Os seres humanos são farejadores natos da verdade. Mas nem sempre encontram ambiente propício para as buscas decisivas
Publicado em 10/09/2011
Os escritores, sem a pretensão de nos ensinar coisa alguma, transformam suas obras em aulas de humanização. Uma leitura educadora parte desse pressuposto: ler é aprender numa escola feita de palavras com um mestre da linguagem.
As aulas kafkianas são das mais estranhas. Os escritos de Franz Kafka (1883-1924) nos fazem encarar o mundo, a sociedade e a nós mesmos como realidades que ainda não conhecemos o bastante. Levam-nos a pôr em xeque pensamentos prontos e ações rotineiras. Num de seus aforismos, retirado do livro póstumo
Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o caminho verdadeiro
(1931), o autor tcheco avisa a si mesmo e a cada um de nós: "És a tua própria lição de casa".
Sou a minha própria lição de casa na medida em que considero o problema da existência a primeira, a mais radical de todas as questões. O autêntico estudante, portanto, estuda a si mesmo e estuda o seu entorno com a disposição de encontrar respostas que lhe satisfaçam mais do que as já estabelecidas. As tarefas escolares são importantes, contanto que não atrapalhem o cumprimento do dever fundamental: perseguir verdades pessoais, por mais inglórios que sejam os esforços para atingi-las.
Essa pesquisa pessoal tem um preço, e por isso não é tão fácil encontrar quem a ela se dedique. O conto
Investigações de um cão
(1922) retrata a solidão de quem abandona as facilidades de uma vida sem questionamentos. O protagonista (um cão) observa, pergunta, analisa, reflete, tem um comportamento mental que o afasta do convívio dos outros cães.
Mas esse afastamento não se deve a uma falha do animal cientista e filósofo. Ao contrário. Ele sabe que esse é o seu destino, e deveria ser o de todos os seus companheiros:
Não é de se supor que as coisas estejam tão mal para mim. Não estou um fio de cabelo fora da essência canina. Todo cão tem, como eu, o ímpeto de perguntar e, como todo cão, tenho o de silenciar. Todos têm a tendência a perguntar. Os seres humanos são farejadores natos da verdade. Mas nem sempre encontram ambiente propício para as buscas decisivas. Paradoxalmente, a instituição escolar, que deveria ser o lugar da livre reflexão sobre problemas vitais, sobre os problemas que realmente interessam ao ser humano, pode tornar-se o maior dos obstáculos.
A educação que engana
Nos esboços de Investigações de um cão há um trecho, excluído na versão final do conto, no qual o autor, que passara maus bocados na escola, fazia uma avaliação contundente sobre o ato de educar:
Toda educação, provavelmente, possui dois objetivos. Em primeiro lugar, conter o impetuoso assalto das crianças ignorantes para a verdade. Em seguida, iniciar as crianças humilhadas, de modo imperceptível, suave e progressivo, na mentira.
Uma educação que teme a inventividade do estudante, que incentiva a homogeneização, que inibe a capacidade de perguntar, que está mais preocupada em definir limites do que em apresentar horizontes é uma educação humilhante e desumanizante. Por outro lado, fomenta a mentira, o engano. A crítica kafkiana ultrapassa tempo e espaço e vale também para o Brasil dos dias de hoje.
São enganosas, por exemplo, as fichas de leitura que acompanham certos livros. Desde a década de 1970 generalizou-se a prática editorial (com referendo pedagógico…) de incluir entre as páginas de livros infanto-juvenis essas fichas, ou suplementos, ou guias, ou orientações, com o intuito de "facilitar" o trabalho do professor e a interpretação dos alunos. Tornou tudo tão fácil e "seguro" que a leitura perdeu qualquer atrativo. Para que ler e pensar, criar hipóteses e levantar dúvidas novas, se a ficha, camisa-de-força do texto, tem como função tolher o vigor imprevisível da mente, anular as ainda mais imprevisíveis forças da imaginação, a "louca da casa", que o texto queria era mesmo despertar?
É equivocada também a forma como se avalia o mérito intelectual de um jovem candidato ao ensino superior público. Afinal, podemos considerar "superior" um ensino a que o adolescente só terá acesso (com uma ajudinha do destino…), se estudar centenas de questões que o distraem do essencial? Por que deve o vestibulando empregar suas melhores energias na tarefa de decorar, por exemplo, as características geológicas e químicas do granito e do mármore? Por que dedicar seu tempo à lei de Lenz (outro tema típíco de questão do vestibular), segundo a qual o sentido da corrente é o oposto da variação do campo magnético que lhe deu origem?
Se esses e outros conhecimentos (válidos em si mesmos e de fato relevantes quando contextualizados na prática do geólogo ou do físico) passam a ser apenas questões de um exame, elaboradas com o objetivo de restringir o acesso ao ensino gratuito, pois este não oferece o número de vagas suficiente em comparação com a quantidade de pessoas que conclui o ensino médio, para que estudar? Para que estudar, enfim, se há mais vagas e oportunidades em instituições particulares, cujos testes de seleção, infinitamente menos seletivos, não estão nem um pouco preocupados com o mármore e o campo magnético?
Para que serve a escola?
Em 1917, após os primeiros sintomas de tuberculose, Kafka interrompeu sua atividade profissional em Praga e foi passar alguns meses numa cidade mais tranqüila, Zürau, período que lhe permitiu escrever com maior regularidade. Utilizando cadernos escolares, produziu vários textos, publicados somente em 1953, por Max Brod (1884-1968), grande amigo do autor e responsável pela conservação e difusão de sua obra.
Em certo momento desses cadernos, Kafka escreve sobre uma escola noturna destinada a jovens comerciários. O professor pediu-lhes que fizessem um exercício de matemática, acreditando conseguir alguns minutos de sossego para estudar ele próprio. A classe, porém, está no maior alvoroço, e o supervisor de ensino entra na sala para averiguar o motivo da confusão. Segue um diálogo tenso entre supervisor e professor:
Supervisor: […] Em que tipo de escola nos encontramos?
Professor: Na Escola Noturna para Aprendizes da Área Comercial.
Supervisor: É uma escola superior ou inferior?
Professor: Inferior.
Supervisor: Talvez uma das mais modestas?
Professor: Sim, uma das mais modestas.
Supervisor: Exatamente, uma das mais modestas. É inferior às próprias escolas primárias, já que, afora as matérias que são apenas a mera repetição das que se ministram na escola primária (e, portanto, dignas de respeito), aqui se ensinam apenas os mais básicos rudimentos de ciências. De modo que todos nós (os alunos, o professor e eu, o supervisor) trabalhamos, ou seria melhor dizer… deveríamos trabalhar, como é nosso dever, numa das escolas mais modestas que existem. Isso é porventura algo desonroso?
Professor: Não, aprender jamais é desonroso. Além do mais, a escola é tão-somente um lugar de passagem para esses jovens.
Supervisor: E é também para o senhor um lugar de passagem?
Professor: Na realidade, para mim também.
A escola cumprirá sua função se a entendermos como um passadouro, uma ponte. As atividades e exigências da escola só fazem sentido à luz de algo que esteja para além dela. Seria absurdo pensar na escola como o destino final de nossos esforços. Toda escola é um estágio. Um caminho (entre outros) para a nossa realização como seres humanos.
Gabriel Perissé
é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP) (
www.perisse.com.br
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