NOTÍCIA
Levada ao principal tribunal do país, a acusação de racismo na obra de Monteiro Lobato levanta a questão sobre como tratar o autor mais clássico da literatura infantil em sala de aula
Publicado em 05/11/2012
Narizinho e Emília em Caçadas de Pedrinho: em 2010 o CNE quis acrescentar nota explicativa ao livro; questão agora vai ao STF |
Apesar das reações acaloradas que a discussão pública sobre o racismo de Monteiro Lobato tem causado, o assunto não é novo no meio acadêmico. O professor de Literatura Brasileira na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) Lizandro Carlos Calegari, acredita que não dá para negar que uma época define padrões de leitura.
“Quando Monteiro Lobato escreveu seus livros, a sociedade vivia o início do século 20, e, nesse período, ideologias racistas circulavam livremente em solo nacional. Pensadores como Oliveira Vianna, Sílvio Romero e Nina Rodrigues, só para citar alguns, defendiam a eugenia como solução para os problemas sociais no Brasil”, lembra. Ele afirma que não é casual, então, que o governo, naquele período, tenha estimulado a vinda de imigrantes europeus ao Brasil. “Situações hoje classificadas como racistas, dentro dos livros de Lobato, talvez não fossem assim consideradas naquele momento, pelo menos para uma parcela de leitores que não frequentava os salões de leitura. Como quer que seja, não podemos deixar de dizer que o preconceito racial, a exemplo do que acontecia no passado, ainda está presente na estrutura e no pensamento social brasileiro”, explica. Ele destaca também o livro O presidente negro, publicado em 1926, em que a questão da eugenia é posta em destaque. “No estado atual das discussões, devemos relativizar as ideias do autor como frutos de uma época. A época explica, mas não justifica”, opina.
Literatura excludente
A descrição de Narizinho a Nastácia em Reinações de Narizinho também foi alvo de acusação de racismo
Para Calegari, o nosso cânone literário é excludente e autoritário, não apenas em relação aos negros, mas também em relação às mulheres, aos gays, aos índios, etc. “Muitas vezes, a obra não cria situações preconceituosas, porque, antes de criá-las, já excluiu o elemento considerado “perigoso”. José de Alencar é um exemplo, em seus livros, o negro não aparece, e, quando isso acontece, ele é reduzido a uma condição inferior à de um animal”, exemplifica o professor, que orientou um mestrado sobre a eugenia nesta obra de Lobato.
Calegari afirma que o que está em pauta nesta discussão é o direito à expressão, à liberdade de opinião, à busca pelos direitos humanos. “Se o racismo é percebido hoje e contra ele grupos específicos reagem, isso pode ser entendido como um avanço dentro do pensamento social. Então, pensamos a parte pelo todo, ou seja, se, hoje, uma minoria étnica está reclamando por situações de racismo criadas por um autor, isso significa que ela está se sentindo lesada e, diferentemente do que acontecia há muitas décadas, está sendo ouvida”, afirma. Para ele, a lógica pode se estender a outros grupos de minorias étnicas, sexuais ou religiosas, só para citar alguns. Ele diz que a sociedade em que vivemos, em seus diversos setores, tem vivido um processo lento, mas constante, de democratização do pensamento e da ação.
Ele afirma que estudos e discussões a respeito de minorias étnicas e sexuais ainda encontram resistência no meio acadêmico brasileiro e que nossa conjuntura histórica forjou metodologias de ensino que, por muito tempo, desconsideraram o dado extraliterário quando na leitura e na interpretação de uma obra. “Por isso, no momento atual, ainda nos deparamos com professores carentes de formação para trabalhar certos conteúdos em sala de aula. É preciso que esse profissional volte para as universidades e procure estabelecer diálogos de forma que essa deficiência seja sanada”, opina. Na opinião dele, a literatura não é apenas uma história que se conta, é uma manifestação artística carregada de ideologias e valores, tanto nos seus temas quanto na sua expressão estética. “Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), muitas obras foram censuradas, e, nas universidades, o modo de trabalhar um texto literário seguia tendências postas por uma elite dominante. Algumas décadas se passaram, essa metodologia não segue os mesmos rumos, mas muitos professores a desconhecem”, analisa. Ele defende que obras como as que são consideradas racistas de Monteiro Lobato não devem sofrer modificações e devem ser discutidas na sala de aula. “Não podemos negar a importância de Monteiro Lobato para as letras brasileiras. A literatura infantil produzida por ele exerceu, por aproximadamente cinco décadas, a função de despertar o gosto pela leitura de centenas de milhares de crianças no Brasil. É uma boa chance de discutir a leitura no Brasil, sem deixar de lado questões relativas ao preconceito racial. É importante também que essas obras sejam mantidas na íntegra, sem serem modificadas ou oferecidas com ressalvas. Ao invés de omitir o preconceito veiculado nesses livros, é possível trabalhar a questão a partir deles”, diz.
Discutir sem demonizar
Doutor em literatura infantojuvenil, o professor João Luís Ceccantini, da Unesp, desenvolve trabalhos com a leitura em salas de aula do ensino fundamental dos livros de Monteiro Lobato. Ele defende que muitos dos aspectos criticados na obra do autor passam despercebidos pela maioria das crianças que a leem. “Trabalho com escolas públicas faz bastante tempo e nunca vi a questão do racismo ser levantada pelos próprios alunos em debates sobre os livros”, afirma. Ceccantini pondera que dentro da literatura de Lobato existem livros que resistiram melhor ao tempo do que outros e é necessário bom-senso na hora de escolher os livros. “Não digo por conta apenas desta questão, temos também alguns que entram em um didatismo exagerado para os tempos de hoje”, observa. O professor entende que é importante não induzir o público infantil a fazer uma leitura adulta do livro. “Lembro que li A chave do tamanho quando era criança e foi um texto que me marcou bastante, por trazer um mundo miniaturizado. Só fui entender o discurso humanista e pacifista da obra, que foi escrita em 1942, durante a II Guerra Mundial, portanto, e a defesa do darwinismo quando voltei a ler já adulto”, comenta.
Naturalização
A doutora em História das Ciências Paula Habib, no entanto, pondera para o risco de naturalização de certos preconceitos apresentados nos livros infantis. “Ao dar um caráter de normalidade a situações de discriminação, acabamos dizendo, ainda que indiretamente, que o mundo é assim mesmo”, afirma. Autora de uma tese de mestrado em que analisava os conceitos de raça, nação e eugenia na obra de Lobato, ela é contra qualquer possibilidade de modificar as obras ou de deixar de usá-las no ambiente escolar. “O importante é que sejam usadas também para discutir o preconceito que existe em nossa sociedade. O professor deve estar preparado para discutir o tema e também trazer novos elementos, como os sambas produzidos desde aquela época ou o rap de hoje e produções cinematográficas”, opina. Para Paula, é importante formar uma geração que discuta o assunto sem demonizar o escritor e sua obra. “Realmente, o racismo está presente nas obras e também nas cartas que Lobato enviava, por exemplo, ao médico Renato Kehl, seu amigo que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo e foi um dos principais defensores da eugenia no país. Outros intelectuais da época também foram muito influenciados por esses conceitos. O Kehl publicou diversos livros principalmente entre os anos 20 e 50 sobre o assunto e era articulista de jornais e revistas”, destaca. Em cartas escritas quando morou nos Estados Unidos, Lobato chegou a defender a organização racista Ku Klux Klan.
A antropóloga Heloísa Pires de Lima, autora do livro infantil Histórias da Preta, considera que apesar de algumas distorções, como as acusações de que o movimento negro estava tentando censurar Monteiro Lobato, a discussão sobre o preconceito racial na literatura é positiva. “A qualidade literária da obra do autor é indiscutível, mas é muito importante que a gente discuta os aspectos que existem nela e não joguemos para debaixo do tapete o problema do racismo que existe lá e busque a melhor maneira de abordar o assunto dentro da sala de aula”, afirma. Ela defende que é preciso discutir as personagens que são apresentadas de forma estereotipada e que são constantemente desqualificadas, como a Tia Nastácia. “Muitas das pessoas que hoje atacam genericamente o chamado politicamente correto esquecem que esta preocupação surgiu nos Estados Unidos durante os anos 60 e 70 com a luta pelos Direitos Civis de mulheres, negros, descendentes de latinos, remanescentes de povos indígenas e da comunidade LGBT. A ideia é mostrar que o chauvinismo pode estar presente no discurso sem que a pessoa que está empregando os termos pejorativos perceba”, lembra.
Relações raciais na escola
A coordenadora da área de Educação da Ação Educativa, Denise Carreira, destaca que a entidade está para lançar um estudo que relaciona o racismo à qualidade da educação intitulado Indicadores de qualidade da educação: relações raciais na escola, apoiado pelo Unicef. “O assunto tem de ser discutido dentro da sala de aula. Não é por acaso que os garotos negros são o grupo com piores resultados e maior evasão dentro das escolas”, afirma. Denise, que é especialista em relações raciais na educação, acredita que os professores precisam ser mais bem capacitados para discutir o assunto e também para que a lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura dos povos afro-brasileiros nas escolas, seja de fato colocada em prática. “É muito importante que o estudante negro conheça referências positivas para que possa se espelhar. Falar da resistência dos quilombolas e de como surgiram o samba e a capoeira, por exemplo”, afirma. Para ela, é preciso preparar os educadores para contextualizar e orientar a leitura das obras de Monteiro Lobato. “Na mesma época em que os livros foram escritos, existia um movimento muito importante e combatido que é pouco conhecido na História do Brasil que é a Frente Negra Brasileira”, exemplifica.
O racismo em outras obras | |
A discussão sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato não é um caso isolado na literatura. No Brasil, a discussão ainda se restringe ao meio acadêmico e a reação provocada pela reclamação em relação a Caçadas de Pedrinho tem feito com que muitos pesquisadores evitem falar sobre o assunto em relação a outros escritores e intelectuais. Procurados para esta reportagem, professores que participaram da elaboração de pareceres dentro do Conselho Nacional de Educação estão esperando a decisão final do Supremo Tribunal Federal para se manifestar sobre o assunto. Entre os escritores brasileiros, o romântico José de Alencar acaba sendo um dos casos mais célebres de defensor da discriminação aos negros. O escritor, conhecido por suas obras indianistas como Iracema e O Guarani, escreveu a partir de 1860 uma série de manifestos pela manutenção do regime escravagista. Os textos foram reunidos pelo jornalista e historiador Tâmis Parron no livro Cartas a Favor da Escravidão. A obra do quadrinista belga Hergé, em especial o livro Tintim no Congo, também tem sido alvo de polêmica em diversos países, acusado de racismo e de apologia à colonização. No Reino Unido, o livro é publicado desde os anos 90 com uma nota explicativa sobre o contexto histórico em que foi publicado originalmente. Mudanças na edição ou notas explicativas entraram em discussão também nos Estados Unidos, França, Suécia e Bélgica. As Aventuras de Tintim foram publicadas em mais de 50 idiomas e venderam em torno de 200 milhões de exemplares pelo mundo. A obra é da década de 30, mesma época em que Monteiro Lobato escreveu textos fortemente influenciados pela eugenia. Em 1949, Hergé deu uma entrevista em que dizia que Tintim no Congo foi escrito quando ele tinha 23 anos. O quadrinista explicou que não conhecia o Congo na época e que escreveu a história baseado em clichês e preconceitos que eram comuns naquele período. Outra decisão polêmica foi na edição da NewSouthBooks, nos Estados Unidos, do livro Huckleberry Finn, de Mark Twain, sem o uso da palavra “nigger”. O termo pejorativo que se refere aos negros se repete mais de 200 vezes no texto original. A expressão foi substituída por “slave”, que significa escravo. Outro termo que foi trocado foi “injun”, também utilizado de forma negativa, para se referir aos indígenas. A editora alegou que trocou as palavras para facilitar a aceitação do livro nas escolas. |