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O bibliotecário e a mediação

Iniciativas comunitárias que apostam no poder libertador da leitura são louváveis, mas não eximem os governos de sua responsabilidade de criar uma rede articulada de bibliotecas

Publicado em 10/09/2011

por Ezequiel Theodoro da Silva


Ônibus biblioteca, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, visita a Praça Traveiro do Campo, Jardim Helena, em São Paulo

“Talvez nenhum lugar em qualquer comunidade seja tão amplamente democrático como a biblioteca pública. A única exigência para entrar é o interesse!” –
Lady Bird Johnson

Por várias vezes, em diferentes lugares do Brasil e do exterior, afirmei que uma revolução qualitativa da leitura brasileira tem de contemplar, necessariamente, questões relacionadas com a existência de uma rede articulada de bibliotecas e pela ampliação pedagógica do trabalho dos bibliotecários.

Neste texto, retomo, reitero e amplifico esse posicionamento mesmo porque os governos continuamente cometem verdadeiros crimes para escamotear as necessidades de trabalho científico, tecnológico e técnico no âmbito da organização e disponibilização de acervos de leitura para as múltiplas comunidades existentes nas regiões brasileiras.
As duas pesquisas nacionais sobre hábitos de leitura do povo brasileiro, publicadas com o nome “Retratos da Leitura” (ver
http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/texto.asp?id=48

), mostram que 34% da população nunca foi a uma biblioteca; nas classes D e E, esse percentual sobe para 49%. Esses indicadores mostram a imensa distância que existe entre a casa do cidadão e os espaços formais onde se tem acesso à cultura escrita.


Inexistentes ou anacrônicas


Tais “retratos”, em verdade, apenas fazem redundar o óbvio no que se refere às bibliotecas: ou elas inexistem ou estão paradas no tempo ou ficaram apenas nas intenções, sem nunca terem sido organizadas e postas a funcionar condignamente. Em que pesem os cursos de biblioteconomia e de ciências da informação, a mostrar, de forma escancarada, que existe profissional graduado e habilitado para atuar na sociedade, a atitude das autoridades tem sido a de fuga ou de esquiva da responsabilidade, deixando que as comunidades “se virem” no que se refere à convivência com livros e outros suportes de escrita.

Recentemente, telefonou-me uma repórter de um jornal curitibano para perguntar o que eu achava de uma experiência de formação de uma biblioteca comunitária. Disse-me ela que os catadores de lixo da cidade tinham “catado” livros e revistas e fundado uma biblioteca para o segmento de catadores de lixo. Louvei a iniciativa, informei que os livros poderiam expandir os horizontes de mundo dos catadores de lixo etc., etc., mas, quando disse que era o governo que deveria organizar e manter as bibliotecas, a repórter entrou em parafuso, achando que não dera a devida importância à iniciativa grandiosa daquela comunidade.

Essa experiência com a “biblioteca catada” não é muito diferente de outras que conheço pelo Brasil, como borracharia-biblioteca, baú-biblioteca, peixaria-biblioteca, boteco-biblioteca, jumento-biblioteca etc., enaltecidas e espetacularizadas pela mídia como soluções absolutas para o problema da nossa vergonhosa situação nessa área. Numa análise mais fria e crítica e sem querer de maneira nenhuma desmerecer as iniciativas do borracheiro, do peixeiro e/ou do dono do jumento, o que vemos, de maneira reiterada, é a escamoteação dos governos, no passar dos anos, com aquilo que é mais do que claro, cristalino e evidente: que sem bibliotecas na real acepção da palavra e sem gente especializada, formada em biblioteconomia, para dinamizá-las profissionalmente, continuaremos incentivando os arremedos e, pior, curvando-nos à fuga de responsabilidade pelas esferas governamentais.

“Melhor isto do que nada”, dirão as más línguas. E talvez a minha própria língua já tenha dito isto à luz das possibilidades libertárias dos processos de leitura em si: o fenômeno de que a leitura autônoma pode levar à emancipação das pessoas e gerar a consciência das necessidades. Esse processo pode ser mais bem conhecido através da leitura do livro O queijo e os vermes – o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido, de Carlo Ginzburg (Companhia das Letras, 1987). Entretanto, o crescimento do número de livros desses acervos comunitários, a diversificação dos suportes da leitura, a organização, preservação e recuperação das obras, a sofisticação dos serviços de apoio aos usuários, a seleção de livros de interesse da comunidade em seus segmentos (infantil, adulto, 3ª idade) impõem, necessariamente, a presença de serviços especializados para fazê-los. E daí a esperança de que o profissional bibliotecário possa ser envolvido para cuidar dessas tarefas e encaminhar os trabalhos de maneira objetiva e embasada nos saberes sistematizados, oriundos da área de biblioteconomia.

Os estereótipos em torno da figura do bibliotecário são também escaramuças para se esquivar da responsabilidade de sua contratação para trabalhos em diferentes tipos de bibliotecas, principalmente as escolares e as comunitárias. De fato, ao longo da nossa história e sendo muito fortalecida após a década de 1960, foi construída a imagem do bibliotecário como um trabalhador insensível, normatizado e normativista, catalogador de livros, controlador do silêncio dos espaços, estafeta dos castigos escolares, que em muito contribuíram para a sua “dispensa” no momento de constituição e de desenvolvimento das bibliotecas.


A briga de Darcy Ribeiro


Recordo-me, por exemplo, das grandes escaramuças entre Darcy Ribeiro, trabalhando para o governo Brizola no Rio de Janeiro (1983-1987), e a classe dos bibliotecários, com aquele afirmando que estes nada tinham a contribuir com a educação pública e com os CIEPs então estruturados. Tal estereótipo, infelizmente, ainda está muito presente no imaginário de muitas autoridades brasileiras, mas convém perguntar a quem esse estereótipo está servindo realmente… No meu ponto de vista, ele também serve à política de esquiva que vem sendo adotada pelos governos em relação à implantação de bibliotecas municipais, escolares e comunitárias neste país. Quer dizer, em se tratando de bibliotecas, sempre se dá um jeitinho e dentro desse jeitinho o bibliotecário nunca está incluído!

Para não colocar o bibliotecário como “vítima” de uma história meio ao contrário, acredito ser também importante uma visada crítica para dentro dos cursos de biblioteconomia ou de ciências de informação, oferecidos por diferentes instituições de ensino superior. Com o fim das habilitações, são raros os cursos que desenvolvem uma base adequada de conhecimentos e práticas para atuação que não seja em centros de informações e/ou empresas. A realidade escolar e as realidades comunitárias não são refletidas e discutidas ou então são tangencialmente tratadas, fechando o círculo vicioso de que o governo não contrata bibliotecários para as escolas e comunidades e, portanto, não existe por que tratá-las durante o período de formação básica. Daí que, quando da necessidade de profissionais para trabalhar nas bibliotecas escolares, ajeita-se, às carreiras, uma oficina rápida para que professores ou membros de uma comunidade recebam dois pingos de biblioteconomia para “tomar conta da biblioteca”.

Em recente visita que fiz a minha cidade natal, cruzei com a filha de um amigo que, sei, possui tão somente o diploma do ensino fundamental. Portanto, sem ensino médio e muito menos o superior. Depois dos apertos de mãos e dos abraços, perguntei o que ela vinha fazendo. Ela me disse que era a responsável pela biblioteca da faculdade local e me pedia, naquele instante, que eu enviasse os meus últimos livros porque os professores e alunos tinham muito interesse nos meus escritos.


Um navio à deriva


Ora, sem querer desmerecer a escolaridade dessa conhecida e sua dedicação à biblioteca, fiquei perguntando se uma biblioteca de ensino superior poderia ser responsavelmente organizada e dinamizada por uma pessoa tão jovem e com formação leiga ou muito precária. Vê-se, aqui, mais um episódio desta comédia tragicômica chamada “biblioteca brasileira”. Sei, também, por exemplo, que falar para muitos prefeitos sobre a necessidade de contratação de bibliotecário é estar disposto a ouvir impropérios de volta.

Finalizando esta reflexão, creio que a melhor imagem da problemática das bibliotecas no Brasil seja a do filme E la nave va, de Federico Fellini. De fato, igual ao infindável problema da leitura no país, “haja paciência” para tanta contradição, para tanto descaso, para tanto cinismo. Se considerarmos uma biblioteca como um lugar para o qual constantemente nos dirigimos a fim de incrementar a nossa humanidade, então cabe indagar se a falta de humanidade em solo nacional, reiterada pela mídia todos os dias, não tem uma relação com a ausência e falta de bibliotecas em solo brasileiro.


Ezequiel Theodoro da Silva


é professor colaborador voluntário junto à Faculdade de Educação da Unicamp. Foi Presidente da Associação de Leitura do Brasil (ALB) de 1982 a 1986 e de 2007 a 2008. Foi secretário municipal de Cultura, Esportes e Turismo e secretário municipal de Educação de Campinas na década de 1990.

Autor

Ezequiel Theodoro da Silva


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