Ao concebermos a vida em constante movimento e o trabalho como atividade industriosa, ação, invenção de novos mundos e de modos de existência, terreno privilegiado em que o trabalhador pode concretizar suas aspirações, idéias, acreditamos na centralidade do trabalho na vida humana e, portanto, na […]
Publicado em 10/09/2011
por Dulcinea Sarmento Rosemberg e Maria Elizabeth Barros de Barros*
Ao concebermos a vida em constante movimento e o trabalho como atividade industriosa, ação, invenção de novos mundos e de modos de existência, terreno privilegiado em que o trabalhador pode concretizar suas aspirações, idéias, acreditamos na centralidade do trabalho na vida humana e, portanto, na saúde do trabalhador.
Dessa maneira, torna-se importante pensar a vida no trabalho, no curso da atividade e, por conseguinte, as relações entre "trabalho e saúde". Essa não é uma tarefa simples, devido às inúmeras e diversas concepções políticas, conceituais e metodológicas que constituem o tema. Mas, no âmbito das práticas educacionais, aceitamos o desafio e nos jogamos na tarefa de alimentar o debate sobre o tema "trabalho e saúde".
Partimos do princípio de que o referido tema, ao ser investigado cientificamente, tem uma especificidade que não pode ser tomada com posturas de exterritorialidade no que diz respeito à relação entre o pesquisador e o objeto a ser investigado. As questões dos mundos do trabalho não podem estar baseadas apenas em quadros analíticos construídos a partir de um distanciamento da complexidade engendrada onde o trabalho acontece.
Assim, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, por meio do Programa de formação e investigação em saúde e trabalho (Nepesp/Pfist), tem apostado na ampliação das discussões sobre trabalho e saúde do trabalhador da educação.
Em 2008, uma dessas apostas resultou na obra intitulada Trabalho e saúde do professor: cartografias no percurso, organizada pelas professoras do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, Maria Elizabeth Barros de Barros, Ana Lucia Coelho Heckert e Lílian Margoto. Da obra participam pesquisadores, docentes, discentes, bolsistas de iniciação científica, mestrandos, doutorandos, sindicalistas, psicólogos, bibliotecários, entre outros profissionais. Nesse livro, propomos uma direção metodológica de pesquisa, que articula investigação e intervenção por meio do diálogo, da interlocução entre os diferenciados saberes, com o objetivo de potencializar estratégias utilizadas pelos trabalhadores para lidar com a variabilidade das situações de trabalho nas escolas.
Com esse objetivo, a obra traz as contribuições das abordagens sobre o trabalho do ponto de vista da atividade como importante ferramenta metodológica e sugere uma direção de pesquisa dos mundos do trabalho que tem se pautado na abordagem ergológica, construída na Universidade de Provença, em Aix/França. A ergologia é um ramo da etnologia que estuda a cultura material.
Seguindo essas diretrizes analíticas, o livro trata da problemática da saúde do conjunto de docentes que trabalham nas escolas públicas do município da Serra (ES), visando a desfazer a tríade: dor-desprazer-trabalho docente, vivida de forma naturalizada pelo coletivo de docentes. Pretende avançar na compreensão das relações saúde-trabalho nas escolas e investigar as estratégias utilizadas por esses trabalhadores, no sentido de resistir às tentativas de desqualificação do trabalho docente. Afirma a possibilidade de abrir espaços de discussão no cotidiano dos docentes para que a luta pela saúde se constitua em redes de cooperação entre sujeitos e escolas para que se inaugurem outras formas de atuação nesses estabelecimentos.
A partir do dispositivo "Comunidade Ampliada de Pesquisa" (CAP), que faz a nucleação de trabalhadores para análise do seu trabalho, as discussões pautaram-se por conceitos de trabalho e saúde, de forma a não reduzir trabalho a emprego ou assalariamento, e saúde como o oposto de doença. O trabalho é tomado como atividade industriosa, o que é próprio dos vivos que estão todo o tempo renormalizando seus ambientes laborais, e saúde como capacidade de criação de novas normas de vida e trabalho, construindo espaços onde esse debate de normas seja possível.
Nesse sentido, a proposta do livro é lançar o desafio de convocar os docentes no seu potencial de criação próprio dos viventes humanos para disparar novos modos de fazer e gerir o trabalho, num movimento de produção de mundos e sujeitos.
O espaço público, espaço de fala, produz cooperação por meio da dinâmica do reconhecimento e constrói coletivos de regras, como mostrou o psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours em palestra proferida no Ministério da Saúde, em 2007. Os trabalhadores buscam caminhos para a cooperação, que constrói um produto comum a partir da solidariedade; são ações coletivas que constroem as bases da cooperação e é aí que se efetiva uma política pública.
Nessa dimensão ético-política entende-se que a saúde é mais do que a ausência de doença; a doença passa a ser uma experiência de inovação positiva do ser vivo e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo, segundo o conceito de George Camguuilhem, expresso em O normal e o patológico (Forense, 2007), de maneira que colocamos em análise os discursos queixosos e de culpabilização dos sujeitos ao debatermos a temática relativa à precarização do trabalho no campo da educação hoje.
Para falar em saúde é necessário, então, considerar as formas usadas para lidar com as relações existentes entre saúde e trabalho, e, dessa forma, torna-se relevante pôr os sentidos em alerta para captar o que está escapando, o que é imperceptível, o que pode estar levando à dor-desprazer, ao adoecimento ou a viver com saúde nos espaços escolares.
O trabalho, do ponto de vista da atividade, tem o sentido de experiência que se vive nos cotidianos de trabalho. É também fracassar, ter uma experiência do fracasso, resistir, suportar o sofrimento até que a via para superá-lo, a solução, se efetive. Sofrimento e resistência fazem parte do trabalho, da vida. É preciso fracassar para trabalhar e a partir do sofrimento construir caminhos que permitam uma vida cada vez mais inventiva e prazerosa, como diz Dejours.
Ao pensar coletivamente sobre as relações entre trabalho e saúde dos docentes da rede pública municipal da Serra (ES), visamos o aumento da potência criadora da vida das professoras e dos professores, afirmando o trabalho como coengendramento de professores e de mundos.
Na obra, objeto desta resenha, em que são socializadas ações de formação vivenciadas entre 2005 e 2006, cuja produção se deu entre os movimentos de vida e saúde no trabalho, constata-se que, assim como o prazer, o desprazer no trabalho potencializa a vida. Portanto, começa com um estudo histórico sobre o adoecimento na categoria docente no século 19, seguido por um levantamento, também histórico, das metodologias utilizadas para tratar a questão da saúde do trabalhador desde as enquetes operárias de Marx ao dispositivo de três pólos operacionalizado pela perspectiva ergológica de Yves Schwartz. Apresenta nos capítulos subseqüentes o Programa de formação e investigação em saúde e trabalho nas escolas, enunciando-se a demarcação teórico-metodológica explorada, bem como as etapas da pesquisa que resultou no livro.
Como discorre Denise Alvarez, ao prefaciar a obra, a partir do quinto capítulo, e prosseguindo até o nono e último, são relatadas as experiências de operacionalização dos dispositivos colocados em ação para trabalhar as questões definidas no projeto e que seguem temas pré-escolhidos (saúde, trabalho, etnia, gênero, readaptação e gestão). Ou seja, proporciona-se o contato com o que foi a interlocução entre pesquisadores e docentes das escolas públicas do município da Serra (ES), visando a preparação dos trabalhadores para uma pesquisa de campo nas escolas. As idéias, que depois se configuraram nesse projeto, nasceram em 2004, da discussão das condições de saúde e trabalho com professores e professoras das redes estadual e municipais de Vitória, Cariacica, Serra e Viana.
Nos anos 2005 e 2006, os encontros com os docentes da Serra, produziram, então, os seguintes temas narrados no livro:
– formas de adoecimento de professores; abordagens metodológicas para colocar em análise o trabalho sob o ponto de vista da atividade;
– construção de modos coletivos de funcionamento de pesquisadores e trabalhadores em prol da análise da processualidade do trabalho, voltando-se, especificamente, para as prescrições e singularizações presentes no trabalho docente;
– os usos e os saberes produtores de saúde e da gestão do trabalho docente;
– o trabalho docente, gênero e saúde dos professores;
– as diferenças étnico-raciais como dispositivo de produção de saúde nas escolas;
– readaptação profissional em educação.
Não podemos negar os diversos vetores presentes no cotidiano escolar que levam ao adoecimento, entre os quais se encontram as políticas educacionais e o modo de organização do trabalho docente. Entretanto, evidencia-se que o prazer e o sofrimento fazem parte da vida, o que implica a experimentação de angústia, sofrimento e prazer. Desse modo, a saúde seria algo a ser conquistado dia após dia. Esses são os desafios que desejamos lançar.
Dulcinea Rosemberg
é professora do Departamento de Ciências da Informação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Subjetividade e Política do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
dsrosemberg@globo.com
Maria Elizabeth Barros de Barros
é Pós-doutora em Saúde Pública (ENSP), professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
betebarros@uol.com.br