Hábito à primeira vista estranho, a leitura de dicionários pode traduzir-se no ato de retirar o pó acumulado sobre vocábulos, revelando os segredos que estes trazem ocultos
Publicado em 10/09/2011
Eu era adolescente e, certa vez, no colégio, vi um de meus professores com um dicionário nas mãos. Perguntei-lhe que palavra queria encontrar. E ele respondeu que não estava em busca de nada em especial. Não estava folheando para localizar um verbete em concreto, mas lendo o dicionário como se fosse um livro "normal".
Esta imagem (mais de 30 anos se passaram) volta à minha mente com certa frequência. Os dicionários são livros "normais". Mais do que consultados em casos de necessidade ou urgência, podem ser degustados a qualquer momento, como se nos contassem uma história. A história das palavras, dos conceitos, das acepções, dos usos…
Temos dicionários que nos levam pelos caminhos da etimologia. Há entre nós, bem traduzido do idioma espanhol, o
Oculto nas palavras: dicionário etimológico para ensinar e aprender
, de autoria dos professores Luis Castello e Claudia Mársico (Editora Autêntica, 2007). As palavras do dia a dia escolar – "avaliação", "exame", "curso", "oficina", "caderno", "congresso", "lápis" – têm sentidos ocultos, soterrados pela poeira do uso automático, estático… ou burocrático.
Descobrir, retirar as camadas de pó que se acumularam sobre as palavras, saber o que está oculto nos faz um pouco mais cultos… "Cultos" no sentido etimológico também. É culto aquele que cultiva sua própria inteligência e sensibilidade. Cultiva o estudo, fomenta a curiosidade, a capacidade de interpretar.
A palavra "exame", por exemplo, oculta exigências. Todo exame é exigente, na verdade. Tanto o exame de sangue como qualquer outro, dentro ou fora da escola. Os exames pedem que a pessoa dê um pouco do próprio sangue. A palavra está vinculada ao latim
exigere
, vocábulo composto de
ex
mais
agere
. Obriga-nos, portanto, a agir (
agere
) e a sair (
ex
) de nós mesmos, a dar o melhor do que tivermos. Há vários significados circulando em torno dos verbos latinos
examinare
e
exigere
– "exigir", "examinar", "analisar", "fazer cumprir", "medir", "apreciar", "julgar" e até… "torturar". E tudo isso é avaliar!
Dicionários para ganhar ideias
Que ninguém reclame da falta de ideias ou inspiração. Os dicionários guardam e revelam. São tesouro sem fim a explorar. E há um tipo de dicionário muito útil para remexer a água parada do pensamento. Em 2010, pela editora Lexikon, saiu a segunda edição (atualizada) do
Dicionário analógico da língua portuguesa
. As palavras se desdobram e se multiplicam, indicam outras e viajam. Mestre é mentor, que pode ser também corifeu, que se tornará orientador, correndo o risco de virar um mero doutrineiro, com chances de recuperar-se na forma de educador, pedagogo, docente, autodidata e… paracleto.
Como se estivessem de mãos dadas, palavras, expressões e frases se aglomeram ao redor de determinados temas. Para o bem e para o mal. Porque há ensino e o seu contrário: o desensino. O ensino falho tem a ver com o desserviço, que tem a ver com o caminho resvaladiço, com a carência de métodos, e com desnortear, enfarinhar. No limite, com ensinar os peixes a nadar…
Também há dicionários especializados em frases inspiradoras, capazes de deflagrar textos e teses, versos e conversas, aulas e palestras, como o
Conversando é que a gente se entende
, de Nélson Cunha Mello (Editora Leya, 2009), compêndio de expressões coloquiais, rico patrimônio que pertence a todos.
Para nos concentrarmos apenas no âmbito do educar/ensinar, temos "ensinar o caminho das pedras" (não faltará uma pedra no meio do caminho…), "aprendiz de feiticeiro" (em tempos de Harry Potter…), "enfiar a cara no livro" (indicando um agir sem hesitação), e "com todas as letras" (supondo-se que, analfabeto ou não, cada um pode falar com clareza o que pensa).
Vários dicionários
Dicionários são inventários que nos ajudam a reinventar os sentidos. José Pacheco publicou dois pequenos dicionários. Um de absurdos em educação (Artmed, 2009), e outro de utopias da educação (Wak, 2009). Em ambos, oferece críticas e esperanças. Aproveitando a estrutura alfabética, organiza seu pensamento, dando ao leitor pelo menos dois métodos de leitura. Ir de A a Z, o que não deixa de ser um roteiro de prazer. Ou passear aleatoriamente, começando (ou não) pelo P, com "prova" e "professor", abordando (ou não) o C, de "comunicação" e "consenso", e desembocando (ou não) no L, de "ler" e "lazer".
Em sua definição mais ampla, dicionários são repertórios de todos os tipos. Assegurada essa característica essencial, está aberto o campo da criação. Vejamos o
Dicionário de lugares imaginários
, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Cia. das Letras, 2003). Que nos ensina a admirar e praticar o poder da imaginação para descobrir países inexistentes, cidades perdidas, ilhas fantásticas, continentes, reinos, aldeias, castelos, espaços inusitados, enfim, onde podemos experimentar outros ares e valores.
A experiência dessas viagens por lugares como a ilha dos Ciclopes (
Odisseia
, de Homero), a terra do Nunca (
Peter Pan
, de James M. Barrie), o país das Maravilhas (
Alice
, de Lewis Carroll), Nárnia (dos romances de C. S. Lewis), o castelo da Dúvida (
O peregrino
, de John Bunyan), Eufonia, a cidade musical (invenção literária do compositor Berlioz), são um elogio ao faz de conta.
E pela fantasia, alcançamos a realidade. Mergulhados no cotidiano como peixes dentro d’água, não conseguimos analisar a própria água. O elemento mais familiar é o mais estranho. Saindo para outros mares, pela leitura, reaprendemos a ver os lugares em que estamos. Na terra temperamental, criação de Salman Rushdie em seu
Haroun e o mar de histórias
(Cia. das Letras, 2010), o clima e as condições físicas foram substituídos pelo clima que habita o interior dos habitantes.
Se o povo estiver feliz, o sol brilhará durante a noite. Se o povo estiver irritado, será noite em pleno dia. Os terremotos serão consequência de um eventual estado de ódio. Esta terra não está muito longe daqui. Nela vivemos, transformando o ambiente de acordo com nossos sentimentos, paixões, escolhas, condutas. As tempestades e as bonanças no campo educacional têm uma origem identificável. Muito (ou tudo?) das condições objetivas nascem na cabeça e no coração de todos nós.
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Gabriel Perissé
(
www.perisse.com.br
)
é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado/Doutorado da Universidade Nove de Julho (SP)