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Escola integrada à comunidade

Ações sociais promovidas por instituições de ensino criam valor para a comunidade e dão forma ao conceito de cidadania entre os alunos

Publicado em 10/09/2011

por Ricardo Marques

Em Itarema, cidade do litoral cearense, o que começou como um simples trabalho de apoio a estudantes que prestam vestibular acabou trazendo para a cidade a extensão de uma universidade estadual. No outro extremo do país, na região missioneira do Rio Grande do Sul, uma escola municipal convenceu a prefeitura a aperfeiçoar o sistema de recolhimento de lixo, alterou os hábitos da população e engajou-se numa campanha de combate a um incipiente surto de dengue. No interior do Paraná, alunos de uma escola de ensino fundamental começaram a visitar abrigos de idosos e crianças e, agora, iniciam contatos com uma tribo indígena que precisa, literalmente, de tudo. Na zona sul de São Paulo, numa área de alto índice de criminalidade e baixo IDH, uma escola profissionalizante gratuita, sem nenhum tipo de ajuda oficial, há sete anos vem transformando alunos em professores e criando oportunidades para que outros adolescentes repitam essa trajetória.

Em lugares e situações tão diferentes, todas essas iniciativas têm uma origem comum: escolas que decidiram somar à educação convencional a decisão de assumir um papel ativo nas comunidades em que atuam: formar alunos com consciência de cidadania e responsabilidade social e multiplicar os efeitos das ações empreendidas. Ainda há muito a fazer, mas o balanço dos avanços já registrados é surpreendente, considerando que o trabalho costuma acontecer sem muito barulho, com reduzido registro nos meios de comunicação.

Para citar apenas um indicador, existem hoje no Brasil mais de 18 mil estabelecimentos de ensino básico certificados com o Selo Escola Solidária, que identifica aqueles que realizam ações sociais relevantes, capazes de ultrapassar o mero assistencialismo filantrópico. Há dois anos, havia 12 mil Escolas Solidárias, o que significa um crescimento de 50% no período. O selo foi criado pelo Instituto Faça Parte, entidade dedicada à consolidação da cultura do voluntariado na área educacional, com apoio da Unesco, do Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed).
 
"O Selo Escola Solidária destaca iniciativas que estimulam a vivência da cidadania e da solidariedade, por meio de projetos sociais e de intervenção na realidade, imbricados na proposta pedagógica, com cunho formativo e em harmonia com a principal função da escola, que é promover a aprendizagem", explica Kátia Gonçalves Mori, coordenadora do Instituto Faça Parte. O selo surgiu em 2003, e desde então multiplicou-se o número de escolas certificadas. "Agora, nosso objetivo não é mais a expansão numérica, e sim um avanço na qualidade das ações realizadas", salienta Kátia.

As estatísticas ascendentes do Instituto representam a evidência de que a escola, como matriz de cidadania, é capaz de sair dos limites de seus muros e promover ações que, concretamente, resultam em benefícios sociais. Na maioria das vezes, muito mais do que verbas, recursos ou orçamento, o que faz a diferença é iniciativa e disposição para inventar e sair da rotina de cumprir o currículo e os compromissos do ano letivo.

Alguns dos projetos das escolas que ostentam o selo são criativos, originais, autofinanciados e, sobretudo, focados nas carências locais. Abrangem um amplo espectro de atividades, do atendimento direto a segmentos historicamente abandonados, como idosos e crianças, até a ênfase na própria educação, com enfoque extracurricular. 


Cidade universitária

Um exemplo é a Escola Estadual de Ensino Médio Luzia Araújo Barros, de Itarema (CE), cujos alunos que pretendiam ingressar numa faculdade, até cinco anos atrás, tinham de procurar outras cidades. Com 33 mil habitantes, Itarema tem cerca de 50 escolas municipais de ensino fundamental e apenas uma estadual, de ensino médio, a Luzia Araújo Barros, que, em 1998, decidiu criar um cursinho gratuito, informal, com professores voluntários, para os alunos e interessados em geral. 

Não é difícil imaginar o cenário: uma cidadezinha à beira-mar, a 220 km de Fortaleza, natureza belíssima, mas sem escolas de ensino superior e fora dos roteiros turísticos. O estudante terminava o ensino médio e não tinha muita escolha: ia morar fora, ou resignava-se a parar de estudar e a arranjar alguma coisa por ali mesmo.

A iniciativa dos gestores da escola quebrou esse círculo vicioso. "No começo, a intenção era só abrir um curso preparatório para os alunos que sonhavam em fazer faculdade, principalmente os mais carentes. Mas o trabalho cresceu e, em pouco tempo, criou-se a oportunidade para a abertura, aqui em Itarema, de cursos da Universidade Estadual Vale do Acaraú, cuja sede fica em Sobral, a 120 km de Itarema", conta o diretor da escola, o professor José Ivaldo Bleasby Freires.

Atualmente, funcionam na escola estadual cursos de letras, biologia, história e matemática, todos com licenciatura plena. "Alguns de nossos ex-alunos agora são professores da universidade", explica José Ivaldo. "Criou-se uma perspectiva mais ampla para a população, com a possibilidade de ingresso numa faculdade local, o que melhorou o nível de toda a comunidade. Itarema já está acima da média de escolarização do Estado, erradicou quase totalmente o analfabetismo, e vai ficar cada vez melhor."


Sem prédios, sem bancos, sem quase nada

Um trabalho parecido se realiza num conturbado distrito no extremo sul da capital de São Paulo, onde se localiza o Centro Educacional e Assistencial de Pedreira (Ceap), que possui 488 alunos e 135 colaboradores, dos quais 51 são funcionários contratados. Não existem prédios na redondeza e quase nenhum serviço público. Do Ceap à agência do correio ou ao banco mais próximo é preciso andar meia hora de carro. A escola fica no meio de um conjunto de favelas conhecidas por nomes enganosos: Jardim Selma, Jardim Itapurá, Jardim Natari e outros jardins inóspitos. Atende a uma área que, grosso modo, pode ser circunscrita num perímetro de cinco quilômetros de diâmetro, no qual, segundo a subprefeitura de Santo Amaro, vivem 1,2 milhão de pessoas, população maior do que a da maioria das capitais brasileiras e que cresce 6% ao ano, mais do que a média do país.

Inicialmente, o Ceap criou um cursinho para os alunos, o Vestibular Extensivo Pedreira, ou VEP, com excelentes resultados. Em 2000, os dirigentes da escola perceberam a necessidade de apoiar também os jovens que queriam ingressar no próprio Ceap, a única escola profissiona-lizante na região, como explica o professor Jod Tori, que começou como voluntário em 1994 e foi contratado, com salário, em 2003: "Por aqui há pouca oferta de educação, por isso o Ceap é muito procurado. A escola oferece cursos técnicos de eletricidade residencial e industrial, informática aplicada, auxiliar de informática, administração, telemática e telecomunicações, para jovens de 10 a 18 anos, e a relação candidato-vaga é de dez para uma. Por isso, há um ‘vestibulinho’, mas a base do aprendizado da maioria é muito deficiente".

O novo curso foi chamado de "Vepinho", com duração de um ano e aulas aos sábados. Atualmente, atende a cerca de 200 alunos de 9 a 13 anos. Todos os professores são alunos ou ex-alunos do CAD, alguns formados em Letras pela USP.

"O garoto que se forma aqui consegue emprego no máximo em um mês", assegura Tori. "Quando isso acontece, ele dobra a renda da família. Além disso, 80% dos nossos ex-alunos fizeram ou estão fazendo faculdade, 30% deles em universidades públicas. Então, os efeitos se estendem para a família e para a comunidade, na forma de inclusão social. Eles só precisam de uma oportunidade", acrescenta.


Do lixo à dengue


Jod Tori, do Centro Educacional e Assistencial Pedreira, na zona sul de São Paulo: 80% dos ex-alunos fizeram ou fazem faculdade, 30% deles em universidades públicas

O Ceap, segundo Kátia Mori, insere-se com perfeição no modelo de escola que o Instituto Faça Parte procura destacar neste ano. "O diferencial que buscamos agora é o bom nível das ações, para qualificar as escolas mais democráticas, que promovem ações sistematizadas, com proposta consolidada no projeto pedagógico e com uma integração mais forte com a família", explica.

Kátia lembra que a escola é, por excelência, um espaço de responsabilidade social e de cidadania: "Queremos identificar aquelas que, além de oferecer um bom aprendizado formal, também estejam preocupadas com a educação para a vida, a fim de intervir e melhorar as condições sociais".

Foi o que aconteceu na Escola Municipal São Paulo, da cidade gaúcha de Entre-Ijuís, com 10 mil habitantes e a 450 km de Porto Alegre, quase na fronteira com a Argentina e o Uruguai. Com 182 alunos de educação infantil e ensino fundamental, a escola iniciou em 2001 um trabalho de preservação do meio ambiente, que resultou numa ação para a redução da quantidade de lixo na beira das estradas, cercados e valetas da região.

Com a cooperação dos órgãos públicos, conseguiu que a prefeitura recolhesse semanalmente o lixo seco. Ao mesmo tempo, os alunos começaram a distribuir panfletos e promover palestras, caminhadas e gincanas ecológicas. Em 2005, criou a Cooperativa de Defensores do Meio Ambiente, formada por 30 alunos, responsáveis pelo recolhimento e pelo encaminhamento do lixo reciclável.

"Além do recolhimento semanal do lixo, pela prefeitura, conseguimos conscientizar a população a respeito das questões ambientais. Houve uma mudança de mentalidade, e hoje 90% dos moradores participam do nosso trabalho", diz a professora Regina Aparecida Machado de Souza, diretora da escola gaúcha.

O projeto valeu ao estabelecimento o segundo lugar no Prêmio Escola Solidária de 2006, um estímulo adicional para a promoção de outras ações. "Na semana passada, surgiram quatro notificações de casos de dengue no município, e já saímos em caminhada para o recolhimento do lixo e de objetos que facilitam a proliferação do mosquito", destaca Regina.

O trabalho começa em classe, com a abordagem interdisciplinar da questão ambiental, do lixo e dos recursos naturais renováveis: "Depois, vêm as ações fora da escola, envolvendo as famílias e a comunidade ".


Visita à aldeia

Esse envolvimento é fundamental em qualquer projeto desse âmbito, diz Kátia Mori, do Faça Parte: "Trata-se de fortalecer o capital social, que está muito fragilizado. Hoje, as pessoas não confiam umas nas outras, como resultado da violência e da cultura de levar vantagem. A escola deve assumir o papel de formadora da sociedade, da cidadania mais responsável, exercida na diversidade, na pluralidade e na solidariedade".


Alunos da Escola Municipal São Paulo, na cidade de Entre-Ijuís (RS)

Solidariedade e cidadania são o tema do projeto desenvolvido na Escola Municipal Criança Feliz, de Marechal Cândido Rondon (PR), cuja maior parte da população, de 50 mil habitantes, descende de alemães. A diretora Alice Silvana Grutzmann Selke explica: "O trabalho começa na sala de aula, com o estudo dos temas relacionados à cidadania: direitos e deveres, ética, atitudes, valores e formas de participar dos problemas da comunidade. Em seguida, propõe-se aos alunos a atividade prática".
 
Nessa etapa, os estudantes se dividem em grupos e visitam entidades do município, como a Casa Lar e o Asilo de Idosos. As observações dos grupos são discutidas em classe, e então os alunos do 1º ao 5º ano, os professores e os funcionários organizam campanhas para arrecadar alimentos e roupas para serem doados. Ao entregá-los, os alunos promovem apresentações de música, teatro e dança para quem está nas entidades.

Com 487 alunos, da educação infantil ao 5º ano do fundamental, a escola já ampliou o projeto inicial. "Em junho, visitaremos uma aldeia indígena carente, em São Miguel do Iguaçu, para tentar ajudar no que for possível", diz Alice. A partir daí, a situação dos índios brasileiros passa a ser estudada pelos alunos sob uma nova ótica, a da experiência.

"O mais impressionante é perceber como os alunos se envolvem e se emocionam. São crianças de 9, 10 anos que vão às outras classes para explicar o projeto aos colegas, escrevem bilhetes para os pais, fazem cartazes e cuidam da divulgação das campanhas. Pensamos em fazer alguma coisa, e daí surgem outras idéias, que dão nova dimensão ao trabalho. Muda a atitude dos alunos, das famílias e da própria comunidade", acrescenta a diretora.

Autor

Ricardo Marques


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