíamos juntos a caminho da escola. Minha mãe, que sempre acordava antes de todos, insistia em deixar o volume do rádio alto e o locutor nos informava, a cada minuto, a hora certa. Invariavelmente seguido de uma vinheta que nos alertava que deveríamos ir embora, pois já era hora. Uma rima que me irritava, pois a tudo imprimia um ar de urgência e em todos causava a sensação de um atraso crônico. Naquela manhã rompi com meu silêncio matinal e com minha resignação costumeira: “Por que tenho de ir para a escola?” A pergunta, disparada à queima-roupa, fora dirigida a meu pai.
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Ele sequer interrompeu seus afazeres e me respondeu com a displicência daqueles que possuem uma certeza inabalável: “para ser alguém na vida”. Filho de imigrantes analfabetos, a escola tinha sido, para ele, o caminho da emancipação pessoal, da liberação do trabalho manual, da ascensão social e econômica. Era técnico em contabilidade, mas à época isso tinha sido o suficiente para lhe garantir um emprego público em um banco federal e o respeito de seus parentes e amigos. Naquele bairro distante, povoado por operários e trabalhadores informais, os signos de escolaridade – como a biblioteca pe­ssoal, sua caligrafia esmerada e até a velha máquina de datilografar –lhe conferiam respeito e distinção.


Vereador na década de 60, uma de suas lutas era a expansão do atendimento escolar na região. Acreditava que sua experiência pudesse ser generalizada; uma vez universalizada, a escola seria promotora da igualdade social numa sociedade fundada no mérito individual. Não viveu o suficiente para assistir à derrocada de suas ilusões.


Hoje nos confrontamos com um quadro bem mais complexo. Que pai poderia garantir que o sacrifício de todas as manhãs seria recompensado por um emprego estável, pela melhoria de suas condições de vida? Se a escola permanece sendo condição necessária para o êxito econômico, ela já não é mais suficiente, como o era há quatro ou cinco décadas. Ao aumentarmos a escolaridade média da população, aumentamos as exigências mínimas para qualquer emprego, e somente poucas instituições de ensino superior,-em geral de difícil acesso, ainda conferem algum tipo de distinção social. Sociedades como a espanhola, que conheceram uma ampla expansão das oportunidades escolares ao lado de significativas transformações qualitativas de seus currículos, encontram-se, hoje, numa profunda crise econômica e social. É como se uma das maiores certezas do pensamento social e político do século 20 ruísse impiedosamente diante de nossos olhos.


Ainda assim, parece que insistimos em negar essa experiência que temos vivido nas últimas décadas. Refugiamo-nos na denúncia de uma abstrata queda de qualidade para nos assegurar de que as ilusões não estão definitivamente perdidas; de que a escola poderá ainda vir a cumprir o mesmo papel social. Responsabilizamos os mais jovens por não corresponderem aos sonhos e planos que para eles traçamos décadas atrás. Melhor faríamos se tivéssemos a coragem de enfrentar o desafio de pensar novos sentidos para a experiência escolar. Que significado se pode atribuir a uma escola que já não mais oferece garantia de empregabilidade e de ascensão socioeconômica? Como justificar sua existência e os sacrifícios que ela exige? 


Nos momentos de crise, a coragem de se perguntar é sempre mais fecunda do que a pressa em repetir certezas pouco examinadas. Como bem o sabia Sócrates.


*José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp e pesquisador convidado da Universidade Paris VII
jsfc@editorasegmento.com.br

Autor

José Sérgio Fonseca de Carvalho


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