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Políticas Públicas

Convergentes ou divergentes?

Enquanto o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) atrai as atenções de diversos setores, o Plano Nacional de Educação, aprovado em 2001 para vigorar até 2011, é quase desconhecido da sociedade

Publicado em 10/09/2011

por Marta Avancini

Quando o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) foi lançado, em abril deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou tratar-se do plano mais abrangente já concebido no Brasil para melhorar a qualidade do sistema público de ensino e para promover abertura de oportunidades em educação.  De fato, no âmbito da educação básica, o PDE consiste em um amplo conjunto de iniciativas que visam produzir um impacto positivo sobre a qualidade do ensino, de modo que, em 2022, o nível da educação brasileira seja comparável ao de países desenvolvidos.

Também é verdade que, embora não exista um consenso em torno do PDE, ele está sendo visto como um avanço. Um dos aspectos elogiados é o fato de possuir uma orientação sistêmica, procurando operar de maneira articulada em várias frentes. Outro ponto considerado positivo é que acarreta  um alto grau de comprometimento do Ministério da Educação (MEC) com a educação básica, algo inédito na nossa história. Finalmente, também são elogiados os mecanismos que possibilitam a ampliação das transferências voluntárias de recursos do governo federal.

Apesar dos pontos positivos, é preciso tomar a afirmação do presidente Lula com certa cautela. Afinal, não se pode esquecer do Plano Nacional de Educação (PNE), que tem força de lei, pois foi aprovado pelo Congresso Nacional, e está em vigor desde 2001, com 295 metas a serem cumpridas até 2011. E por que motivo o PDE teria mais chances de vingar do que o PNE, este último brindado com o mais absoluto silêncio durante o lançamento daquele que, na prática, o sucede?

Uma rápida comparação das duas propostas revela a existência de pontos de contato entre elas. Ambos os planos têm como objetivo maior a melhoria da qualidade da educação para todos. De sua parte, o Plano Nacional estabelece suas metas com o objetivo de melhorar a qualidade do ensino; reduzir as desigualdades regionais no tocante ao acesso e à permanência na escola; democratizar a gestão do ensino; e elevar o nível de escolaridade da população. Nesse sentido, o PNE estabelece diretrizes e metas para ampliar o acesso ao ensino, bem como  melhorar a formação e a valorização dos profissionais da educação, aprimorar a gestão e o financiamento.

O PDE também tem como um de seus objetivos enfrentar a falta de eqüidade de oportunidades educacionais, reduzindo as desigualdades sociais e regionais na educação, conforme se lê no documento "Razões e Princípios do Plano de Desenvolvimento da Educação", apresentado pela primeira vez pelo MEC durante a 30ª reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), no início de outubro, cinco meses depois do lançamento oficial do PDE.


Ideb e prestação de contas

Para materializar seus objetivos, o PDE é composto por um conjunto de 40 programas, ações e medidas de natureza diversa – da infra-estrutura à avaliação, passando pela qualificação dos professores -, abrangendo desde as creches até a pós-graduação. As medidas serão colocadas em prática por meio de convênios entre a União com municípios e estados, firmados com os gestores que assinarem o Compromisso Todos pela Educação. Aqueles que aderirem ao Compromisso terão de adotar medidas para viabilizar o cumprimento de metas de melhoria de qualidade estabelecidas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação (Ideb).


A principal diferença entre o PDE e o PNE, na visão de Mozart Ramos Neves, do Movimento Todos pela Educação, é o conceito de "prestação de contas", no qual o primeiro se embasa

O Ideb é o eixo das ações do PDE no âmbito da educação básica. Trata-se de um indicador criado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) para medir – por meio das taxas de aprovação e da proficiência em exames oficiais – a qualidade do ensino das escolas, dos municípios, estados e do país. Por meio do Ideb, foram projetadas metas de melhoria da qualidade da educação até 2022, ano em que o Brasil comemora o bicentenário da Independência. O cumprimento ou não das metas por parte daqueles que aderirem ao Compromisso servirá de parâmetro para a distribuição de recursos.

Para além dos objetivos comuns, o presidente-executivo do Movimento Todos pela Educação, Mozart Ramos Neves, enfatiza as diferenças existentes entre o PNE e o PDE. "São concepções gerenciais distintas. O PNE contém muitas metas, mas não coloca em cena a questão da accountability [prestação de contas]. Desse modo, o funcionamento fica dissociado do resultado. O PDE tem um único indicador, que vai possibilitar saber se o município está melhorando ou não e quais são as prioridades. Nessa medida, atrela avaliação de resultado com funcionamento", analisa ele. Nessa medida, conclui Neves, um dos principais avanços do PDE em relação ao PNE é o fato de o primeiro inovar em termos do conceito gerencial e do funcionamento do sistema educacional.

Assim sendo, PNE e PDE podem ser descritos como distintos entre si em sua natureza. "O PNE é uma lei aprovada pelo Congresso, decorrente da Constituição, enquanto o PDE tem uma alma que se chama Ideb. No mais, é um conjunto de ações, algumas novas, outras já existentes que contêm em si pesos muito diferentes, ponderações variadas", analisa o professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Roberto Jamil Cury.


Processo de construção


"A lógica dos gestores públicos brasileiros é a de não dar continuidade às políticas", alerta Romualdo Portela, da Feusp

Ou seja, uma diferença relevante entre os dois planos é a maneira como foram concebidos e elaborados. Na opinião do coordenador-geral da ONG Ação Educativa, Sérgio Haddad, as características iniciais do PDE enfocavam a ótica de um "choque de gestão", baseado em indicadores, metas, prêmios etc. Tais características, afirma Haddad, decorrem do fato de o Plano ter sido construído a partir do diálogo do governo com apenas um setor da sociedade, o setor empresarial – representado por uma parcela dos integrantes do Movimento Todos pela Educação, lançado em 2006, que postula uma grande mobilização nacional pela melhoria da qualidade da educação e estabelece cinco metas a serem atingidas até 2022.

A coincidência entre as datas propostas pelo PDE e o Todos pela Educação, somada ao fato de o MEC ter adotado o nome do Movimento para denominar o Compromisso que é firmado entre a União, estados e municípios, gerou a impressão de que o PDE encampa os princípios e as propostas do Movimento, levando ao entendimento de que os demais segmentos da sociedade civil foram excluídos do processo de construção do Plano. "O PDE foi elaborado de cima para baixo, e a sociedade civil só foi chamada para conhecê-lo depois de pronto", afirma do professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto, José Marcelino Pinto.

Nesse processo, o PNE teria sido desconsiderado e ignorado. "Até onde podemos constatar, o PNE não foi contemplado em nenhum momento na elaboração do PDE. As metas abraçadas, inclusive, foram aquelas do Compromisso Todos pela Educação, as quais ficam muito aquém do estabelecido no PNE", critica Marcelino Pinto.

Segundo os críticos, essa postura de rechaço ao PNE parece ter começado a mudar quando o ministro Fernando Haddad lançou, em outubro passado, na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), o documento "Razões, Princípios e Programas". "Uma das principais críticas feitas ao PDE é o fato de ele não possuir interfaces com o PNE. Ao lançar o documento na Anped, o MEC tenta dar uma resposta e procura demonstrar que o PDE operacionaliza algumas metas do PNE", analisa Romualdo Portela, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Para Sérgio Haddad, esse documento é um ponto positivo e expressa uma abertura ao "refazer o processo, ampliando o diálogo com outros setores e fazendo correções de rumos".

A titular da Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC, Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva, considera natural que o PNE tenha sido o resultado de um amplo debate na sociedade, pois ele "nasceu com esse propósito", uma vez que sua elaboração estava prevista na Constituição de 1988. "Ele nasceu para constituir a diretriz da política educacional brasileira." O PDE, por sua vez, continua a secretária, "é um plano executivo, um plano de governo, que tem por função criar as condições e viabilizar o alcance das metas do PNE."

Enquanto segmentos da sociedade civil, especialistas e estudiosos cobram o estabelecimento de interfaces entre o PDE e o PNE, Maria do Pilar reitera que não existe contradição entre eles. "O PDE é fruto e conseqüência natural de um processo histórico que vem tornando a educação uma questão socialmente problematizada, em torno da qual muitos consensos vêm sendo construídos. O Ministério da Educação não poderia apresentar o PDE se ele não estivesse amparado na concepção de educação expressa no PNE e na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional", explica.


Segundo Sérgio Haddad, coordenador da Ação Educativa, documento lançado em outubro sinaliza aproximação entre os dois planos

Assim sendo, complementa a titular da SEB, os dois planos não concorrem entre si. "Muito pelo contrário, eles se complementam, uma vez que ambos se orientam por um ideal de acesso a uma educação de qualidade para todos. O PDE resgata conceitos e avança sobre determinados aspectos presentes no PNE e, sobre essas bases, o PDE faz avançar o debate sobre o lugar e o papel da educação dentro de um plano de desenvolvimento nacional", conclui ela.

O principal avanço, defende a secretária de Educação Básica, seria o fato de o PDE buscar promover a qualidade da educação postulada no PNE. "O PNE faz referência à qualidade, mas todas as metas são quantitativas. O PDE, por meio do Ideb, avança porque estabelece metas qualitativas." Ela cita como exemplo a educação infantil, cujas metas do PNE estão longe de ser alcançadas – por exemplo, atender, até 2011, 50% da população de 0 a 3 anos em creches. "Um dos programas do PDE, o Proinfância dispõe de um volume considerável de recursos a serem aplicados na construção de creches e escolas, na melhoria da infra-estrutura física e na aquisição de equipamentos."


Fato ou factóide?

O discurso que enfatiza as complementaridades entre os dois Planos, com o objetivo de contextualizar e explicar a finalidade do PDE, não convence a todos. O professor Marcelino Pinto, da USP de Ribeirão Preto, classifica o PDE como um "factóide, um produto de marketing político, que ajudou na permanência do atual ministro à frente do MEC".

"Esse é o mérito do PDE, já que se trata de um bom ministro, frente aos três últimos, que tem uma boa capacidade de diálogo com a sociedade civil e que conseguiu um pouco mais de recursos para a educação." Desse modo, quando entra em cena o futuro da educação brasileira, o professor entende que o papel do MEC não deveria ser o de lançar um novo plano, mas deveria ser o de viabilizar as metas do PNE. "O PNE já oferece um roteiro de trabalho pronto até 2011 e que, apesar de todos os problemas, representou o consenso possível no Congresso Nacional."

Sérgio Haddad reforça a idéia de que o PNE não deve ser descartado, sugerindo que o MEC promova um amplo processo de balanço público das metas do PNE. "Até onde chegamos? Por que não conseguimos cumprir? Certamente o resultado dessa avaliação aponta rumos e caminhos a serem percorridos no processo de implementação do PDE." Na avaliação dele, o balanço dessas metas atribuiria confiabilidade às novas. "Quer dizer: não estamos apenas esquecendo aquelas que não foram cumpridas para evitar cobranças; ao contrário, avaliamos e buscamos novas perspectivas a serem alcançadas. Essa deveria ser a postura do MEC."

Desse modo, ele conclui: "Não podemos deixar de lado as metas do PNE; e, se sim, há que se justificar. O argumento da ampliação, por meio de metas sobre a qualidade, me parece válido. No entanto, isso deve ser debatido com a sociedade, para que se construa uma aliança a posteriori com amplos setores, visando a sustentabilidade política do PDE de longo prazo".


Corda bamba

Ou seja, assim como no Plano Nacional de Educação, foi a interlocução com a sociedade civil que garantiu sua legitimidade, no caso do PDE ela é apontada como uma das chaves para o seu sucesso. Na opinião de Romualdo Portela, o PDE tem chances de vingar e ter um impacto positivo sobre a educação brasileira porque o MEC está se empenhando no sentido de alocar recursos e de consolidar um diálogo com a sociedade. Mas, continua ele, não existe nenhuma garantia de que a proposta avance até 2022.

"A lógica dos gestores públicos brasileiros é a de não dar continuidade às políticas dos antecessores, independentemente de ser bom ou não. Por isso, é importante que a sociedade civil se organize para exigir a continuidade". Sendo assim, o professor Jamil Cury, da UFMG, ressalta a importância do papel dos conselhos gestores municipais do PDE para evitar que a rotatividade dos governantes signifique a rotatividade das políticas.


Para a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar Lacerda, o PDE é um plano executivo que pode viabilizar as metas do PNE

Paralelamente à organização e à interlocução com a sociedade, outro elemento fundamental é assegurar os recursos para a implementação das ações. Neste aspecto, chama a atenção o pesquisador Portela, PDE e PNE são opostos: enquanto o primeiro está encontrando suporte político no governo federal para que as propostas que o integram sejam viabilizadas – seja no âmbito da negociação política visando sua implementação, seja no âmbito das tentativas de alocação de recursos -, o PNE não está caminhando, pois foram estabelecidas metas,  mas nada foi feito para que elas fossem alcançadas. "O governo anterior não lutou pelo PNE, não dotou o Plano de meios para sua implementação", analisa ele, referindo-se ao veto do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, ao item que propunha a elevação do investimento em educação no Brasil para 7% do Produto Interno Bruto (PIB). Por isso, sintetiza Jamil Cury, "o PNE é um anão": "Tem uma bela cabeça, mas os pés são de barro".

Contudo, alertam os dois professores, ainda falta clareza com relação à continuidade da destinação de recursos para os programas que compõem o PDE. No Plano Plurianual (PPA) para o período 2008 a 2011, está prevista uma alocação progressiva das verbas, atingindo-se o pico de R$ 22,5 bilhões em 2011. Mas trata-se apenas de uma projeção, sem definição da origem dos recursos. "O ministro Fernando Haddad tem demonstrado grande capacidade de buscar recursos e o PDE acena com recursos novos, mas estes não estão vinculados ao PIB e por isso a aplicação desse dinheiro não é obrigatória", diz Jamil Cury.

Diante de tantos desafios, arranjos políticos e de uma trajetória de sucessivas propostas para melhorar o ensino cujo "passado não recomenda", nos termos do professor Jamil Cury, fica no ar a pergunta: em que medida um plano tem potencial para se traduzir em políticas que construam a educação de qualidade? Para Mozart Ramos Neves, do Todos pela Educação, há uma esperança com o PDE. Mas a chave do sucesso, segundo ele, está justamente na continuidade, processo no qual aposta. "Está se delineando no Brasil uma tendência de construir projeto de nação e não de governo. Já se gastou muito dinheiro, e a descontinuidade das políticas só dá prejuízo." Por sua vez, o professor Marcelino Pinto defende o fortalecimento do PNE: "O presidente quer mostrar que valoriza a educação? Que ajude a derrubar os vetos apostos por FHC". Qual o melhor caminho? O futuro dirá.

Autor

Marta Avancini


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