NOTÍCIA
Após investimento de dois anos, município do Rio de Janeiro dobra o número de escolas bonificadas entre 2010 e 2011; especialistas discutem o que explica a variação tão expressiva
Publicado em 10/09/2011
Ciep 1º de Maio,escola com melhor Ide-Rio da rede municipal: entre 2009 e 2010, índice apresentou variação de 72% |
Em 2009, quando assumiu a pasta da Educação no município do Rio de Janeiro, Cláudia Costin, ex-secretária de Cultura do Estado de São Paulo, deparou-se com números preocupantes: entre o 4º e o 6º ano, 28 mil dos 685 mil alunos, ou 4% do total, foram identificados em avaliações da rede como analfabetos funcionais. Além disso, a secretaria detectou que 14% do alunado precisaria frequentar aulas de reforço para superar o déficit de aprendizagem. Como o município funciona no sistema de ciclos, muitos professores não aplicavam avaliações contínuas em sala de aula antes do ano de passagem para a nova etapa. Para reverter o quadro, adotou-se, entre outras, a política de responsabilização. Na prática, foi dada a cada escola uma meta a ser alcançada no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nos anos ímpares, e no Índice de Desenvolvimento da Educação do Município do Rio de Janeiro (Ide-Rio) nos anos pares. O Ide-Rio é calculado como o Ideb (com o cruzamento de dados de desempenho em língua portuguesa e matemática e a taxa de aprovação), só que usa as notas da Prova Rio, e não da Prova Brasil. As escolas que atingissem ou superassem o estipulado pela secretaria receberiam um 14º salário. No ano passado, diretores e professores de 5º e 9º anos das escolas com os maiores Idebs também ganharam uma viagem a Nova York.
Em 2010, a partir da análise dos dados dos Idebs de 2007 e 2009, a secretaria bonificou 290 escolas (há 968 no total na rede). Neste ano de 2011, foram usados os Ide-Rios de 2009 e 2010, o que permitiu que 558 escolas recebessem o prêmio. A variação no número de escolas bonificadas é significativa: entre 2010 e 2011, houve um aumento de 92%. Se no ano passado 30% delas receberam a premiação, esse percentual subiu para quase 60% neste ano. Com números tão expressivos, fica a pergunta: como a rede municipal do Rio de Janeiro saiu de um quadro tão alarmante em 2009 para o atual, em que mais da metade das escolas apresentam bons índices de qualidade?
A resposta é complexa. Primeiro, é preciso entender a metodologia de concessão do bônus. O decreto municipal nº 33.399, de 16 de fevereiro deste ano, que institui o sistema de bonificação, dá margem a duas interpretações sobre a fórmula de cálculo. Diz o texto: “as metas de acréscimo terão por base o Ideb ou o Ide-Rio anterior, conforme a tabela”. Seguidas da diretriz, há duas tabelas com as faixas de Ideb ou Ide-Rio, acompanhadas de variações percentuais para os anos iniciais e finais do ensino fundamental. Exemplo: uma escola do primeiro ciclo do ensino fundamental cujo Ide-Rio era de 4,5 em 2009 tinha uma “meta de acréscimo” de 8% no cálculo de concessão do bônus de 2011.
Com as informações das tabelas em mãos, o mais natural seria calcular a variação percentual relativa entre o Ide-Rio 2009 e 2010, e checar se o valor bate com o previsto na tabela para aquela faixa específica de Ide-Rio. Ou seja: essa mesma escola dos anos iniciais cujo Ide-Rio era de 4,5 em 2009 e passou para 5,2 em 2010 variou 15,5% – como ela ultrapassou a meta de variação relativa, que era de 8%, foi bonificada. Por essa fórmula, 30 escolas não deveriam ter sido bonificadas neste ano, justamente por não terem atingido a variação relativa supostamente estabelecida pelo decreto. No ano passado, a estimativa é de que 18 escolas do total tenham ficado na mesma situação. Não é possível fazer uma análise mais aprofundada sobre os dados de 2010 porque a secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro só divulgou a lista das escolas bonificadas naquele ano – aquelas que não atingiram as metas não aparecem. Há escolas cujos Idebs de 2007 e 2009 não estão disponíveis no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mas que foram consideradas na listagem de 2011 (elaborada com informações dos Ide-Rios 2009 e 2010). Assim, a avaliação se torna inviável na medida em que há incerteza sobre uma listagem única de escolas.
Com a consultoria de Ocimar Alavarse, especialista em avaliação e professor da Faculdade de Educação da USP, e, posteriormente, de Joyce Bevilacqua, professora do departamento de Matemática Aplicada do Instituto de Matemática e Estatística (IME), também na USP, a reportagem de Educação chegou a uma outra fórmula possível para o cálculo da bonificação. Esse algoritmo, usado efetivamente pela secretaria municipal de Educação, aplica a “meta de acréscimo” ao Ide-Rio de 2009 e estima um valor arredondado para o Ide-Rio 2010, que é cruzado com o valor real, obtido pela escola. Ainda com o mesmo exemplo do parágrafo anterior, aplica-se 8% ao Ide-Rio de 2009, que era 4,5, o que gera o valor 0,36. Somado aos mesmos 4,5 iniciais, o Ide-Rio 2010 projetado é 4,86, ou simplesmente 4,8, índice que fica abaixo do Ide-Rio 2010 real, que foi de 5,2. Portanto, a escola foi bonificada. Como neste caso a variação relativa de 15% supera a meta de 8%, não há dúvida de que o bônus se justifica.
O problema é quando a variação relativa é menor que o esperado e apenas a projeção do Ide-Rio 2010 determina a premiação – caso das 30 escolas mencionadas anteriormente. Uma delas é a EM Engenheiro João Thomé, cujos anos finais do ensino fundamental apresentaram Ide-Rio de 3,5 em 2009 e 3,7 em 2010. A variação relativa entre os dois índices é de 5,7%, valor que fica abaixo da meta de acréscimo esperada para a faixa (7%). Mas pela projeção em função da meta, o cálculo é outro: 7% (ou 0,7) multiplicado por 3,5 é igual a 0,245, ou 0,2. Ao somar este último valor com o Ide-Rio 2009 (3,5), obtém-se 3,7. Pela segunda fórmula, a escola recebe o 14º salário. Mais um exemplo: o Ide-Rio 2009 dos anos iniciais da EM Paschoal André foi de 3,9, valor que subiu para 4,3 em 2010. A variação relativa entre os dois anos foi de 10,3%. O Ide-Rio 2010 projetado, calculado a partir da multiplicação entre a meta de acréscimo (11%) e o Ide-Rio 2009, é de 4,3 (a conta fica assim: 3,9 vezes 0,11 = 0,429 ou 0,4, valor que, somado aos 3,9 iniciais, gera exatamente 4,3, o Ide-Rio real).
“Isso seria resolvido se o decreto deixasse claro que, para efeito de cálculo, está sendo estimado o valor em função da meta de acréscimo”, analisa Ocimar. Para ele, trata-se de um “erro” porque a política de bonificação exige informações muito precisas. Joyce faz o mesmo questionamento e observa que, no caso das 30 escolas cujas bonificações não são justificadas pelo primeiro cálculo, o Ide-Rio projetado é exatamente igual ao Ide-Rio obtido. A partir de análises prospectivas, ela afirma ser necessário ter os dados que geraram o Ide-Rio 2010 dessas 30 escolas (as médias das provas e a taxa de aprovação) para constatar a coincidência dos valores do Ide-Rio 2010 com os das respectivas metas projetadas. “Do jeito que está, não há clareza sobre em qual momento o Ide-Rio 2010 real entra no cálculo”, diz.
É importante ressaltar que houve uma mudança nas metas de acréscimo de 2010 e 2011: elas foram reajustadas por conta do período de análise. Se o Ideb é calculado de dois em dois anos, o Ide-Rio é anual. Assim, uma escola do primeiro ciclo do ensino fundamental cujo Ideb era de 2,4 tinha meta de acréscimo de 22% em 2010. A mesma instituição passou a ter meta de 14%. A revisão foi considerada correta pelos dois pesquisadores. Outro detalhe importante diz respeito às escolas com dois ciclos do ensino fundamental: aquelas que alcançaram 100% da meta de acréscimo em um deles têm a meta para o outro ciclo reduzida pela metade.
Dois índices, duas provas
A política de bonificação está atrelada a dois índices: o Ideb, calculado com base na Prova Brasil, aplicada nos 5º e 9º anos; e o Ide-Rio, sintetizado a partir da Prova Rio, realizada com alunos dos 3º e 7º anos. De acordo com nota enviada pela secretaria, a opção pelo uso de dois parâmetros não torna mais difícil o critério de compreensão do bônus porque o Ideb é sempre comparado com o Ideb, e o Ide-Rio, com o Ide-Rio. Dessa maneira, torna-se impossível fazer qualquer tipo de análise a respeito da evolução das escolas entre 2007 e 2010, período levado em conta pela política. Mas mesmo quando a comparação é feita entre índices da mesma natureza, há discrepâncias. É o caso do Ciep 1º de Maio, escola com o maior Ide-Rio da rede, que apresenta, nos 3º anos, uma evolução altíssima entre 2009 e 2010: o Ide-Rio passou de 4,7 para 8,1. Em um ano, o aumento foi de 72%.
Para Ocimar Alavarse, o crescimento é considerado “estranho” quando se observam, no país, as escolas avaliadas pelo Ideb. “A média nacional de crescimento do Ideb é de 10%. Entre 2005 e 2007, o índice saiu de 3,8 para 4,2 nos anos iniciais (a variação é de 10,5%). O crescimento entre 2007 e 2009 foi de 9,5%, já que os valores para cada ano são, respectivamente, 4,2 e 4,6”, explica. A apreciação do Ide-Rio é especialmente complicada porque, mais uma vez, não há dados específicos sobre a composição do índice para as escolas (desempenho em língua portuguesa e matemática e taxa de aprovação). “Para um diagnóstico mais rigoroso, precisaríamos saber a quais fatores que compõem o Ide-Rio atribuir a magnitude dessa evolução”, diz.
A importância de ter os fatores que discriminam o índice é evidenciada quando o objeto de análise é o Ideb. Em 2007, o Ideb do Ciep 1º de Maio era de 4,2, valor que subiu para 5,9 em 2009. O crescimento pode ser explicado pelo aumento no desempenho da Prova Brasil, já que a taxa de aprovação se manteve estável (99%). Em matemática, a nota passou de 173 para 229; em língua portuguesa, variou de 162 para 196. Como o MEC também divulga o número de alunos matriculados e o número de estudantes que efetivamente fizeram a prova, é possível até identificar se houve manipulação durante o exame. Assim, a variação de 72% entre os Ide-Rios 2009 e 2010 da escola fica sem explicação plausível.
Metas de acréscimo | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Foi um choque de ordem”, diz dirigente carioca | |
O investimento na melhoria da qualidade de ensino por parte da secretaria municipal de educação do Rio de Janeiro começou em 2009, quando a secretária Cláudia Costin optou por atacar os problemas na rede de diversas formas. “Foi um choque de ordem”, analisa Helena Bomeny, subsecretária de Educação do município. Uma das primeiras medidas foi o fim da aprovação automática, já naquele ano. Para dar conta do número de alunos com analfabetismo funcional, a secretaria criou o projeto “Aceleração da Aprendizagem”, que, em parceria com o Instituto Ayrton Senna, trabalha com turmas específicas de realfabetização. “Investimos para acabar com a defasagem daqueles que estavam com problemas e para não criar mais analfabetos funcionais”, explica. Além da Prova Rio, foi instituído o Alfabetiza Rio, avaliação que mede o nível de alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental. Outra ação da secretaria é o programa “Nenhuma criança a menos” (o nome é muito semelhante à lei federal norte-americana No Child Left Behind), que selecionou os 10% dos alunos com as piores notas nas provas para participar de um programa de reforço escolar, realizado no contraturno. No mesmo sentido, as 116 escolas com piores notas nas avaliações se comprometeram a desenvolver um plano parecido com o Plano de Ações Articuladas (PAR), do governo federal. As chamadas “Escolas do Amanhã”, localizadas em áreas de vulnerabilidade social e risco, contam inclusive com mais recursos (enquanto as outras escolas da rede recebem um 14º salário como bônus; nessas o valor é um salário e meio). Para Helena, o aumento no número de escolas bonificadas entre 2010 e 2011 se justifica pelo investimento da secretaria em ações articuladas, cujo foco principal é a aprendizagem do aluno. “O bônus gera uma mexida na escola porque todo mundo quer ganhar. O crescimento se explica também porque as escolas perceberam que não era difícil receber o prêmio. Demos todo instrumental para isso”, diz. De acordo com ela, as ações feitas pela gestão Cláudia Costin foram implementadas por adesão das escolas. Ainda segundo a subsecretária, o decreto será alterado para incorporar novas diretrizes em relação às faltas. Ela também se dispôs a anotar a sugestão de que a fórmula de cálculo do bônus fique mais explícita. Em nota enviada via assessoria de imprensa, a secretaria afirma que a fórmula de cálculo, como está descrita no decreto nº 33.399, “é de fácil compreensão para as escolas”. Assim, o órgão entende que a metodologia de cálculo não é dúbia. Sobre a instituição do Alfabetiza Rio, a assessoria explica que não há sobreposição com a Provinha Brasil, aplicada pelo governo federal. “A orientação do MEC é que a Provinha Brasil seja aplicada no início e no final do 2º ano como avaliação feita pela própria escola, com aplicação e correção feita pelo próprio professor. Já o Alfabetiza Rio é uma avaliação externa aplicada ao final do 1º ano do ensino fundamental (…) o Alfabetiza Rio garante maior isenção e confiabilidade nos resultados”, diz a nota. |
As fórmulas de cálculo | |||
Para demonstração dos algoritmos de concessão do bônus, será usada como exemplo a EM Eustorgio Wanderley, que foi bonificada nos anos iniciais por ter Ide-Rio 2009 de 4,3 e Ide-Rio 2010 de 4,6. De acordo com o decreto municipal nº 33.399, o Ide-Rio 2009 da escola faz com que ela tenha meta de acréscimo de 8% | |||
Fórmula 1: Variação Relativa | |||
Fórmula 2: Projeção do Ide-Rio 2010 | |||