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Belgais

O que escapa à mediocridade parece ser um estorvo para a inveja e a tacanhez de espírito

Publicado em 10/09/2011

por José Pacheco

Belgais é um paraíso no meio de um paraíso. Uma estrada de alcatrão permite revelar o que o relevo oculta ao viandante desprevenido. O enquadramento na paisagem é perfeito. Tudo em harmonia: o canto da cigarra e o silêncio da terra, o voo do tordo reflectido na água, o murmúrio do vento que nos embala no cheiro da terra molhada, a sombra da nuvem que se funde na sombra da árvore, o contraste entre a azáfama das formigas e o descuidado chapinhar da criança nua na pedra molhada…
 
Dentro e fora das casas que compõem o complexo, sente-se o equilíbrio entre dentro e fora: o aroma do eucalipto e o rendilhado da cortina; o espaldar do leito com o verniz do soalho e o travejamento do telhado, a mesinha de cabeceira embutida numa parede embutida na paisagem… Melhor dizer que não existe o dentro e o fora. E, em cada recanto, um piano, a lembrar que, no princípio… era a música.

A música que chegou ao cair da tarde. O canto dos pássaros recolhidos juntou-se às vozes de muitas crianças do coro de Belgais. Entrámos no auditório como se numa igreja entrássemos. Participámos numa liturgia de sons, que penetraram o mais profundo dos corpos e acariciaram os nossos sentidos, antes doentes de ruído e de pressa. Uma etérea fragrância de flores silvestres insinuou-se entre as frestas do granito, fundiu-se com o perfume das flores da laranjeira, cujos ramos tangiam a porta, impelidos pelo sopro suave do vento suão. Indescritível!…

Maria João Pires – uma das mais celebradas pianistas da actualidade – fundou um centro de cultura na aldeia de Belgais. E agregou ao projecto uma escola pública. Numa escola rural da vizinha aldeia da Mata, bem no interior de Portugal, onde, antes, só se aprendia a ler, a fazer contas, a educação artística despontou.

Na minha busca incessante de escolas onde a mudança acontece, fui conhecer Belgais. O projecto não se queda pela aparência e merece apoio dos que deveriam zelar pelo desenvolvimento cultural dos portugueses. Esse projecto foi o sonho de uma vida, fruto da intuição e da sensibilidade de uma mulher que soube defrontar dificuldades, mas que se cansou da indiferença – Maria João Pires admitiu a possibilidade de partir para o Brasil, saturada da lusitana mediocridade.

Numa entrevista, admitiu que poderia desistir do projecto e abandonar o Centro para o Estudo das Artes de Belgais: Sofri fisicamente todos aqueles anos em que me dediquei ao projecto e tentei fazer tudo, e não consegui…

Maria João parece ter optado pelo exílio, à semelhança de Saramago e de muitos outros portugueses, que não encontram condições de trabalho no país do Salazar.

Quando visitei Belgais, estava acompanhado por professores da Escola da Ponte. Recentemente, conversei com alguns desses professores sobre as impressões da visita e sobre a mágoa da Maria João. Logo estabeleceram um paralelo entre os obstáculos que se colocam a Belgais e ao trabalho na Ponte. Aquilo que escapa à mediocridade reinante parece ser um estorvo para a inveja e a tacanhez de espírito.  

A revolução de Abril de 1974 devolveu a liberdade ao povo português, mas algo falhou na transição de regime. Talvez porque, no dia 24 de Abril, os portugueses tivessem adormecido num regime fascista e acordassem, na manhã do dia 25, acreditando já serem democratas…



José Pacheco – Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)



josepacheco@editorasegmento.com.br

Autor

José Pacheco


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