NOTÍCIA
Estudos apontam que alunos bilíngues apresentam ganhos cognitivos, mas o diálogo entre as línguas ainda é delicado na alfabetização
Publicado em 10/09/2011
Um aluno do 2º ano do ensino fundamental aparece no corredor da escola e desperta a atenção da coordenadora geral de inglês, que o interpela: “Shouldn’t you be in class?” (você não deveria estar na aula?) – “I’m gonna play now!” (agora eu vou brincar!), responde ele, indo para o recreio. Em seguida, uma menina ainda mais nova passa pela coordenadora, que pergunta: “Hello, what did you learn in class today?” (olá, o que você aprendeu na aula hoje?), ao que ouve como resposta: “fossils!” (fósseis). Apesar de não demonstrar sotaque ou qualquer dificuldade para entender e se expressar em inglês, essas crianças são brasileiras, mas educadas desde cedo em uma escola bilíngue.
A cena, presenciada pela reportagem na escola bilíngue Stance Dual, em São Paulo, vem ao encontro de um estudo das instituições Concordia University, York University e Université de Provence, publicado em janeiro no periódico acadêmico Journal of Experimental Child Psychology. Segundo a pesquisa, crianças bilíngues não apenas não confundem os dois idiomas que aprenderam, como tendem a se focar mais em tarefas e a desenvolver uma atenção melhor do que seus pares monolíngues.
O resultado, obtido a partir da observação de um grupo de 63 crianças de dois anos de idade, pode ser explicado, segundo Diane Poulin-Dubois, pesquisadora que coordenou a experiência, pelo fato de as crianças bilíngues estarem acostumadas a prestar atenção na diferença entre as duas línguas que conhecem, tanto para ouvir quanto para se expressar.
A educação bilíngue também tem sido objeto de outros estudos no campo da educação, tendo como foco não apenas as capacidades que ajuda a desenvolver, mas os âmbitos em que a própria linguagem atua, em especial no contexto escolar formal. “Existe a linguagem social e a acadêmica. A criança que faz um curso de inglês vai aprender a se comunicar socialmente, mas não terá os conteúdos epistemológicos exigidos por uma escola internacional”, conjectura Daniella Leonardi, coordenadora de educação infantil e de inglês da escola bilíngue Play Pen, de São Paulo.
Nesse sentido, a psicóloga Elizabete Flory, doutora em bilinguismo pelo Instituto de Psicologia da USP, fez um levantamento de pesquisas no mundo todo sobre educação bilíngue e constatou que esses alunos apresentam vantagens cognitivas. “A primeira é uma certa antecipação da consciência metalinguística – eles se dão conta de que o objeto tem palavras diferentes para representá-lo e diferenciam com qual língua falar com cada pessoa”, explica. Outro benefício é uma possível antecipação de pensamento cognitivo em cálculos. “Isso está ligado ao desenvolvimento da lógica, pois as crianças bilíngues aceleram essa forma de pensar”, afirma. Elizabete aponta, no entanto, que não é sempre que o bilinguismo é acompanhado de vantagens cognitivas. “Não dá para falar que ele aumenta a inteligência. Mas crescer falando duas línguas pode ter influências positivas em alguns aspectos da inteligência”, frisa.
Alfabetização
Mas se as pesquisas hoje sobre educação bilíngue derrubaram o mito de que ensinar dois idiomas confunde as crianças, há um momento em que o diálogo entre as línguas é mais delicado: na alfabetização, período em que a criança passa pelo processo de aprendizagem dos processos de codificação e decodificação da língua escrita. Quando a criança ingressa no ensino bilíngue, a escola deve tomar alguns cuidados como escolher em qual dos dois idiomas vai introduzir a leitura e a escrita – ou se vai alfabetizar nas duas línguas ao mesmo tempo. Elizabete explica que há três tipos de alfabetização: a sequencial materna-segunda língua, a sequencial na segunda língua seguida da materna, e a simultânea, na qual ambos os idiomas são ensinados. Para ela, ainda que a opção pela alfabetização sequencial seja mais confortável, a criança que fala duas línguas já está fazendo hipóteses de como vai fazer isso na segunda língua.
Selma Moura, doutoranda em linguística aplicada pela Unicamp e mestre em educação pela USP, é adepta da ideia de que a criança faz a transferência da alfabetização em uma língua para a outra, mas crê que este é um processo bilíngue, e não simultâneo. “Não são duas alfabetizações, é uma só. Quando a criança entende o código da língua, só vai fazer uma mudança, uma transposição de som”, observa. Elisabete ressalta que a transferência de conhecimentos entre línguas a partir de apenas um processo de alfabetização depende do segundo idioma. “Quanto mais próximas as línguas, mais existe a transferência do aprendizado. Se for português e japonês, ou russo, ou árabe, a criança vai ter de construir também um outro sistema”, afirma Elizabete.
No Brasil, o mais comum tem sido a alfabetização no idioma materno, seguida de um processo natural de aquisição da segunda língua, sem a repetição do processo. “A alfabetização tem de acontecer na primeira língua, porque assim a criança levanta hipóteses sobre a escrita a partir do seu maior repertório, do seu contexto”, afirma Gabriela Argolo, coordenadora pedagógica da Play Pen. Para ela, o aluno que se alfabetiza uma vez só, em português, transfere as descobertas que fez no código dessa língua matriz para outra que aprenda depois. Na Escola Suíço-Brasileira, em São Paulo, a alfabetização começa pela língua materna, mas como existem alunos de 24 nacionalidades na instituição (60% brasileiros e 20% suíços), cada um é alfabetizado na sua língua materna, e não necessariamente no português. No 1º ano, portanto, a criança é alfabetizada em sua língua materna, no 2º ano no alemão (ou no português, dependendo de sua nacionalidade), no 6º ano é introduzido o inglês, no 8º ano o francês e, no primeiro do ensino médio, o espanhol (a única língua optativa). “Todas as línguas são trabalhadas como ferramentas, e não como línguas estrangeiras”, esclarece Bernhard Beutler, diretor da escola.
Na prática
“A criança é bilíngue, mas a aula não é bilíngue”, diferencia Andrea, coordenadora da Stance Dual. Lá, como na maior parte das escolas bilíngues, ou a aula é em inglês, ou em português. Apesar de a maior parte dos professores – e alguns funcionários – falar as duas línguas, são reconhecidos pela escola como referência em uma delas. Desta forma, se falar em português com um professor com referência em inglês, ainda que o educador fale português, ele irá responder apenas em inglês. A escola utiliza o currículo nacional e distribui os conteúdos para professores com referência em inglês e português. Os alunos têm, por exemplo, aula de matemática e de “math” – o conteúdo não se repete, apenas é ensinado ora em português, por um professor, ora em inglês por outro docente. A partir disso, a escola desenvolve projetos disciplinares integrados com as duas línguas. A carga horária começa com imersão no inglês para crianças a partir de dois anos, quatro horas por dia. A partir do ensino fundamental, as aulas vão das 7h30 às 15h30 e o português entra na grade curricular.
A estratégia de imersão na segunda língua na educação infantil, para depois fazer a alfabetização na língua materna no fundamental é recorrente nas escolas bilíngues, apesar de a idade de admissão variar dependendo da instituição – geralmente de um a três anos. Depois, a carga de inglês diminui e a de português aumenta progressivamente.
O currículo, porém, não é apenas baseado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), mas também em conteúdos internacionais. A vantagem de adotar currículos de fora do país é justamente a de aumentar as chances de que os alunos saiam da escola e ingressem em instituições estrangeiras sem desvantagem de conteúdo. “Não adianta ter duas escolas, uma que segue os international standards e outra que segue os PCNs. Deve-se construir um currículo integrado. Na nossa matemática, no 4º ano do currículo brasileiro, as crianças têm frações. Depois que aprenderam o conceito de fração, vão transferir para o vocabulário do inglês. Aí, vão estudar outros conteúdos, como não exigidos pelo currículo nacional”, exemplifica Daniella Leonardi, da Play Pen.
Cuidados
É preciso observar alguns aspectos na hora de trabalhar dois idiomas na escola. O primeiro passo para matricular uma criança numa escola bilíngue deve ser a escolha de uma instituição com valores e filosofia com os quais os pais se identifiquem, recomenda Elizabete. Em seguida, é preciso checar a proficiência dos professores no idioma e o número de horas que a criança ficará exposta a outra língua. Um terceiro ponto é observar se o aluno está, depois de algum tempo, adquirindo proficiência em pelo menos um dos idiomas. Introduzir a segunda língua com naturalidade e sem pressão é o que Selma Moura, da Unicamp, recomenda. Para ela, é preciso observar o interesse da criança e seu nível de desenvolvimento no idioma. “É uma postura responsável por parte da escola alfabetizar em uma língua (geralmente o português), mas acho problemático tolher a curiosidade da criança. Se ela perguntar como se escreve algo antes do tempo, ou na outra língua, o professor deve dar a informação”, diz.
A escola bilíngue Maple Bear segue o preceito de trabalhar dois idiomas respeitando o tempo de aprendizado das crianças. Para isso, aplica o conceito canadense de “instrução diferenciada”, que traz flexibilidade do aprendizado. “Podem ser grupos flexíveis que progridem no seu próprio ritmo e com apoio focado do corpo docente, ou a realização, em torno de um tema, de atividades diferentes para cada aluno, respeitando seu estilo de aprender”, explica Jim Leary, diretor pedagógico para a América do Sul.
Outra questão é a época de começar. Ana Paula Mariutti, presidente da Organização das Escolas Bilíngues de São Paulo, diz que não existe uma idade certa, mas sim uma idade em que a língua é tratada com mais naturalidade. “Muitos pais pensam que colocar o filho em uma escola bilíngue cedo não adianta porque ele não entende nada. Mas só aprendemos a língua quando somos expostos a ela”, diz.
Internacionais ou bilíngues? | |
Apesar de as escolas internacionais se considerarem bilíngues e de as bilíngues muitas vezes oferecerem a oportunidade de obter um diploma internacional, tradicionalmente, uma escola internacional é aquela que está habilitada para ensinar o currículo de um outro país (o que permite que os estudantes egressos sejam aceitos por universidades estrangeiras com mais facilidade), enquanto uma escola bilíngue é aquela que usa no mínimo dois idiomas para ministrar as disciplinas tradicionais e o currículo nacional (embora muitas vezes ele seja complementado com o internacional). Se antes o público dessas escolas era praticamente todo estrangeiro, hoje é, em sua maioria, composta de brasileiros interessados em uma formação mais ampla. No Brasil, ainda existem outros três subtipos de escolas bilíngues: as interculturais indígenas, escolas para surdos e as de fronteira, que recebem docentes de países vizinhos que ministram aulas de espanhol. |
Adoção gradativa | |
Há escolas monolíngues no Brasil que estão investindo na implantação do ensino bilíngue. O Colégio Dom Bosco, que integra o Sistema de Ensino Dom Bosco, é uma delas. Até 2016, a instituição oferecerá a opção de ensino bilíngue para as famílias. A ideia é acostumar os alunos a um segundo idioma usado no dia a dia escolar. Primeiro vão acostumar os professores (que dão aula em português) a utilizar sempre dicionários em sala de aula para trabalhar com os estudantes palavras do conteúdo em inglês. Depois, os alunos refarão provas dos anos anteriores, mas traduzidas para o inglês. Assim, gradativamente, estratégias de implantação do inglês serão introduzidas, com provas a cada seis meses para garantir que os alunos estão adquirindo vocabulário na segunda língua. O sistema recomenda às escolas que seja criado o período integral, um em português de acordo com os PCNs, outro em inglês, com os padrões internacionais. Outra experiência está sendo feita pela Systemic Bilingual, um conjunto de método, formação e material criados pelas irmãs alagoanas Fátima e Vanessa Tenório e presente em 45 escolas brasileiras, da educação infantil ao 7º ano do ensino fundamental. Um dos princípios é aumentar o custo do ensino o mínimo possível, para não haver muita diferença na mensalidade. Por isso, a Systemic trabalha com a proposta de um professor de inglês dar aulas em inglês sobre todas as disciplinas, complementando e trabalhando paralelamente com os professores especialistas. A Systemic não alfabetiza em inglês – apenas aproveita a alfabetização em português para introduzir o segundo idioma. |