NOTÍCIA
A forma poética proporciona reencontros ao permitir o resgate do que já virou passado
Publicado em 26/01/2012
Fui colega de faculdade, na década de 1980, do poeta Eucanaã Ferraz. Fizemos o curso de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e, depois, nunca mais nos encontramos pessoalmente. Duas ou três cartas, dois ou três e-mails. E mais nada.
Quando leio seus poemas, a imagem e a voz de Eucanaã reaparecem bem nítidas para mim. Trinta anos de distância não são nada quando a palavra poética está presente.
Esta é uma das promessas que a literatura (e a poesia em especial) cumpre: vencer tempo e espaço, reapresentar o ausente, renovar o momento passado, recuperar palavras e encontros.
Toda leitura educadora é um encontro, e todo encontro é dialógico. E todo diálogo em leitura requer aprendizado: ver de novo e ouvir de novo. Talvez, quando os alunos se queixam da poesia, ou quando nós, professores, pouco espaço concedemos a ela em nosso dia a dia – talvez isto seja consequência de uma grande falha educacional. Uma falha que nos leva a só aceitar a poesia na medida em que a pudermos explicar.
Mas a poesia não existe para ser explicada. Existe para nos ensinar a ver de novo e a ouvir de novo. Só isso. E isso tudo.
Releio Eucanaã para reencontrar Eucanaã, e para me reencontrar com trinta anos a menos.
Leio e releio Eucanaã sem saber se Eucanaã pertence a este ou àquele grupo literário, a este movimento ou a esta vanguarda. Se a sua poesia é devedora desta ou daquela influência. Leio Eucanaã sem querer explicá-lo, encaixá-lo, classificá-lo, controlar sua reaparição. Por exemplo:
O OVO
O ovo é seu próprio ninho
ele próprio morador e casa
pilotis e teto
de si mesmo habitante e arquiteto
Não direi que a sua poesia é inútil ou hermética, banal ou ingênua, existencialista ou pós-moderna, anacrônica ou intemporal. Não me incomoda perceber ecos de João Cabral de Melo Neto ou de Clarice Lispector na poesia de Eucanaã. Aliás, sei que leu Cabral e Clarice. E que eles o influenciaram. Mas leitura de poesia é mais do que a busca de pais e mães para o poema órfão. Assim como o ovo, um poema é a construção e seu morador, ao mesmo tempo.
Todo poema é um ovo, desenhado, delimitado. O que faremos? Observá-lo, contemplar sua forma, saborear seus sons. A rima teto/arquiteto agrada o ouvido e a visão. Vejo o teto dentro do arquiteto. Ouço o arquiteto arquitetando o teto.
Poesia é como este ovo, mas algo mais a poesia promete. Sei que a palavra “ovo” é um palíndromo, o mais simples – OVO de trás para frente, de frente para trás. A forma perfeita e suficiente. E ao mesmo tempo é princípio da vida: todos viemos do ovo, do óvulo. Eucanaã e eu, poeta e leitor nesse reencontro, vamos conversando de novo, como fazíamos há 30 anos, na faculdade.
Começo a suspeitar que o título é um desenho. Contemplo o artigo O antes da palavra OVO. Vejamos com atenção o O. Esse O mais parece um ovo do que uma letra, mais parece um ovo do que um objeto da gramática. O desenho de um ovo precede a palavra OVO.
A terra prometida
Em outro poema seu, Eucanaã escreve sobre a arte de escrever:
FORMA
Palavras, arrumá-las
de tal jeito
– cilada –
que se possa
apanhar com elas
um sentimento que passa.
Outra promessa da poesia: captar, capturar o invisível com as palavras. Leitura de poesia, em voz alta, requer malícia teatral. A palavra “cilada”, entre dois travessões, simula um artefato que, subitamente, aprisiona o sentimento que passa. Como ler a palavra “cilada” isolada no verso. Isso é puro e delicado aprendizado!
Todo sentimento passa. Vira passado. A forma poética é uma forma de caçar o que já virou passado. Eucanaã volta, está aqui de novo, conversando comigo. Voltamos ao tempo da faculdade. Lembrarei necessariamente dos nossos professores, todos eles poetas secretos, leitores apaixonados. Voltamos no tempo. Tempo que passa. Tempo que volta.
Eucanaã (ele próprio se decifrou num poema) tem dentro do seu nome uma terra prometida – Canaã. A poesia promete a imortalidade, promete o paraíso, a vida perfeita, promete a rima e o ritmo, a palavra escolhida com cuidado, a imagem desenhada e exata.
Continuo conversando com o poeta, que me conta:
O poeta insiste:
brune, lava, escoda.
Mas já não sonha
o perfeito.
Verruma
porque o canto é isso mesmo.
Isso:
toda palavra é defeito.
Eucanaã me fala do seu trabalho poético. Brunir é polir, lustrar o metal. Escodar é lavrar e alisar a pedra com um martelo dentado. Verrumar é furar a madeira. O poema é metal, pedra ou madeira trabalhadas. Por mais esforço que faça, por mais habilidoso que seja, o teimoso artista da palavra não alcança a perfeição.
Minha conversa com o antigo colega de faculdade é feita de palavra poética. A poesia perfeita e imperfeita, o reencontro perfeito
e imperfeito.
Mas é nessa tensão que retomo o valor humano e humanizador da amizade prometida.
*Gabriel Perissé (www.perisse.com.br) é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador do NPC – Núcleo Pensamento e Criatividade