NOTÍCIA
Reconhecimento internacional da Palestina como nação traz efeito simbólico capaz de auxiliar a reforma de seu sistema educacional, ainda muito afetado pelos conflitos políticos da região
Publicado em 20/12/2011
Crianças palestinas passam por soldado israelense em um checkpoint |
Em 31 de outubro de 2010, a Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
concedeu o status de membro pleno à Palestina. Em todo o mundo, os números
eloquentes da votação – 107 votos a favor, 14 contrários e 52 abstenções –
repercutiram como um novo elemento do conflito entre israelenses e palestinos.
Em uma disputa que envolve, entre tantas questões, o reconhecimento
internacional da Palestina como uma nação, o alcance da decisão da Unesco pode
ser medido por um detalhe: até a votação, os sistemas administrativos e as
publicações do órgão das Nações Unidas mencionavam os “Territórios Palestinos
Ocupados”; agora, citam a Palestina.
Esta minúcia semântica simboliza o peso geopolítico da resolução na violenta
disputa em torno das fronteiras entre Israel e a Palestina.Também é neste valor
simbólico do reconhecimento pela Unesco que, na prática, reside seu potencial
transformador para a ciência, a cultura e a educação palestinas. Em especial no
caso da educação, os grandes problemas a serem enfrentados pela Palestina são
resultado direto do prolongado conflito armado e da atual divisão territorial e
política dos territórios palestinos. As imagens são contundentes: salas de aula
destruídas, crianças a caminho da escola sendo revistadas por soldados
fortemente armados e a prisão de professores e estudantes universitários.
Soberania palestina
“A
educação é uma forma de resistir à ocupação, mas só o fim da ocupação pode
resolver os nossos problemas educacionais”, resume Jamal Juma, diretor da
organização palestina Stop the Wall (o nome é uma referência à construção do
muro que separa o território israelense da região da Cisjordânia, controlada
pela Autoridade Nacional Palestina – ANP). “Então, a principal contribuição da
Unesco deverá vir do reconhecimento da soberania da Palestina sobre a sua
cultura e a sua educação.” De fato, o cenário educacional parece só ter solução
em longo prazo com a unificação e a plena autonomia da gestão das políticas
educacionais, sem falar em um cessar fogo verdadeiro. E é justamente neste
sentido que todo movimento político internacional parece válido.
No que diz respeito às políticas educacionais palestinas, pouca coisa deve se
alterar com a mudança de status dentro da Unesco. Como membro associado, as
autoridades palestinas já participavam de todos os debates dentro da organização
e assumiam compromissos em relação a metas e diretrizes estabelecidas nos
acordos e tratados. Exemplo disso vem do Plano para o Desenvolvimento da
Educação na Palestina, documento de referência para as políticas educacionais do
Ministério da Educação e do Ensino Superior da ANP. Na sua versão atual, que
compreende o período de 2008 a 2012, as metas estabelecidas têm como referência
o plano Educação para Todos, da Unesco. A organização também já mantinha
projetos específicos com a Palestina, como redes de pesquisadores e ações
voltadas para a área da cultura.
Mesmo a grande mudança – com o direito de voto, aumenta o nível de
comprometimento com as diretrizes estabelecidas pela organização – causará
impacto moderado na prática. Os países membros precisam ratificar os acordos ou
tratados, ou seja, precisam que seu conteúdo seja aprovado pelos respectivos
legislativos. Porém, não há prazos estabelecidos para a ratificação e, uma vez
ratificados, os acordos tornam-se referências legais, não obrigações. Ao mesmo
tempo, o apoio financeiro ou técnico da Unesco não depende, oficialmente, do
status dos países associados. Ou seja, não há a previsão de que a admissão como
membro pleno modifique a relação já existente entre a organização e a Palestina,
exceto no seu caráter político.
Problemas múltiplos
As
estatísticas gerais da educação na Palestina são promissoras. De acordo com
dados oficiais, as taxas de matrícula estão próximas de 90% na Educação Básica –
composta por um ciclo compulsório de 10 anos (dos 6 aos 15 anos) -, perto de
50% no ensino superior e há uma virtual paridade entre homens e mulheres
no sistema educacional, com a participação feminina caindo nos anos de formação
profissional ou acadêmica. Os números são comemorados tanto nos documentos
oficiais, como em relatórios de organizações internacionais, que invariavelmente
lembram que tais resultados foram alcançados em um tempo relativamente curto:
apenas em 1994, após o Tratado de Oslo criar a Autoridade Nacional Palestina,
foi possível a criação de um ministério e a definição de políticas específicas
para a área. Até ali, tudo o que dizia respeito à educação, assim como às demais
áreas, era definido pelo governo de Isarel.
Entretanto, os números escondem realidades distintas e preocupantes, que
variam de acordo com o local em que habitam os estudantes. O território
considerado palestino hoje está dividido em dois: a Cisjordânia e a Faixa de
Gaza. Separam as duas áreas não apenas o território e, por consequência, o
exército israelense, mas também a política interna (veja quadro). Esta divisão
cria questões para a gestão das políticas educacionais. A estrutura do
Ministério da Educação e do Ensino Superior está concentrada na Cisjordânia, o
que dificulta a operação das políticas em Gaza.
Em Gaza, os estudantes ainda convivem com os efeitos do mais recente período
de conflito armado aberto entre israelenses e palestinos. Na virada de 2008 para
2009, a região foi fortemente atacada pelo exército de Israel, em uma ofensiva
contra supostos núcleos terroristas que danificou, segundo relatório da própria
Unesco, 280 escolas e destruiu por completo outras 18. Entre as escolas
destruídas, estava uma mantida pela Agência das Nações Unidas para Refugiados
Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês). O ataque deliberado a duas escolas
mantidas pela agência gerou grande comoção. À época, as Nações Unidas chegaram a
suspender sua atuação em Gaza.
A UNRWA atende cerca de 25% dos estudantes da Educação Básica dos territórios
palestinos, especialmente na Faixa de Gaza. Além disso, é responsável por
atender também os refugiados fora do território palestino. Estima-se que cerca
de 5 milhões de palestinos vivam nos países próximos, como Síria e Líbano.
Teoricamente, são os governos locais que devem prover educação para crianças e
jovens. Como o atendimento é bastante precário nos campos de refugiados,
organizações internacionais acabam assumindo a tarefa. A UNRWA atende cerca de
500 mil crianças palestinas em suas escolas. A reconstrução das escolas em Gaza
é lenta devido ao bloqueio do transporte de material de construção promovido por
Israel. Segundo estimativas da UNRWA de 2010, cerca de 40 mil crianças deixaram
de frequentar a escola por falta de espaço para recebê-las. Parte da demanda tem
sido atendida por projetos humanitários de outras organizações. O Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), por exemplo, desenvolveu uma operação
específica para áreas de conflito, a “School in a box” ou “Escola em uma caixa”.
Este projeto, que usa tendas e um kit de material escolar emergencial
especialmente desenvolvido pelo Unicef, atende hoje cerca de 200 mil crianças em
Gaza.
O bloqueio afeta também a ampliação das infraestruturas na Cisjordânia, já
que o controle de todas as fronteiras é feito por forças israelenses. “Em
algumas localidades, a ocupação simplesmente proíbe a construção de escolas”,
relata Jamal Juma. “Uma escola palestina significa a constituição de uma
comunidade palestina e a política de Israel é, justamente, ocupar o nosso
território com os seus assentamentos.”
Jerusalém e o muro
Para os
educadores e estudantes palestinos que vivem em Jerusalém, a situação ainda é
semelhante à vivida no período anterior ao estabelecimento da ANP. A cidade é
administrada pelo governo israelense que, segundo os acordos de paz e os
tratados internacionais sobre situações de conflito e ocupações, teria o dever
de garantir o acesso à educação para crianças e adolescentes em idade escolar.
No entanto, a falta de investimento nas escolas palestinas de Jerusalém
Oriental, onde se concentra a população palestina, é constantemente registrada
por organizações internacionais. O relatório especial da Unesco “A crise
invisível: conflitos armados e educação”, publicado este ano, registra que pelo
menos 90 mil estudantes palestinos não são atendidos pelo sistema público de
educação de Jerusalém. A saída para estes estudantes é, quando possível, o
sistema privado, mas apenas um terço deste contingente consegue pagar as
mensalidades.
Além da escassez de vagas e da falta de qualidade das escolas palestinas, em
Jerusalém fica evidente a disputa em torno do direcionamento ideológico da
educação na região. Em 2000, a ANP começou a implantar um currículo unificado.
Antes disso, as escolas palestinas utilizavam os currículos egípcios, no caso de
Gaza, e da Jordânia, no caso da Cisjordânia. A medida foi comemorada como um
grande feito, mas criou reações israelenses, que identificavam nos conteúdos
lecionados uma tentativa de disseminar o ódio contra os judeus e reescrever a
história da região. Na época, a polêmica levou à suspensão de doações
internacionais à Palestina, mas a avaliação de diversas organizações, incluindo
a Unesco, é de que o currículo – baseado em preceitos muçulmanos – é adequado.
Ainda assim, o Ministério da Educação incluiu no seu plano plurianual a revisão
curricular, com a justificativa de adequá-lo à realidade da formação dos
professores e buscar uma maior integração entre a Educação Básica e os dois anos
suplementares, equivalentes ao ensino médio, mais voltados à formação para o
trabalho.
Em Jerusalém Oriental, as escolas palestinas adotam também o currículo
determinado pela ANP. No entanto, as autoridades israelenses anunciaram em março
que as escolas particulares da porção oriental da cidade deveriam passar a
utilizar os livros didáticos oficiais de Israel. A medida foi tomada depois de
declarações dos partidos de ultradireita israelenses, que controlam o Comitê de
Educação do Congresso, de que todas as escolas de Jerusalém deveriam ser
unificadas em um único currículo israelense.
Interrupção
Mas se a
interferência pedagógica na região segue em disputa, outro tipo de controle
interfere diariamente no processo de ensino-aprendizagem das crianças e jovens
palestinos. Os checkpoints, pontos de revista instalados pelo exército de
Israel, controlam a entrada e saída de palestinos tanto em Jerusalém Oriental e
nas fronteiras, como em áreas dentro dos territórios palestinos onde o governo
israelense mantém assentamentos judeus. Crianças e professores não são poupados
das revistas. O relatório da Unesco sobre educação e conflitos armados registra
que, apenas em Jerusalém, pelo menos 2.000 crianças e 250 professores enfrentam
atrasos diários na sua rotina escolar por conta dos checkpoints.
Um relato recente, registrado no site da Stop the Wall, descreve a rotina de
estudantes de uma escola do primeiro ciclo – crianças de 6 a 12 anos – em
Hebron. A cidade fica a 30 quilômetros de Jerusalém, dentro da Cisjordânia.
Israel mantém um assentamento na cidade, que é dividida em dois setores: o H1 é
controlado pela ANP e o H2, pelo governo israelense. A escola palestina fica no
setor H2, exigindo que crianças e professores passem diariamente pelo
checkpoint. Os soldados armados revistam todos e, recentemente, contrariando
indicações de grupos humanitários, forçam crianças e mulheres grávidas a passar
por um detector de metais. O aparelho pode causar problemas de saúde quando
usado com frequência.
Longo prazo
Esta convivência
diária com a repressão somada aos eventos mais trágicos, como os períodos de
guerra e os atentados, reflete-se sobre o comportamento das crianças e jovens.
Um estudo da Unesco sobre as condições psicossociais de estudantes palestinos de
todos os níveis, conduzido por pesquisadores do Columbia Group for Children in
Adversity e publicado em 2010, registra que todos experimentam algum nível de
angústia, depressão e medo. A falta de esperança é outro sintoma: 71,8% dos
estudantes universitários dizem não ter nenhuma expectativa em relação ao
futuro.
Por outro lado, esta pesquisa e outros documentos de organizações
internacionais ressaltam o valor dado à educação pelos palestinos. Além das
altas taxas de matrícula, que indicam grande interesse das famílias pela
educação formal, o relatório afirma que o povo palestino, especialmente em Gaza,
“tem uma capacidade incrível de resiliência face às múltiplas dificuldades
vividas”. Neste contexto, a decisão da Unesco e seu valor simbólico podem se
tornar mais um elemento que ajude os palestinos a se adaptar para seguir no
caminho da escola.
O contexto da decisão
Unesco é o primeiro órgão da ONU a reconhecer a
Palestina
Cerca de um mês antes da votação da Unesco, a
disputa entre Israel e Palestina havia se instalado em definitivo no front da
Organização das Nações Unidas (ONU). Durante a Assembleia Geral da ONU, a
Palestina apresentou seu pedido formal de reconhecimento como um membro efetivo.
A admissão pelas Nações Unidas significa o reconhecimento internacional da
Palestina como uma nação. Este reconhecimento forçaria, em tese, a definição de
fronteiras entre Israel e o território palestino, cerne das disputas que se
arrastam há décadas.
Não há relação direta entre a decisão da Unesco e as discussões na ONU. Nas
Nações Unidas, será necessário que o pedido da Palestina passe, primeiro, pelo
crivo do Conselho de Segurança – onde os Estados Unidos, aliados de primeira
hora de Israel, têm poder de veto – e, depois, pela votação em plenário. Porém,
a admissão no órgão temático tem um peso político importante, que pode ser
medido pelas reações ao seu anúncio. As autoridades palestinas comemoraram com
entusiasmo a decisão da Unesco, tida como um passo estratégico no processo de
reconhecimento internacional. Para o ministro das Relações Exteriores da ANP,
Riyad al-Malk, a votação na Unesco “apaga uma pequena parte da injustiça
cometida contra o povo palestino”.
Do lado contrário, os Estados Unidos suspenderam sua contribuição financeira
ao órgão da ONU, no que foram seguidos por outros países. O impacto sobre o
orçamento da Unesco foi estimado em cerca de US$ 65 milhões. Já Israel chegou a
congelar os repasses de impostos recolhidos em nome da Autoridade Nacional
Palestina (ANP), organização estatal que governa os territórios palestinos e
cujo orçamento depende em grande parte da arrecadação feita através do fisco
israelense. Para o governo de Israel, as solicitações da Palestina junto à ONU e
à Unesco ferem os processos de negociação.
O
bê-á-bá dos territórios
Entenda como se
configura a região da Palestina
A configuração da Palestina hoje
foi determinada pelo Acordo de Paz de Oslo, assinado em 1993 e que previa a
transição gradual do controle da Faixa de Gaza e da Cisjordânia para um governo
palestino. Nesta transição, os dois territórios seriam controlados por uma
Autoridade Nacional Palestina. Porém, as negociações que se seguiram ao acordo
não tiveram sucesso e, a partir do ano 2000, a região foi palco de sucessivas
escaladas de violência.
Hoje, os territórios estão divididos “no papel”, mas Israel mantém enclaves
tanto em Gaza como na Cisjordânia. São os assentamentos israelenses, cuja
extinção está no centro dos conflitos atuais. Além disso, Israel constrói um
muro ao longo das fronteiras. A construção é outro ponto central nos conflitos,
já que além da questão da livre circulação e da repressão associada, o projeto
do muro também avança sobre territórios palestinos.
Por outro lado, os territórios palestinos também estão divididos entre si não
apenas no mapa, mas também na política. Oficialmente, a Autoridade Nacional
Palestina, com sede na Cisjordânia, está sob controle do Fatah – que administra
as negociações de paz com Israel – , mas Gaza é governada pelo Hamas – facção
que não aceita o acordo atualmente em vigência e tem ligações mais ostensivas
com as milícias que promovem ataques em solo israelense. Recentemente,
lideranças do Fatah e do Hamas anunciaram a formação de um governo de coalizão a
partir de 2012, o que pode modificar um pouco este cenário.