Benefícios e malefícios das palestras, segundo o ponto de vista do ouvinte
Publicado em 10/09/2011
Os
males do tabaco
(*), monólogo dramático em um ato, de autoria do escritor russo Anton Tchékhov (1860-1904), lembra humoristicamente o que ocorre em muitas palestras ministradas no âmbito educacional. O personagem, Márkel Iványtch Niúkhin, vai falar sobre os malefícios do fumo, embora ele próprio seja fumante. Quem escolheu o tema foi sua esposa, dona de um pensionato para moças, no qual o improvisado palestrante trabalha, realizando mil e uma tarefas.
O conferencista está inseguro, o tema não lhe cai bem. As anotações que consulta revelam falta de espontaneidade. Pressionado pelas circunstâncias, precisa afirmar que possui grande interesse pela ciência. Fosse qual fosse o tema, recorreria ao mesmo discurso estereotipado:
Como tema de minha conferência
de hoje escolhi o mal que acarreta
ao ser humano o uso do tabaco.
É difícil, naturalmente, esgotar
toda a importância do assunto
numa conferência, mas tentarei
ser sucinto e tratar apenas do
essencial… Como inimigo da
popularização serei rigorosamente
científico e proponho aos
senhores ouvintes que percebam
toda a importância do assunto
e que encarem minha presente
conferência com a devida
seriedade… Mas se alguém for
dado a futilidades, se a aridez do
discurso estritamente científico
assustar a alguém, então deve não
escutar e retirar-se!
Nenhuma palestra pode esgotar assunto algum. É redundante afirmá-lo. E perda de tempo. Ou uma forma de o palestrante ganhar preciosos minutos, e alegar depois que o tempo foi insuficiente para abordar a questão com a devida profundidade.
O gênero palestra tem suas peculiaridades. Uma delas é justamente a de apresentar um tema sem a pretensão de dizer tudo em tempo limitado. A brevidade é necessária. Mas que o essencial seja tratado de modo que os ouvintes não se sintam defraudados ou frustrados. Que saiam da palestra com uma ou duas boas ideias para posterior reflexão.
O palestrante que subestima o público ou que lhe faz ameças veladas manifesta uma vez mais sua insegurança. Se alguém se predispôs a assistir a uma palestra, tem condições de aproveitá-la em alguma medida. Vale aqui um princípio básico da comunicação – cada um capta o máximo que pode. Ou, recorrendo a um antigo adágio, muito usado pelos escolásticos:
quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur
, isto é: "o que é recebido, é recebido segundo o modo de ser de quem recebe".
O palestrante deve estar ciente de que suas palavras serão interpretadas, ampliadas, reduzidas, e por vezes deturpadas, mas nada disso o autoriza a desfazer daqueles que estão ali, dispostos a ouvi-lo.
Digressões e divagações
Uma palestra corre o risco de nos levar às profundezas… do tédio. Palestrantes que leem seus textos em lugar de falar com vibração e empatia, olhando o público, dialogando com ele; palestrantes que repetem o repetitório, o óbvio, com ares de quem trouxe a última notícia; ou aqueles que se apoiam na "powerpointização" do discurso, outra forma de esconder-se… palestrantes que não palestram (não conversam, afinal, pois é isso que significa "palestrar") fazem com que muitos tremam ao saber que há palestras no horizonte.
Na peça de Tchékhov, o personagem prometeu apresentar os grandes males do tabaco. Começou a fazê-lo, acrescentando, porém, que pode ser empregado pela medicina em alguns casos. Haveria então benefícios a serem explorados. Nesse momento, estando a palestra a ponto de "decolar", o conferencista entra em crise, perde o rumo, começa a divagar:
Já faz muito tempo… venho
sofrendo crises de sufocação…
asmática… Esta doença começou a
me atacar no dia treze de setembro
de mil oitocentos e sessenta e
nove… no mesmo dia em que
nasceu a sexta filha da minha
senhora… a Veronika. Ao todo
são exatamente nove as filhas da
minha esposa… é que filho não
há nenhum – do que, aliás, minha
senhora muito se alegra, já que
filhos homens num pensionato
de moças seriam, sob muitos
aspectos, um estorvo…
É natural que numa palestra surjam, como condimento usado com sabedoria, elementos da vida pessoal do palestrante. Tornam o evento menos frio, menos protocolar. Palestrantes que falam sobre temas educacionais devem ilustrar suas considerações com relatos baseados em sua experiência de educadores e pesquisadores. O público agradece.
Algo bem diferente é transformar a palestra numa confidência pública. O que tem a ver a asma do cidadão com os malefícios do tabaco? O que o fato de ter nove filhas ajuda a compreender os efeitos da nicotina no organismo humano?
Digressões são úteis quando distraem… para atrair a atenção. Trata-se de uma técnica de oratória simples. O palestrante abandona o tema momentaneamente, deixa-se levar por uma questão paralela. Paradoxalmente, diante desse respiro, todos recuperam a concentração. O personagem de Tchékhov, no entanto, já não sabe o que fazer, e perde o controle:
Esqueci de lhes dizer que no
pensionato de minha senhora,
além da administração, cabe-me
também lecionar matemática,
física, química, geografia, história
e didática. Além dessas matérias,
são ensinadas no pensionato da
minha senhora as línguas francesa,
alemã e inglesa, a religião,
trabalhos manuais, desenho,
música, dança e boas maneiras.
Como os senhores podem ver, o
curso é mais que ginasial. E que
comida! E que conforto!
Vai ainda mais longe. Esquecendo-se do tabaco, fica emocionado e aflito, ao pensar que suas filhas ainda estão solteiras. E ao revelar esta sua apreensão, comunica aos presentes que as moças podem ser vistas nas festas de uma certa Natália Zavertiúknaia.
No final, comete um último erro. Depois de desperdiçar o tempo e fugir ao essencial, interrompe bruscamente a palestra:
[…] em virtude da escassez do
tempo não vamos nos afastar do
tema. Tinha parado no tétano.
Em sendo assim (consulta o
relógio), até uma próxima
oportunidade. (Arruma o colete e
sai majestosamente.)
Cai o pano. Não se sabe se houve aplausos. Talvez sim. Aplausos de alívio porque tudo terminou. Pelo menos até uma próxima sessão de perda de tempo…
(*) Em: TCHÉKHOV, Anton.
Os males do tabaco e outras peças em um ato
. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2003.
*
Gabriel Perissé
(
www.perisse.com.br
)
é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado/Doutorado da Universidade Nove de Julho (SP)