Diálogo entre diferentes estatutos sociais pode fertilizá-los mutuamente
Publicado em 10/09/2011
A formadora estava exaltada:
Por que razão não fazem planejamento na Ponte?
Expliquei que "outro" tipo de planejamento é feito na Ponte, não aquele comum na maior parte das escolas. Mais uma vez, recordei que não advogo o improviso, que as escolas são lugares de esforço, que seja significativo para quem aprende e para quem ensina.
Insistiu, num brado agressivo, que augurava grossa discussão. Tentei o diálogo:
Vamos conversar? Se me explicar por que é que tem na sua escola, explicar-lhe-ei porque não temos na nossa.
Foi peremptória:
Eu acho que deve haver planejamento!
Respirei fundo e reiterei o convite:
Se me explicar por que acha, eu poderei até rever aquilo em que acredito. Mas peço que fundamente a sua "opinião". Por favor…
Gorou-se a possibilidade de diálogo, porque se quedou furiosa e muda. Estava possuída de forte convicção, mas não permitiu que eu testasse as minhas convicções, escutando discordâncias.
Os professores são suficientemente inteligentes para compreender que cada ser humano é único e irrepetível. Por que continuam agindo como se não compreendessem?
O Manuel (e não "o aluno" abstracto) não é passível de total, ou parcial programação. Isso é coisa de computador. A única certeza que poderemos ter, quando trabalhamos com gente concreta, como a Maria (e não a abstracção "turma") é a de que tudo é imprevisível. Uma reacção não pode ser planejada – acontece. A relação pedagógica é atravessada por implanejáveis situações. Requer do educador a capacidade de gerir a imprevisibilidade. Porque subjectividade só pode rimar com currículo subjectivo. A pré-determinação de conteúdos, tempos e espaços adequa-se a autómatos, não a seres humanos.
Longe do quotidiano da Ponte, recordo o momento em que o projecto tomou novos e irreversíveis rumos. Aconteceu de modo inusitado. Nos idos de 70, a Ponte era uma escola de deserdados. Muitos alunos chegavam à escola sujos, com fome ou com excesso de vinho, com a cabeça cheia de preocupações e de. piolhos.
O meu filho André foi aluno da Ponte, um dos primeiros alunos oriundos de famílias de maiores recursos. Mas outros foram chegando, porque muitos pais começaram a ver aquela escola como o lugar apropriado para a educação dos seus filhos.
O André recebeu a sua dose de parasitas capilares, num tempo em que a escola pública da Ponte deixou de ser uma escola dos pobres, para ser uma escola de todos. Se algumas crianças traziam a cabeça cheia de piolhos, outras traziam-na cheia de gel. No trabalho de grupo, cabeça com cabeça, os bichinhos tinham livre circulação e seguiram a via tradicional. Porém, suicida, acabando presos no gel, imóveis, liquidados… Juntou-se o gel com o piolho e o piolho com gel. E o diálogo entre diferentes estatutos sociais aconteceu, diferentes culturas mutuamente se fertilizaram.
É possível formular uma teoria, propor uma metodologia, sugerir a análise de um projecto bem-sucedido, estabelecer hipóteses. Inútil será fazer de uma inovação uma doutrina. Os caminhos são múltiplos. Os seres humanos, imprevisíveis. Quando se trata de construir currículo ("caminho"), necessário será preparar cuidadosamente a viagem, desenhando um esboço de mapa, porque os caminhos ignotos são feitos ao andar. Depois, será necessário estar atento a sinais, avisos semeados na multiplicidade dos percursos. Os atalhos tradicionais nem sempre nos conduzem a destinos pré-determinados. Os piolhos que o digam.
José Pacheco
é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
josepacheco@editorasegmento.com.br