Nas últimas décadas, o sistema judiciário tem interferido diretamente nas políticas públicas e na exigência do cumprimento dos direitos à educação. Tendência reforça a defesa de direitos consagrados pela Constituição, mas há casos em que a pena do juiz não se afina com a experiência pedagógica
Publicado em 10/09/2011
Que educação é um direito constitucional, garantido a cada cidadão brasileiro, é de conhecimento público. Segundo a Carta Magna, "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". É o que diz o artigo 205 da Constituição, que também prevê a erradicação do analfabetismo; a universalização do atendimento escolar; a melhoria da qualidade do ensino; a formação para o trabalho; e a promoção humanística, científica e tecnológica do país (Art. 214).
"A educação é o primeiro dos direitos. Vem antes até mesmo da saúde, pois, a partir dela, é possível capacitar a pessoa para a vida em sociedade. A educação tem a vocação de ser um direito assecuratório do exercício de todos os demais direitos", afirma Motauri Ciocchetti de Souza, promotor da infância e da juventude de São Paulo.
Apesar de contemplada desta forma na Constituição, fazendo nosso marco legal ser tido e havido como um dos mais avançados, em muitos casos o que deveria ser regra, ou seja, o acesso à escola e a qualidade do ensino dele derivado, ainda é exceção. Não são raros os casos em que decisões do Supremo Tribunal Federal tornam-se políticas públicas e em que a justiça é acionada para garantir direitos que o Estado não consegue efetivamente assegurar. No entanto, é preciso questionar qual é o papel da Justiça, do Estado e da sociedade na garantia do direito fundamental à educação. E, nesse cenário, discutir também quais são os limites para a atuação do sistema judicial.
O papel da justiça
Em essência, os governantes deveriam cuidar da oferta de vagas e da qualidade do ensino e, quando isso não ocorresse, a Justiça entraria em ação. "Se fosse uma partida de futebol, o sistema judiciário deveria jogar no banco de reservas e só entrar em campo quando o Estado (titular do jogo) falhasse. Porém, como as falhas ocorrem mais do que deveriam, os reservas entram em campo com número reduzido e não dão conta da partida", afirma Motauri.
Como a realidade do Brasil nos faz lidar no dia a dia com o descumprimento das leis e com a não garantia de acesso aos direitos dos estudantes, o papel da Justiça tem se ampliado de forma expressiva. E é justamente nesse meio de campo que ela tem colaborado para, inclusive, mudar a mentalidade dos administradores públicos. "Quando comecei a atuar na área de defesa dos direitos das crianças com deficiência, em 2001, verifiquei que havia no Ministério da Educação (MEC) e no Conselho Nacional de Educação (CNE) o entendimento de que inclusão era uma ideia ou uma possibilidade. Para esses órgãos, ela se resumia a uma forma nova de pensar na educação dessas pessoas, mas não era vista como um direito fundamental delas", afirma a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero. Com o tempo, colocando as crianças e jovens com deficiência como titulares do direito à escola regular por meio de ações judiciais, a mentalidade começou a mudar. Hoje, inclusão é uma das políticas públicas sólidas do governo federal.
Os vestibulinhos são outro exemplo de como a justiça desestabilizou práticas inconstitucionais que se estabeleceram por anos e anos sem qualquer contestação. Era costume de escolas particulares a realização de provas de aptidão para decidir se uma criança podia ou não ter acesso ao ensino fundamental. "Isso fere a Constituição, pois essa etapa de ensino é direito inalienável e a criança não tem de provar nada para poder cursá-la. A ação da Justiça, nesse caso, também modificou a postura do MEC e do CNE", conta Eugênia.
Com base na ação, o CNE emitiu um parecer determinando que não poderia haver mais o vestibulinho, mas não o tornou público. Quando a procuradoria constatou que ainda havia escolas mantendo o vestibulinho em São Paulo, o Conselho Estadual de Educação foi acionado. Como resposta, afirmou que não estava obrigado a cumprir o parecer do CNE. "Entramos com uma ação contra a União, que não fez valer sua autoridade, contra o Estado de São Paulo e contra as três escolas particulares que declaram na imprensa ainda serem adeptas da prática", lembra Eugênia. Um das escolas mudou seu estatuto, pois afirmou que desconhecia a ilegalidade. Outras duas permaneceram como rés no processo.
Os limites da Justiça
Apesar de sua ação ser, no geral, positiva, é preciso discutir o que a Justiça deve ou não arbitrar. Em fevereiro deste ano, por exemplo, a juíza da comarca de Várzea Paulista (SP), a pedido do Ministério Público, impediu que a rede estadual de ensino no município continuasse a progressão continuada dos alunos de ensino fundamental e médio. O promotor que moveu a ação civil pública, Fausto Panicacci, afirmou que a ideia original da progressão continuada, implantada com sucesso em vários países para evitar o estigma do aluno reprovado e a evasão, foi distorcida pelo governo estadual. Ou seja, as crianças chegavam ao fim de cada ciclo sem o mínimo de conhecimentos necessários. Porém, nesse caso específico, a medida judicial colocou o foco na questão do sistema de ciclos. Ou seja, a Justiça deveria ter condenado a progressão continuada ou exigido da rede de ensino que providenciasse estrutura e capacitação dos docentes para que os ciclos tivessem sucesso? Afinal, pesquisas apontam que o que determina o sucesso ou o fracasso dos alunos não é o sistema adotado (de ciclos ou seriado), mas as práticas pedagógicas dos docentes.
Em entrevista ao jornal Agora (SP), Panicacci citou como outra justificativa ter visto um aluno com deficiência que "deveria estar na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae)" chegar à 7ª série "sem saber nada". Claro que o fato de um aluno (com ou sem deficiência) não aprender na escola é um descumprimento da lei. Mas não caberia contestar o direito de o jovem com deficiência estar na escola regular, pois a inclusão é uma prerrogativa constitucional.
Portanto, apesar de a ação da Justiça contribuir para a defesa dos direitos à educação, é preciso, por outro lado, discutir sobre o preparo e o conhecimento de promotores e juízes no que diz respeito às questões pedagógicas e educacionais e em que medida suas leituras de cada caso são baseadas por vivências e impressões pessoais. "Temos de desmistificar a neutralidade da ação do juiz. Defendemos que, em alguns casos, ele vá à escola e conheça de perto o que julgará. Nem sempre as problemáticas sociais podem ser resolvidas com a lógica judicial conservadora. Às vezes, é preciso uma audiência de conciliação ou um prazo para que o poder público cumpra seu dever", afirma Marcio Alan Menezes Moureira, assessor jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca/CE).
Para um, para todos e para sempre
Segundo o advogado Salomão Ximenes, da ONG Ação Educativa, de São Paulo, é importante pensar de que forma a Justiça pode fortalecer a educação sem tratá-la meramente como um direito individual. Para ele, na prática mais conservadora do direito, um juiz tende a arbitrar favoravelmente, por exemplo, se chegar à sua mesa uma lista, com nome e sobrenome, de mil crianças que aguardam vagas em creches. Isso dificulta, por exemplo, que as ações entrem no campo da expansão da rede e de seu planejamento para atender à demanda já existente e a latente. "Uma saída é entender a educação não apenas como um direito meramente individual, mas como um direito coletivo e difuso", diz Salomão. Afinal, a educação é um direito coletivo porque atende a toda a sociedade. E difuso porque supre a demanda presente e, consequentemente, gera estrutura para o atendimento das gerações futuras.
Foi com base nessa perspectiva que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o recurso do Colégio Pedro II, instituição pública federal de ensino médio da capital fluminense, contra a decisão do Tribunal Regional Federal que determinava a oferta de ensino médio no período noturno. A decisão baseou-se nas três dimensões do direito à educação (individual, coletivo e difuso), pois observava também os interesses daqueles que ainda não ingressaram no colégio, mas que poderiam ser atingidos pela extinção do curso noturno.
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O papel do Estado
Desde outubro passado, no Brasil, o ensino de 4 a 17 anos é obrigatório. No entanto, isso não garante que os alunos se matriculem, que deixem de evadir-se da escola ou que concluam seus estudos com sucesso. Ou seja, a oferta e o atendimento andam mal. Para o educador Vital Didonet, especialista em educação infantil, é dever do Estado tornar a escola atraente e instalar unidades onde a população pobre se encontra. "Obrigar alguém a estar na escola é incoerente com o que propõe a educação. E dizer que o pobre não se matricula porque não reconhece a importância do estudo é uma falácia, um discurso de gente engravatada que não sabe da realidade das favelas, dos povos das florestas e das regiões ermas do país", critica.
Para Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o problema também é crítico no ensino médio. Como até hoje se tratava de uma etapa não obrigatória (para os pais), muitos jovens não se sentem estimulados a cursá-lo (o que não tende a mudar imediatamente com a obrigatoriedade recentemente aprovada pelo Senado). No seu entendimento, deveria ser papel do Estado promover mudanças significativas no ensino médio para que os jovens vissem sentido em procurá-lo. "Em muitos países, essa etapa tem caráter terminativo, ou seja, o indivíduo, ao concluí-la, está apto a exercer sua cidadania e a pleitear uma boa vaga no mercado de trabalho. Como aqui o mercado é restrito e seleciona a mão de obra pela formação em nível superior, o ensino médio se resume à preparação para o vestibular", analisa Daniel.
Daí, por exemplo, é fácil entender por que apenas quatro dos seis milhões de alunos esperados pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), usado por algumas universidades como base de seleção, fizeram sua inscrição. Para Daniel, esses dois milhões de jovens estão desalentados, pois não acreditam no acesso a uma educação de qualidade no ensino superior. "O Estado deveria ser mais criativo para estimular os jovens de periferia de todo o país a enxergar no ensino médio uma forma de criar possibilidades para a sua vida. Isso, sim, é garantir o direito à educação plena, de acordo com a missão estabelecida para cada etapa na LDB", diz.
Ou seja, antes de tratar as questões do ensino sob a ótica judicial, os administradores devem questionar sua própria ação no que tange à natureza do direito à educação – além de informar a população sobre o assunto. No caso do ensino médio, por exemplo, se o Estado não é capaz de atrair e de fazer o jovem (que já vota e até dirige) compreender a importância daquela etapa de ensino, de que serve a obrigatoriedade?
Ainda sobre o que cabe ao Estado, vale lembrar que a Educação de Jovens e Adultos (EJA), que perdeu espaço na mídia e na pauta governamental devido às novas "prioridades" do ensino, também estagnou. Hoje, o país ainda tem analfabetos funcionais e, em muitos lugares, há salas de EJA sendo fechadas por falta de alunos. "A Constituição, a LDB e o Plano Nacional de Educação garantem o direito e a oferta de vagas na modalidade. Mas, diante da falta de procura, qual o dever do Estado: buscar essas pessoas ou esperar que apareçam?", pondera Salomão Ximenes. A Ação Educativa moveu uma ação em 2008, com o Ministério Público e outras organizações sociais, para a realização de um censo específico para identificar a escolarização de pessoas adultas (o que é previsto, inclusive, pela LDB).
O papel da sociedade
É dever de todo cidadão, de forma individual ou organizada, buscar o cumprimento dos direitos à educação, sem que isso necessariamente resulte no entupimento das salas dos juízes. No Ceará, por exemplo, o Cedeca atua basicamente com casos que envolvem os direitos coletivos e difusos, buscando também apontar ao Estado suas falhas e os caminhos para a mudança. "Atuamos com grupos sociais, como associações e coletivos de juventude, priorizando demandas que gerem mobilização social. Além das ações judiciais necessárias, promovemos debates públicos, seminários, eventos e mobilizações para que a população esteja envolvida nessas questões", afirma Marcio Moureira, do Cedeca/CE.
A estratégia de casar a ação judicial com a mobilização social fortalece o conceito de que a sociedade precisa participar. "A Justiça é inercial, ou seja, depende da ação do cidadão. Se ele compreende a educação como um direito difuso e se organiza, passa a ter condições de recorrer ao ministério público ou ao conselho tutelar", afirma Daniel Cara. "A inclusão do artigo 227 da Constituição, sobre os direitos da criança e do adolescente, foi feita no processo constituinte pela pressão popular", lembra Salomão.
A ação efetiva dos cidadãos incide, portanto, em duas pontas: o judiciário, que, ao constatar a problemática e o anseio social, tende a julgar com um olhar mais cuidadoso, e o Estado, que, pela pressão popular, tende a priorizar a solução dos problemas.
Nina Ranieri, coordenadora da cátedra Unesco de Direito à Educação da Faculdade de Direito da USP e membro do conselho estadual de educação de São Paulo, alerta, porém, para um fenômeno chamado "demandismo". Até 1999, as demandas diretas de cidadãos eram, na maioria, referentes às mensalidades escolares. "Com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da lei que regulamenta as mensalidades, passou-se a demandar por qualquer motivo, desde a reprovação e as notas baixas do filho até denúncias de humilhação por parte dos professores – que não se comprovavam de fato", analisa Nina. "Todos têm direito de procurar resolver seus litígios com o judiciário, mas há muitas questões que podem ser resolvidas na escola ou em outras instâncias, antes de ir ao juiz", pondera. Esse comportamento, avalia, ainda denota uma puerilidade da sociedade, que não resolve suas questões com autonomia e busca a Justiça para demandas nem sempre necessárias.
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Outro ponto importante do que cabe à sociedade – em especial aos familiares – é a responsabilização por sua parte na educação (inclusive moral) dos filhos. "O que se nota, e que não tem a ver diretamente com a questão financeira, é que os pais têm mostrado omissão no atendimento aos filhos. Falta voz de autoridade familiar para ditar o que se pode ou não fazer e até onde se pode ir. Muitos pais não têm tempo de dar o suporte necessário e, por culpa, acabam se tornando escravos da vontade dos filhos", analisa Motauri Ciocchetti de Souza, promotor da infância e juventude de São Paulo. Para ele, se a família não oferece em casa noção de responsabilidade, respeito e limites, o papel da (e o direito à) educação fica comprometido.
Vaga x qualidade
A ação da Justiça segundo a ótica do direito à escola pública de qualidade – e para todos – tem chegado com força aos meios de comunicação. Afinal, decisões judiciais tendem a ganhar um bom espaço nos noticiários. O fato é que a educação, finalmente, está ganhando visibilidade no país. Ao mesmo tempo, e também por isso, nossa democracia competitiva tem feito com que a educação passe a ser tema para o mercado de votos, o que pode ser uma ferramenta popular poderosa para a exigência da garantia desse direito.
Chegou a hora, porém, de avançar na questão. O debate em torno do direito à educação, desde que entrou na agenda de governos, Justiça e sociedade, tem ficado em torno da criação de vagas. A qualidade fica de lado. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, todo cidadão tem o direito de acesso ao conhecimento produzido pela sociedade. E, no Brasil, nem mesmo nas escolas particulares isso é garantido. Pela Constituição, a qualidade do ensino significa oferecer ao estudante uma formação capaz de torná-lo um cidadão pleno, desenvolvendo seu senso crítico e sua capacidade de participar da sociedade e do mercado de trabalho – o que também não se verifica.
Porém, como reivindicar do poder público a qualidade do ensino? Que parâmetros utilizar para exigir que as crianças aprendam? "Por muitas vezes, na academia, tentamos debater o que fazer para acionar o Estado em função da qualidade do ensino público. No entanto, eu só encontrava números. Sabia quanto custava um aluno por ano, por exemplo, mas não tinha parâmetros para saber o que estava embutido nisso e o que poderia ser exigido. Se das verbas saísse o combustível para o carro do secretário de educação, como contestar a legitimidade do gasto?", questiona Motauri.
Qualidade em pauta
Foi com essa preocupação que a equipe da Campanha Nacional pelo Direito à Educação criou o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), que traz parâmetros estruturais (físicos e humanos) para cada etapa do ensino. Pelos cálculos, faltam R$ 29 bilhões para o Brasil garantir educação com o mínimo de qualidade aos alunos atualmente matriculados nas redes públicas. Isso sem contar com o Plano Nacional de Educação que, se cumprido, promoverá a ampliação do atendimento em outras etapas – fazendo os investimentos saltarem para R$ 232 bilhões ao ano (cerca de 8% do Produto Interno Bruto). "Em vez de a lei determinar os percentuais dos impostos direcionados à educação, deveria ser feita a conta de quanto está faltando e, a partir disso, buscar formas de custear a educação", afirma Daniel Cara.
Para que o CAQi, no entanto, possa de fato fazer diferença na vida dos estudantes, o CNE está prestes a incorporar o documento como referência oficial – o que aumenta sua característica de exigibilidade. "Além disso, é importante que a família de um aluno possa com o documento verificar se a escola do filho tem tudo aquilo que está descrito. Em um Estado como São Paulo, por exemplo, em que as verbas do Fundeb são maiores que o CAQi, a população vai poder contestar as enormes filas e a falta de creches", avalia Daniel.
Além da questão do custeio, a Campanha pretende, com o tempo, avançar no quesito qualidade e incorporar ao CAQi questões abordadas nos Indicadores de Qualidade (existentes para a educação infantil e o ensino fundamental). Com isso, seria levado em conta não só se a escola tem colchonetes e laboratórios, mas também se nela há um clima de respeito, favorável ao desenvolvimento dos jovens, ou a coibição de práticas de violência moral, por exemplo, outros direitos humanos fundamentais que a escola deve garantir. O terceiro ponto sensível, e que ainda demandará discussão, é a avaliação. Segundo Daniel, o Brasil muito avançou, mas "é preciso criar metas com caráter de oficialidade, abrindo precedentes para que famílias e a sociedade possam exigir que todas as escolas públicas tenham determinados indicadores de qualidade", afirma.
Para Nina Ranieri, da USP, aumentar o acesso à escola e dar instrumentos para que a população saiba avaliar e exigir educação de qualidade é uma forma de consolidar a democracia do país. "É um avanço muito grande chegarmos ao STF com exigências relativas ao direito à educação. A manutenção do estado democrático se dá quando as pessoas têm acesso à escola e ao entendimento desse direito", diz.
Financiamento: o nó
É na questão do financiamento que as ações – e as decisões – judiciais mais emperram. Quando o assunto é dinheiro, a Justiça se intimida.
Existe um recurso comumente utilizado pelos órgãos de defesa dos direitos à educação chamado suplementação orçamentária. Se a ação civil solicita vagas em creches e o governo afirma não ter verbas, é possível pedir uma revisão do orçamento para que se realoquem recursos de áreas não prioritárias. No entanto, existe o princípio da discricionariedade, que diz que o poder público pode ou não investir os recursos de acordo com o seu julgamento, levando em conta a possibilidade e a pertinência do caso.
Em 2007, o Juizado da Infância e Juventude de Goiânia determinou ao Estado de Goiás a construção de 953 salas de aula nos colégios estaduais da capital. Na ação, a promotoria ressaltou ter comprovado em inquérito que as salas de aula das escolas estaduais comportavam número maior de alunos do que o estabelecido pela LDB estadual. Ao contestar a ação, o Estado sustentou que a construção de salas é decisão que se subordina à oportunidade, interesse e conveniência da administração pública, não cabendo intervenção judicial. Contudo, ao fundamentar a sentença, o juiz observou que a Constituição estabelece prioridade absoluta da criança e do adolescente no direito à educação. O Estado entrou com recurso.
No Ceará, muitos centros educacionais para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas estão superlotados, sem médicos, remédios e professores e sofrem com a falta de materiais básicos. "Quando reivindicamos o cumprimento do orçamento, o judiciário pediu informações ao poder público. Este respondeu apenas o que estava sendo feito, e não o que ainda faltava, o que contentou o judiciário. Mas, na educação – e no seu financiamento -, a ação do Estado não pode se resumir ao possível, mas ao que precisa ser feito, e de forma prioritária", diz Moureira, do Cedeca.
No mesmo barco estão o ensino profissionalizante e o EJA. "Como a LDB não diz que o atendimento é para todos, mas que apenas deve ser oferecido, judicialmente não há como acionar o administrador se ele oferta vagas insuficientes", completa Motauri.
Se por um lado essa dificuldade para tratar de dinheiro atravanca o trabalho da promotoria e das organizações sociais, por outro, há momentos em que o assunto deslancha. À véspera do ano eleitoral, o Senado Federal, por unanimidade, aprovou no dia 28 de outubro uma proposta de emenda constitucional (PEC 96 A/03), cujo texto original foi apresentado em 2003 pela senadora Ideli Salvatti (PT/SC). A PEC, no texto atual, determina o fim da Desvinculação de Receitas da União (DRU), que atualmente retira 20% dos recursos provenientes da arrecadação de tributos e contribuições federais da pasta da educação. Segundo a Agência Senado, a mudança fará a alíquota cair para 12,5% no exercício de 2009 e para 5%, em 2010. Em 2011, não haverá mais a incidência da DRU na educação, o que injetará 9 bilhões de reais no orçamento para o setor. Com as mudanças do texto original, a PEC também passa a exigir educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade – outra ação da justiça que gera polêmica.
Genuinamente brasileira |
Nina Ranieri atuou por muitos anos como procuradora da Universidade de São Paulo e, em 1988, decidiu fazer mestrado (e, depois, doutorado) na área do ensino superior na perspectiva do direito. Em 2006, já na secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo, organizou um encontro sobre direito à educação. Presente estava Koichiro Matsuura, diretor da Unesco. "Durante o seminário, ele viu muita gente trabalhando e o auditório lotado. Havia secretários de educação, juízes, promotores e ele não imaginava que no Brasil houvesse uma capacidade reflexiva sobre o assunto", conta Nina. Foi aí que Matsuura sugeriu a cátedra à professora, que teve total apoio do diretor da Faculdade de Direito da USP. "É a primeira, e, até agora, única, cátedra Unesco de direito à educação do mundo", conta. A missão dela é difundir o direito à educação. "No mestrado de direitos humanos, oferecemos a disciplina e, por meio da Unesco, trazemos professores de universidades estrangeiras, vindos da Espanha, dos Estados Unidos e de Portugal, por exemplo", explica Nina. Todo ano, a professora publica o que os alunos produziram. Da primeira disciplina surgiu um livro chamado Aspectos constitucionais do direito à educação (Edusp), traduzido para o inglês e distribuído pela Unesco em todo o mundo. |
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