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Depois do furacão

Na avaliação dos prejuízos causados pelo vazamento da prova, sobram dúvidas sobre como gerir um exame que afetará a vida de várias instituições e de milhões de estudantes

Publicado em 10/09/2011

por Marta Avancini


Fernando Haddad, ministro da Educação: luta pela manutenção da credibilidade do Enem

O vazamento da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no início de outubro, três dias antes da sua realização em 1.826 municípios de todo o país, deixou um rastro de dúvida e questionamento. Afinal, o que educadores, gestores e, principalmente, estudantes querem saber é até que ponto a credibilidade do exame, que se tornou a principal porta de ingresso no sistema federal de ensino superior, será mantida.

O novo Enem foi anunciado em março último pelo ministro Fernando Haddad como um exame que "veio para ficar". Autoridades do Ministério da Educação e do Inep deram declarações indicando que ele significaria o fim dos vestibulares, além de ser um instrumento central para impulsionar mudanças curriculares no ensino médio.

Foi apresentado também como uma prova tecnicamente mais bem apurada por adotar a Teoria de Resposta ao Item (TRI), tornando a prova capaz de medir cientificamente as habilidades dos alunos a partir do conjunto de questões (mais fáceis ou mais difíceis) acertadas. Portanto, supostamente eficaz para ser adotado, simultaneamente, como exame de
saída da Educação Básica e de ingresso no ensino superior.

Mas depois que um grupo de ladrões "pés de chinelo", como disse um delegado, conseguiu furtar a prova da gráfica onde estava sendo impressa e ter tentado vendê-la por R$ 500 mil ao jornal O Estado de S.Paulo, o cenário mudou de figura.
Desde que a notícia do vazamento da prova do Enem veio a público, o MEC está correndo atrás do prejuízo para que tudo corra bem nos dias 5 e 6 de dezembro, as novas datas do exame, e para que seus propósitos iniciais não se percam – ainda que universidades de ponta e que há vários anos adotavam o Enem em seu processo seletivo, como a Unicamp e a USP, além de outras cinco instituições, tenham desistido de incorporar as notas dos alunos na avaliação deste ano, o que poderá gerar prejuízos aos candidatos oriundos da rede pública de ensino.


Mobilidade reduzida


Na opinião da professora e membro da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest) da Unicamp, Maria Márcia Malavasi Sigristi, a universidade perde a oportunidade de atrair alunos de outras regiões do país ao deixar de considerar o Enem no processo seletivo de 2010. "O novo Enem traz em si um ganho logístico porque o aluno não precisa se locomover para concorrer a vagas em várias partes do Brasil", diz. "A Unicamp se preocupa em conseguir estudantes de outras partes do país, e não apenas de São Paulo e o Enem pode propiciar isso."

No caso das universidades federais, em virtude do vazamento da prova e da mudança do cronograma, os alunos perderam a oportunidade de escolher cinco cursos e passarão a poder escolher apenas três, nas 24 instituições que estão adotando o Enem no lugar do vestibular – um total aproximado de 45 mil vagas. A mudança, decidida pelo MEC, se deve à necessidade de tornar mais ágil o processo de seleção, já que os resultados somente deverão ser divulgados em fevereiro de 2010, numa tentativa de minimizar os impactos da mudança do calendário do Enem sobre o ano letivo das federais.

Isto sem falar nas 26 instituições que, para evitar a coincidência com as novas datas do Enem, resolveram mudar as datas de seus  vestibulares.

Mas não é só nas federais que os alunos da rede pública podem ficar em desvantagem: como o Enem é um dos critérios para obtenção de bolsas do ProUni, o programa que concede bolsas de estudos para estudantes carentes de instituições privadas, se o aluno não fizer a prova, ele pode perder a oportunidade de ingresso em um curso de graduação, analisa Ana Cristina Canettieri, consultora na área de ensino superior, especializada em avaliação institucional.

Ela não descarta ainda a possibilidade de as instituições privadas deixarem de adotar o Enem, caso a nova sistemática da prova não gere credibilidade. "A expectativa é que o MEC consiga reverter tamanho estrago na vida acadêmica de milhões de jovens e centenas de instituições. Se for assim, recuperará a credibilidade", afirma ela, embora enfatize que as notícias sobre a fraude ainda estão muito expostas à sociedade, apesar dos esforços para cercar o exame de um forte esquema de segurança.

Se a credibilidade não for recuperada, acrescenta Ana Cristina, corre-se o risco de perder um instrumento que tem sido bastante útil para os gestores das instituições de ensino para melhorar o trabalho em sala de aula.

A segurança, obviamente, é uma questão-chave no processo. Afinal, como pontua Roberto Leal Lobo e Silva, presidente do Instituto Lobo para o Desenvolvimento da Educação, Ciência e Tecnologia e ex-reitor da Universidade de São Paulo, o Enem sofreu mudanças em dois aspectos fundamentais: em volume, já que muito mais gente vai tomá-lo como referência, e em segurança, pois se tornou bastante procurado e, por isso, mais vulnerável a fraudes.

"Acho que o MEC não se deu conta dessa mudança de escala com toda a profundidade necessária. É muito difícil controlar 4 milhões de provas e de estudantes num processo que vale vaga de medicina em universidades federais", complementa. "Quando o Enem era complementar não havia tanta pressão em relação aos resultados."

Conforme lembra Valdemir Aparecido Pires, professor de Economia da Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, na nossa sociedade, conhecimento é dinheiro, daí o interesse em furtar a prova e tentar vendê-la.
Nesse contexto, a experiência pode fazer toda a diferença. Tanto que a Fundação Cesgranrio e o Cespe da Universidade de Brasília, que há dez anos se revezavam na elaboração e na aplicação do Enem, assumiram, em caráter emergencial, a realização da prova em dezembro. Vale lembrar que as duas empresas inicialmente não quiseram participar da licitação devido ao exíguo prazo para preparar a avaliação.


Histórico delicado


No entanto, a opção por transformar o Enem no principal instrumento de ingresso no ensino superior público federal, que alguns atribuem à alta cúpula do MEC, acabou suplantando a argumentação técnica, que defendia um processo de transição mais gradual.

O consórcio Connasel, vencedor da licitação para realizar o Enem de 2009, foi o único que permaneceu no processo seletivo até o seu final. Das três companhias que compõem o consórcio – Consultec (BA), Cetro (SP) e FunRio (RJ) – duas envolveram-se em casos de fraude em exames e concursos no passado.

Em dezembro de 2008, a Universidade Estadual da Bahia (Uneb) cancelou seu vestibular após ter sido informada pela Consultec, responsável pelo exame, da suspeita de vazamento da prova. Com isso, cerca de 50 mil candidatos tiveram de esperar cerca de dois meses para fazer o novo exame, também organizado pela Consultec.

De acordo com nota da reitoria da Uneb, o segundo exame ocorreu sem problemas e o caso está sendo investigado pela Polícia Civil, sem que tenham sido identificados suspeitos. Assim, o vestibular para 2011 da Estadual da Bahia será, novamente, realizado pela Consultec já que ela cumpriu todos os requisitos e, apesar do ocorrido, não pode ser impedida de participar da licitação, pois a investigação policial ainda não foi concluída. A FunRio, de sua parte, está sendo acusada de envolvimento em denúncias de irregularidades em um concurso para a Polícia Rodoviária Federal.

Estratégias de prevenção

Evitar fraudes exige protocolos rigorosos, inclusive baseados em tecnologia, e que devem ser seguidos passo a passo. O Centro de Seleção e de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (Cespe/UnB), por exemplo, adota, nos concursos que realiza, mecanismos de controle interno e externo, tais como softwares de embaralhamento de itens e geração automática de tipos de provas, além do controle das equipes e dos ambientes onde são manipulados materiais sigilosos.

Outras medidas de segurança são publicar, na internet, imagens dos documentos dos candidatos e escanear folhas de resposta e de questões, a fim de preservar os originais. Mas os procedimentos, enfatiza a assessoria de imprensa do Cespe, variam de exame para exame e os protocolos são modificados periodicamente, a fim de evitar os mais diversos tipos de fraudes, como se registra Brasil afora.

Há desde os casos clássicos de um aluno que faz a prova no lugar de outro, como ocorreu na Universidade Estadual de Feira de Santana em 2007, até casos de "cola eletrônica" que envolvem quadrilhas, como se deu na Universidade Federal do Acre (Ufac) em 2002, e que beneficiou 28 alunos de um total de 40 aprovados em medicina. O caso foi à Justiça e, três anos mais tarde, os envolvidos foram condenados por fraude, extorsão e omissão de receita.

Em dezembro de 2008, a Ufac enfrentou novo problema e teve o vestibular suspenso depois da constatação de que os fiscais não entregaram a prova de língua estrangeira para alguns candidatos e que 15 questões do exame haviam sido publicadas anteriormente na internet.

A Universidade Federal do Acre, de sua parte, passou por uma fraude no vestibular na década de 1970 e, desde então, procura aprimorar continuamente os procedimentos de segurança. Uma das medidas adotadas, conta a presidente da Comissão do Vestibular da Coordenadoria de Concursos da universidade, Maria de Jesus de Sá Correia, as pessoas envolvidas na seleção assinam um termo de compromisso e sigilo lavrado em cartório.

No caso do Enem, para aumentar a segurança, o MEC promete, a partir de 2010, desenvolver vários tipos de prova, com a finalidade de ampliar significativamente o número de questões utilizadas no exame e dificultar a fraude. As provas que serão aplicadas em dezembro estão guardadas em um cofre na sede do Inep/MEC e a distribuição ficará a cargo dos Correios, sob supervisão da Polícia Federal.

Autor

Marta Avancini


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