Raízes das dificuldades de letramento estão nos períodos colonial e imperial; mesmo depois, escola tem dificuldade em abrir-se para as realidades da população
Publicado em 10/09/2011
Distante, inacessível, discriminado de acordo com as conveniências morais e políticas de época, porém símbolo de reconhecimento social. O livro – e, por conseguinte, a leitura – vem ao longo dos séculos tentando driblar esse estigma no Brasil e tornar-se objeto de uso para contingentes maiores da população.
Em todo o período colonial, o livro esteve confinado. De 1549, data da chegada dos jesuítas ao país, até meados de século 18, quando o Marquês de Pombal ordena sua expulsão, os colégios dessa ordem foram nossos grandes núcleos educacionais, dedicando-se ao ensino da cultura clássica a uns poucos filhos da elite portuguesa e realizando a catequese dos índios.
O pouco valor que os portugueses davam à formação cultural está expresso em Raízes do Brasil (Companhia das Letras), de Sérgio Buarque de Holanda. Ao comparar a "Vida Intelectual na América espanhola e no Brasil", o autor aponta os disparates numéricos entre as colônias. Entre 1775 e 1821, 720 brasileiros se graduaram na Universidade de Coimbra, destino daqueles que então buscavam formação superior. No mesmo período, apenas a Universidade do México formou 7.850 bacharéis e 473 doutores e licenciados.
No que tange aos processos de impressão, a América espanhola estava mais de dois séculos à frente. Enquanto na Cidade do México há registros de imprensa já em 1535 e no Peru em fins do século 16, o Brasil, afora impressos que circulavam entre os jesuítas, feitos em prensas próprias e rudimentares, veria sua primeira oficina só em 1747. Mesmo assim, por pouco tempo. Em julho desse mesmo ano, as máquinas foram confiscadas e devolvidas ao Reino de Portugal.
A alegação era de que as despesas de impressão aqui eram maiores do que em Portugal, e que livros e impressos em geral dependiam de licenças do Conselho Ultramarino. Controle absoluto, portanto: atividades econômicas e intelectuais eram sujeitas à Corte e a ela devotadas. Objetivos também claros: impedir que novas idéias ganhassem adeptos e ameaçassem o poder. Nessa época, os livros estavam confinados às bibliotecas particulares de alguns clérigos.
A situação só começa a mudar de fato com a vinda da Família Real, em 1808, quando o deslocamento do poder leva à criação de nova infra-estrutura no país, especialmente no Rio de Janeiro. A imprensa, finalmente, instala-se. O ensino ganha seus primeiros livros, sempre com a Europa como referência. Leitura para Meninos (e só para eles), impressa a partir de 1818, é uma "coleção de histórias morais relativas aos defeitos ordinários às idades tenras e um diálogo sobre a geografia, cronologia, história de Portugal e história natural", cita Regina Zilberman no ensaio Leitura Literária e outras Leituras.
Em 1827 o país, já independente, conhece sua primeira Lei de Instrução Primária. Trata-se de um esforço para definir o que deve ser objeto de estudo na educação. Como o acesso aos impressos ainda é muito restrito, a escola se vale do que está disponível e utiliza a leitura oral para o compartilhamento dos textos, além de apostar na memorização.
Durante todo o Império, a realidade não irá melhorar muito. O contingente de analfabetos é de cerca de 85% da população, indica o primeiro censo do país, de 1872. O ofício de professor ainda não dispõe de reconhecimento social. "Num depoimento colhido na Paraíba, em 1850, um homem diz que só escolhe essa profissão quem não tem outro jeito de ganhar a vida", conta Ana Maria de Oliveira Galvão, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da UFMG.
O forte controle sobre o que se lê e o caráter doutrinador da educação das elites podem ser constatados na leitura de O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, obra naturalista em que o narrador rememora sua formação a partir do dia em que foi levado à escola, aos 11 anos de idade. O livro reflete a experiência do próprio autor no Colégio Abílio, no Rio de Janeiro.
Outro tema recorrente da educação brasileira já enunciado nessa época é a dificuldade de se encontrar um meio de ensinar a língua que fizesse sentido para o estudante. "Já em 1885, o inspetor de Instrução Pública do Recife [equivalente ao secretário de educação de hoje] falava que a escola fracassava por querer ensinar a gramática pela gramática, sem torná-la um instrumento para o uso da língua", relembra Ana Galvão.
Com a Proclamação da República e o fortalecimento dos ideais positivistas, a educação pública passa a ganhar importância no final do século 19. No Estado de São Paulo, por exemplo, várias escolas são construídas em esquema similar ao implantado na França a partir da década anterior pelo então ministro da Instrução Pública, Jules Ferry. No começo do século, o livro didático, que já era editado no país desde os anos 60 do século anterior, começa a dar atenção especial às crianças, especialmente no eixo Rio-São Paulo.
Prazer e escolarização
Nas décadas seguintes, a educação ganhará novo impulso. Surgem os educadores que introduzem a Escola Nova no país – Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo – e, com eles, a idéia do prazer da leitura e de sua realização como ato individual. Com aguçado senso de oportunidade e objetivo de dar identidade à nação, Getúlio Vargas, já em seu primeiro governo, encampa reivindicações e cria o Ministério da Educação, que regulamentará o ensino primário e secundário. O português ganha status de disciplina que deve levar à formação do espírito e à educação literária.
Em estudo sobre os folhetos de cordel dos anos 30 aos 50, Ana Galvão levantou relatos que davam conta do pouco sentido da escola para as populações mais pobres do Nordeste. "A escola artificializava a leitura. Havia casos de pessoas que ficavam apenas seis meses na escola, mas, fora dela, eram leitores vorazes de coisas que lhes diziam respeito."
Em 1946, começa-se a discutir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que só será sancionada em 1961, mantendo o texto literário como referência para aquisição de saber. A partir de então, a escola começa a universalizar o acesso à educação. Sob influência das teorias de recepção, tem início uma guinada conceitual, em que o universo daquele que deve aprender começa, ainda que lentamente, a ser levado em conta. Ao que parece, ainda hoje estamos num processo de acomodação desse ciclo.
Escola e leitura no Brasil
1549
Chegada dos jesuítas. Em torno dessa ordem, formam-se vários colégios e missões, praticamente os únicos locais de leitura no Brasil Colônia, com ensino de textos clássicos para os filhos da elite e catequese dos índios.
Século 18
Apesar da proibição de impressão no Brasil e das imposições da Real Mesa Censória de Portugal (que definia os livros a serem trazidos para o país), muitos clérigos tinham bibliotecas particulares. Em muitas delas, havia livros "perigosos", por conterem idéias iluministas.
1808
Com a vinda da família real portuguesa, processos de impressão são permitidos no Brasil. São introduzidos os primeiros livros de leitura, entre os quais se destacam Tesouro dos Meninos (traduzido do francês) e Leitura para Meninos (1918).
1827
Regulamentação da Lei de Instrução Primária. Ensino de leitura, escrita, das quatro operações matemáticas e geometria são objetivos da escola (para as meninas, também são ensinadas prendas domésticas). Qualquer material de leitura (incluindo a Constituição do Império, a Bíblia e manuscritos) poderia ser usado na escola. O ensino baseia-se na oralidade e na memorização.
1860/1890
Livros didáticos começam a ser produzidos com regularidade. Em 1872, realiza-se o primeiro censo nacional, que indica haver cerca de 85% de analfabetos.
1890/1910
Começa a existir uma produção editorial para crianças, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo.
1930
Criação do Ministério da Educação (Primeiro governo de Getúlio Vargas)
1931
Novo programa do curso fundamental do ensino secundário fixa objetivos e conteúdos da nova disciplina, o português. O ensino primário tem grande influência do movimento da Escola Nova, que quer incentivar nos alunos o gosto pela leitura.
1938
Regulamentada a produção de livros didáticos no país.
1942
Novas instruções pedagógicas do curso ginasial estruturam o curso de português em três partes: gramática, leitura explicada e exercícios.
1961
Lei de Diretrizes e Bases consagra a noção de que o texto literário é a base do ensino de português e de que é um meio para aquisição de um saber superior, que ultrapassa o âmbito da escola. O acesso ao ensino é universalizado.
1971
Nova Lei de Diretrizes e Bases dá ênfase ao ensino do português como "instrumento de comunicação e como expressão da cultura brasileira". Vive-se um boom da literatura infantil. Livros paradidáticos e fichas de leitura integram a rotina da escola.
1986/1988
Conceito de letramento começa a ser usado por educadores para analisar as práticas de leitura e escrita no Brasil.