A definição do currículo escolar, do modo de implantá-lo e do grau de autonomia do professor são questões que explicitam os crescentes conflitos sobre as concepções que dividem o campo educacional
Publicado em 10/09/2011
Há aproximadamente 60 comunidades na rede virtual Orkut que se dedicam a criticar o
Jornal do Aluno
, um dos materiais da proposta curricular da rede estadual de São Paulo, instituída no início de 2008. Uma delas, cujo nome é "
Eu odeio o Jornal do Aluno
", traz uma lista de justificativas: foi imposto a alunos e professores; não se articula com as matérias dos livros didáticos; impede os professores de efetivamente ministrar suas disciplinas; tem linguagem difícil; é apenas uma revisão daquilo que já foi estudado. Há alunos que sugerem a queima de todos os jornais. A insatisfação atinge também alguns docentes. Um professor de educação artística da rede estadual, que não quis se identificar, conta: "No ensino fundamental, queriam que os alunos debatessem temas que desconheciam, como comunismo, na 6ª série! Outro erro é que as atividades não haviam sido testadas com alunos. Isso era claro".
Polêmico, o caso da rede estadual de São Paulo levanta um ponto central de uma discussão antiga sobre o currículo escolar na educação brasileira: a quem compete a definição dos conteúdos a ser ensinados em sala de aula? Em países como a França, o grau de liberdade das escolas nesse sentido é nulo – os professores podem escolher somente as obras literárias que desejam indicar a seus alunos.
Como é um Estado federativo, o Brasil trabalha com algumas orientações nacionais, representadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, e deixa a cargo de estados e municípios a elaboração de orientações mais específicas. Mas a adoção desse modelo não é consensual. Para alguns especialistas da área, tanto as diretrizes quanto os parâmetros são insuficientes.Seria necessário elaborar?definições mais específicas sobre o que deve ser ensinado. Para outros, o que falta são orientações concretas de estados e municípios, alicerçadas nas nacionais. Há ainda quem defenda que o professor seja o único responsável pela definição dos currículos – qualquer interferência é vista como um veto à liberdade docente.
Em paralelo a esse debate, caminha outro, também objeto de disputa entre teóricos e formuladores de políticas públicas. Como se deve dar a construção do currículo? Em outras palavras, o que justifica que algumas áreas do conhecimento, como sociologia e filosofia sejam diretamente contempladas na grade curricular – e outras, como psicologia, não?
O termo currículo vem da palavra latina
currère
(correr), que diz respeito ao curso, à carreira ou a um percurso que deve ser realizado. A perspectiva de currículo como plano estruturado de estudos apareceu pela primeira vez em 1633, no Oxford English Dictionary. A partir do momento em que entrou no campo pedagógico, a palavra passou a designar a relação de disciplinas organizadas numa seqüência lógica, por série ou curso e com o tempo reservado a cada uma. As matérias e a própria organização da grade curricular só existem após um processo de escolarização de conteúdos científicos. "É um processo complexo, que envolve adaptação do conhecimento à situação de ensino-aprendizagem. Mas a verdade é que o conhecimento é apresentado ao aluno como algo pronto e indiscutível", diz Antônio Flávio Moreira, da Universidade Católica de Petrópolis.
Essa transposição escondida acontece em diversas instâncias: nos órgãos públicos que organizam e selecionam conhecimento, nos livros didáticos, na escola e nas universidades, com os cursos de formação dos professores. Com tantos envolvidos, pode-se afirmar que há uma tensão relativamente grande quando o assunto é o currículo. "Há interferência de movimentos negros, feministas, indígenas, entidades religiosas, professores de sociologia, psicologia, filosofia… o conteúdo está sob influência de todas essas fontes", aponta Elba Barreto, da Faculdade de Educação da USP. Tudo para ser redefinido, novamente, nas escolas, que o molda de acordo com sua cultura específica. "Ainda que haja uma orientação geral comum, as decisões curriculares podem ocorrer em diferentes níveis", diz.
Talvez por isso ainda haja falta de clareza sobre o que deve ser ensinado. "Para fugir do conteudismo e de atender todos os segmentos sociais, deixou-se de perguntar quais são os conhecimentos necessários para que o aluno possa ser um cidadão e para que aprenda outros conhecimentos", explica o professor Antônio Flávio. Para ele, os PCNs não fornecem uma base comum aos professores para que eles possam trabalhar as disciplinas de acordo com a sua realidade. "Eles foram elaborados de forma pouco democrática. Precisamos saber quais são, por exemplo, os pontos necessários para que o aluno termine o 9º ano", continua. Mas Antônio ressalta que essa base não pode ser uma camisa de força e não pode tirar a liberdade e a criatividade do professor em sala de aula – deve ser um apoio.
Lucíola Santos, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas da Universidade Federal de Minas Gerais, concorda com as ponderações e vai além. Para ela, os docentes estão perdidos, sem orientação nenhuma no que diz respeito aos conteúdos. "As avaliações mostram que a educação não vai bem e falta direção diante disso", assevera.
Para José Francisco Soares, especialista em avaliação e membro do Conselho Consultivo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a questão do currículo aparece de duas formas diferentes. No ensino médio, a seu ver, o problema está no grande número de disciplinas e conteúdos a serem ensinados, num modelo que está na contramão do que fazem os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos. "É um volume de informação muito grande", pontua.
Já no ensino fundamental, Soares crê que haja razoável consenso sobre o que se deve ensinar e aprender, dado que são conteúdos básicos. Mas o problema estaria no como fazê-lo. Ele defende que haja unidade na introdução do currículo nas escolas que fazem parte de uma mesma rede, fato que facilita a formação dos professores. "Se os professores usam materiais didáticos diferentes, como se pode capacitá-los com uma mesma orientação?", pergunta. E cita como exemplo alguns países que usam um livro-texto único, como Cuba, China e México.
Na contramão dessa linha está o ex-assistente da diretoria estadual de ensino de Osasco e autor do blog Ensino.blog.br, Flávio Tonnetti. Para ele, os PCNs já restringem a matriz curricular porque especificam suficientemente os conteúdos, e impedem tentativas inovadoras em sala de aula. "Sou contra definição mais específica. Qualquer uma seria arbitrária e não respeitaria as realidades locais. É preciso tratar a escola como célula", aponta. Flávio pondera que uma base comum nacional pode ferir a autonomia da escola, a liberdade do professor e incomodar o aluno. Sobre a possibilidade da falta de diretrizes gerar um quadro caótico, ele diz que é um risco não tão maior do que o do professor se transformar num reprodutor de conhecimentos.
Unidade na diversidade
Entre os dois extremos, encontram-se as pesquisadoras do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Meyri Venci Chieffi e Maria José Reginato. A partir de experiências com construção de currículo em redes e escolas, elas afirmam que os PCNs são suficientes, mas que orientações estaduais, municipais e de cada escola são necessárias, acompanhadas de políticas de investimento em cursos de formação de professores. Essas diretrizes são previstas, em âmbito estadual e municipal, nos Planos de Educação, que não foram levados a cabo pela maioria.
Alicerçadas na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), nos PCNs e nas Diretrizes, as regulamentações estaduais e municipais devem trabalhar com a diversidade de cada região. "Como você respeita diversidades entre Amazonas e São Paulo? Tem de ter uma legislação nacional, e dentro dela, as estaduais", colocam. As pesquisadoras defendem que a construção desse currículo regional seja feita a partir de uma discussão ampla com o quadro docente, a universidade, a família e os alunos. "Tem de haver margem para que as pessoas se coloquem como sujeitos. Eles têm um nível de decisão curricular também", explicam.
O receio não é injustificado: foi exatamente o que aconteceu com a proposta curricular do Estado de São Paulo. O professor se sentiu um mero reprodutor de decisões curriculares tomadas por outras instâncias. E os alunos não se reconheceram no material. "Quando é imposto, ninguém sabe as razões pelas quais os conteúdos foram escolhidos", dizem.
São esses atores – professores, famílias e alunos, entre outros – que, segundo as pesquisadoras, deveriam fazer parte da construção do currículo real, que acabam se transformando em agentes daquilo que ambas chamam de "currículo oculto". Ou seja: no momento em que o currículo formal – as diretrizes nacionais, estaduais ou municipais – viram prática, outras situações que interferem nas experiências de aprendizagem acontecem em paralelo. "O jeito com que o professor fala com o aluno, a linguagem que usa, o tom de voz, tudo se incorpora ao currículo", defendem as pesquisadoras do Cenpec.
Parar elas, é preciso detectar dissonâncias entre esses currículos. Dar uma aula sobre ética e repreender o aluno sem motivo aparente é uma contradição de conteúdos, de certa maneira. "Há muitas interferências, e é preciso problematizar o modo de lidar com elas. Isso sem esquecer que o currículo deve ser vivo nas escolas. Para que isso aconteça, deve ser debatido, discutido e negociado."
Flávio Tonnetti, ex-assistente da diretoria estadual de ensino de Osasco: qualquer definição de currículo seria arbitrária e desconsideraria as realidades locais |
Ele, o professor
Nessa perspectiva, qual deve ser o grau de liberdade do docente em sala de aula? Elba Barreto, da Feusp, defende que o professor nunca estará isolado em sua sala de aula, pronto a ensinar o que quer. "O que ele fala e a forma como trabalha os conteúdos estão ligados a uma história e representam idéias e valores diversos. Não tem como isolar isso de um contexto mais amplo", diz. Flávio Tonnetti defende a total autonomia do professor. Para ele, um ensino padronizado não garante que o conhecimento será absorvido pelos alunos. "Para que dar espaço a conservadorismo quando a educação tem fracassado constantemente?", questiona.
Há uma visão mais sistemática, defendida pela professora Lucíola Santos, da UFMG: O professor deve abordar o conteúdo através do método com o qual mais se identifica e com o qual se sente mais seguro, além de respeitar o perfil cognitivo de seus alunos.
Outra questão que passa diretamente pelo professor é a desconexão entre o que é ensinado nos cursos de licenciatura de pedagogia e o que é ensinado em sala de aula. Uma dimensão da gravidade do quadro apareceu em um estudo realizado pela Fundação Carlos Chagas que, entre outros dados, mostra que ainda há 18% dos cursos de pedagogia que prescindem da didática como uma das disciplinas curriculares.
Uma das iniciativas para resolver o problema veio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por um programa instituído em 2007 que prevê bolsas de estudos a licenciandos em pedagogia e outras áreas para atuar na escola, com orientação do professor da universidade. Magda Soares Becker, uma das integrantes do Conselho Técnico Científico da Educação Básica da Capes, diz que a iniciativa pretende estreitar os laços entre a escola de ensino básico e o conteúdo ensinado nas universidades.
Mais uma vez, a aposta é na troca de experiências e na discussão, saídas consideradas essenciais por Meyri e Maria José, do Cenpec, se a idéia é tratar do currículo escolar. "É preciso realmente ampliar a discussão para se ter a maior consciência possível do que se está fazendo. Se não, ficamos à mercê do livro didático e dos conteúdos abordados em avaliações", alertam.
Avaliações, orientadores curriculares |
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Até pouco tempo, antes das avaliações internacionais e nacionais tomarem a importância que têm hoje, os livros didáticos serviam de orientadores curriculares. Como há pouco consenso sobre a suficiência dos PCNs e das Diretrizes Nacionais, os professores acabavam se apegando a eles em sala de aula. Eram seus guias.
Especialistas ouvidos por |
A proposta curricular de SP |
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O Segundo Maria Inês Fini, assessora da Secretaria de Estado da Educação na área de avaliação, o projeto tinha como caráter principal a interdisciplinaridade. Ambas as peças não serão reeditadas em 2009 – a revista agora foi transformada no Caderno do Professor, que serviu de base para a elaboração do Caderno do Aluno, ambos parte do material curricular de 2009. Segundo Maria Inês, o Caderno do Professor (ex-Revista) foi mantido porque 92% dos professores o acataram e não sugeriram modificações. Outros 7,5% sugeriram e os 5% restantes não gostaram do material. "Nossa obrigação, como Secretaria de Educação, é propor. Os professores usaram e reagiram", coloca. Para a assessora, as comunidades dos alunos e professores no Orkut devem ser desconsideradas. "Comunidade no Orkut é uma leviandade. Não foi um projeto experimental, não caberia testar o aluno. Somos professores, autores de livros. Sabemos o que estamos fazendo", diz. |
Para saber mais |
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