NOTÍCIA
Pesquisa relaciona uso de sistemas de ensino a melhora no desempenho da Prova Brasil e reacende questões sobre formação de professores e visão de educação pública no país
Publicado em 10/09/2011
A pesquisa, liderada pela pedagoga Paula Louzano, em parceria com Francisco Soares, da UFMG, analisou os resultados de 291 municípios paulistas. À primeira vista, o ganho parece mínimo. Mas um aluno de 4ª série que deseja sair do nível básico para o nível adequado na 8ª, quando prestará novamente o exame, deve incorporar 50 pontos em sua nota, de um total de 500. É como se ele precisasse ganhar 12 pontos por ano, em um período de quatro anos. “Se ele aumenta cinco, é quase a metade do que precisa”, explica Paula.
As hipóteses levantadas pela pesquisa para explicar o efeito das apostilas são preocupantes. Os sistemas ajudam o professor em aspectos que, teoricamente, ele deveria dominar de antemão, tais como: conhecer o conteúdo da disciplina que ensina, não deixar lacunas em relação aos objetos de aprendizagem e dar uma aula mais estruturada e planejada. Trata-se, portanto, de um docente sem autonomia, que necessita de um roteiro pronto para ministrar uma aula. “A questão é: por que quando você tira autonomia do professor o resultado melhora?”, pergunta Paula. Essa é apenas uma das questões que se colocam a partir do resultado. O professor é realmente incapaz de elaborar um planejamento próprio de aula? O investimento em sistemas de ensino não pode ser concomitante com a reformulação dos cursos de formação de professores e do currículo escolar? E mais: que tipo de educação os apostilados trazem para dentro da sala de aula?
PNLD versus apostilados
Mesmo com a oferta gratuita de livros didáticos por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), quase metade dos municípios paulistas compra sistemas estruturados públicos ou privados para suas redes. Em outras palavras, 1,2 milhãode alunos recebe apostilas de empresas como Anglo, COC, Positivo, entre outras, ou material elaborado pelas próprias redes. Com as apostilas, os sistemas de ensino vendem serviços de capacitação dos professores, para que todos aprendam a usar o material. A versão da apostila para o docente funciona como um guia de aula. Nesse sentido, Paula enxerga que um dos benefícios trazidos pelos sistemas estruturados é justamente a organização do trabalho docente e escolar. “A autonomia do professor não necessariamente se traduz em melhoria de aprendizagem. É preciso ter um currículo”, defende.
A suposta incapacidade docente de elaborar um plano de aula próprio esconde uma questão conhecida para quem pensa políticas públicas em educação no país: a precária formação docente. Romualdo Portela, da Feusp, diz que, ao colocarmos os sistemas de ensino como solução à falta de preparo do professor, esquecemos de resolver uma tríade famosa: a atratividade, a reforma e a retenção nos cursos de formação docente. Leda Scheibe, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vai além. Para ela, os apostilados acabam substituindo também o currículo, e acabam agindo como uma grande “bengala”. “Ele nem olha mais as diretrizes curriculares. Por esse raciocínio, qualquer professor com instrução básica pode dar aula de qualquer matéria, já que o material vai servir de guia”, diz. Sua avaliação é de que se cria uma falsa percepção de que a apostila acaba dando conta de outras variáveis que incidem sobre a aprendizagem do aluno, como o nível socioeconômico e questões emocionais do docente e do estudante.
Paula reconhece que o impacto dos materiais no longo prazo tende a ser menos relevante. Apesar de não ter uma resposta certeira sobre isso, ela arrisca dizer que talvez ele seja forte apenas no início, já que o quadro é caótico. “As mudanças que eles propõem são simples. Dar o conteúdo é uma delas”, diz. Nesse quesito, sua opinião é clara: enquanto não há mudança nos cursos de formação de professores e no currículo, é preciso fazer algo pelas crianças que estão em sala de aula hoje. “As duas coisas devem ser feitas ao mesmo tempo, mas os alunos de hoje não podem esperar por algo que vai acontecer daqui a cinco anos”, explica.
No que diz respeito à formulação de políticas públicas, a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar, afirma que o Ministério mantém como foco a formação inicial e continuada. Para ela, os sistemas se configuram como solução pontual e paliativa – o problema de aprendizagem seria muito mais complexo do que oferecer apostilas. “Sou contrária a soluções ‘muleta’ e a favor de ensinar o professor a caminhar sozinho. Agora ele está num momento de fragilidade e pode usar o material, mas o ideal é que abra mão dele depois”, afirma. Como o MEC não pretende avaliar os sistemas de ensino ou adotar as apostilas no PNLD, continuará apostando no livro didático e nos incentivos à formação docente.
Durante o evento de apresentação da pesquisa, secretários municipais de educação e outras pessoas presentes apontaram duas falhas do livro didático, que forçariam as redes a buscar outra opção. Uma delas é o fato de o livro não ser consumível: como deve ser aproveitado no ano seguinte, o aluno acaba não levando o material para casa, com receio de que seja inutilizado. Maria do Pilar afirma que, a partir deste ano, os alunos dos 1º e 2º anos do ensino fundamental podem ficar com os livros. Mas não há intenção do MEC em expandir essa política. “É um programa feito com recurso público. Os livros devem ser aproveitados. Eu e minhas quatro irmãs usamos o mesmo livro”, relata.
A outra falha do PNLD estaria relacionada ao processo de recebimento dos livros. Cleide Bauab Eid Bochixio, secretária municipal de Santo André, conta que em 2009, quando optou por aderir ao PNLD, não recebeu livros suficientes para a rede (veja box na página 52). “Tentei complementar, mas as editoras não tinham mais exemplares. Além disso, cada escola adota um, não há um padrão”, diz. Ao invés de comprar um sistema apostilado, Cleide optou pela elaboração de um material próprio da rede de Santo André. Em setembro, os professores aplicarão o que já foi discutido até o momento e farão novas sugestões. A previsão é de que o processo termine em 2012. “Uma das maiores dificuldades é que o professor se sente numa camisa de força com o sistema estruturado. O nosso não vai ser, já que estamos construindo com ele”, aponta.
Esvaziamento
A pesquisa da Fundação Lemann partiu da suposição de que estruturar as aulas e estabelecer um controle indireto do que acontece nas salas de aula pode ter impacto positivo no aprendizado do aluno. Diante de uma hipótese que já dá o impacto como positivo, é possível questionar se o resultado não mudaria caso a hipótese fosse outra. “Se eu digo que é positivo, necessariamente deixo de lado outras variáveis que incidem sobre a aprendizagem. O estudo é direcionado e foca variáveis que interessam a quem encomendou a pesquisa. Seria mais correto dizer que o impacto é positivo em um teste específico, e não na aprendizagem”, opina Leda Scheibe. Paula Louzano defende que o que poderia enviesar a pesquisa não é a hipótese, mas o método. “A partir de pesquisa qualitativa, tive a percepção de que o impacto era positivo. Isso me ajudou a formular a hipótese. Independente dela, o desenho seria exatamente o mesmo”, explica.
Romualdo Portela, da Feusp, considera que este é um problema menor. Sua grande preocupação é com o tipo de educação da qual se fala nesse debate. Ao testar iniciativas que têm como objetivo principal o aumento de proficiência em uma prova, assume-se um risco. “Há uma grande diferença entre uma boa experiência educacional e o aumento de resultado em uma prova”, explica. Ele exemplifica: um secretário de educação pode se ver obrigado a comprar um sistema de ensino porque precisa melhorar a nota do Índice de Educação Básica (Ideb) de seus alunos. Quando isso acontece, a discussão passa a ser em torno dos resultados, e não da qualidade do processo de aprendizagem. “O argumento de que há problema na formação é pragmático e forte, mas é preciso pensar em longo prazo. O que é decisivo para a criança é aprender a pensar, é preparar-se para o tipo de trabalho moderno. É uma educação que vai além disso”, diz.
Ao falar em sistemas estruturados, Leda Sheibe lembra da pedagogia tecnicista, movimento alicerçado no princípio da otimização (racionalidade, eficiência e produtividade) que predominou no país nas décadas de 60 e 70. Ela considera que as apostilas são uma espécie de tecnicismo reconfigurado e um contraponto a uma abordagem mais humanista da educação. “Esse modelo visa que o aluno se saia bem em determinados testes que privilegiam conhecimentos específicos. Não há uma escolarização que envolva a formação do cidadão para a vida e para o mundo”, diz.
Valéria Tanese foi professora durante 20 anos na rede municipal de Capivari, interior de São Paulo, e não chegou a lecionar com apostilas. Hoje, ela é supervisora de ensino e trabalha com o material do Anglo em todas as escolas. Sua experiência mostra que, apesar de as apostilas nortearem o trabalho docente, é preciso acrescentar algo ao que já está pronto. “A apostila evita a falta de planejamento e a ênfase dada em apenas algumas matérias pelos professores. Nortear é bom. Mas o professor não pode ficar só nisso. Deve buscar outras didáticas e oportunidades para que amplie suas aulas”, conta.
Faltam livros didáticos? | |
O problema de distribuição dos livros didáticos não é constante, mas quando acontece vira escândalo. A afirmação é de Rafael Torino, diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão responsável pela execução do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Ele identifica quatro motivos para a falha. O primeiro é o preenchimento incorreto dos dados do Censo Escolar por parte dos municípios. Como o número de livros é calculado a partir das matrículas do ano anterior, a quantidade de livros enviados pode sofrer alterações. Outro problema é que determinadas regiões apresentam, de um ano para outro, crescimento demográfico escolar anormal. Foi o que aconteceu com Brasília em 2009: houve um aumento fora da média no número de alunos do ensino fundamental. Rafael também explica que o livro didático foi feito para durar três anos. Como seu controle fica nas mãos da escola, há exemplares que se perdem. Mesmo assim, o FNDE envia um adicional de reposição no valor de 15% do total. De acordo com ele, há a distribuição inicial, calculada com base no valor do Censo, mais um adicional de reposição e outro adicional de complementação. Esse último é chamado de “reserva técnica” e fica nas mãos das secretarias estaduais de educação. Se mesmo com o valor total e o adicional de reposição o município detectar a falta de livros, pode acionar o estado para receber a reserva técnica. “Mas o estado pode se recusar a atender. Pode achar que deve ficar com o livro, por exemplo”, diz. Para o coordenador, menos de 10% das localidades enfrentam problemas com a distribuição. “Há casos de livros que sobram também. No ano passado, recebemos reclamações de estados porque eles não tinham mais onde guardar os livros. Esses relatos também acontecem”, afirma. |
Concentração de mercado | |
O segmento dos sistemas de ensino foi manchete dos principais jornais do país em julho: o Grupo Abril, dono do sistema Ser, comprou o Anglo. Agora, a Abril é a segunda maior empresa do setor no Brasil – a primeira é o Positivo e a terceira, o Objetivo. A estimativa é de que o grupo criado a partir da fusão fature cerca de R$ 500 milhões neste ano. O Anglo era o único sistema de ensino de grande porte que ainda era controlado integralmente pela família fundadora. O valor da negociação não foi divulgado. |