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Um rentável negócio

O Brasil é marcado pela diversidade cultural e pela complexidade de um país continental, múltiplo e desigual, que demorou quase 500 anos para concluir a universalização do acesso à escolaridade obrigatória. Hoje, apesar de vivermos um tempo menos sombrio do que num passado recente, ainda […]

Publicado em 10/09/2011

por Teresa Cristina Rego

O Brasil é marcado pela diversidade cultural e pela complexidade de um país continental, múltiplo e desigual, que demorou quase 500 anos para concluir a universalização do acesso à escolaridade obrigatória. Hoje, apesar de vivermos um tempo menos sombrio do que num passado recente, ainda não conseguimos equacionar os graves problemas educacionais, que vão da falta de igualdade de oportunidades até as enormes deficiências pedagógicas, identificadas no despreparo para atender às necessidades de alunos de origens e interesses diversos.

Embora intensificado nos dias atuais, o problema relacionado à dificuldade de lidar com a diversidade não está restrito à experiência brasileira, tampouco é novo na cultura escolar. Nos contextos norte-americano e europeu, o sistema educacional tradicional (excludente e hierarquizado) também tem sido alvo de severas críticas, já que não tem respondido adequadamente às exigências do mundo contemporâneo (marcado pela modernização econômica, pela mobilidade das pessoas, pelo fortalecimento dos direitos da cidadania e pela disseminação das tecnologias da informação), sobretudo no que se refere à democratização do acesso à escola e ao conseqüente direito que os alunos têm de ser bem-sucedidos em sua escolaridade. Um breve exame da história da educação permite constatar que a valorização da uniformidade e as práticas de submissão do diferente à norma homogeneizadora sempre estiveram presentes na cultura escolar ocidental.

Durante um longo período, a psicologia (assim como outras áreas do saber) serviu para reforçar essas idéias, na medida em que preconizava um modelo ideal de desenvolvimento universal (baseado em pressupostos inatistas ou ambientalistas), que levava, conseqüentemente, a uma visão etnocêntrica, restritiva e naturalizante da desigualdade. Essas controversas idéias serviram como uma espécie de álibi para os problemas gerados na própria escola ou no contexto social mais amplo. Apoiados numa visão estreita dos processos escolares e sociais, trabalhos originados nesse campo produziram explicações estigmatizantes a respeito das crianças (especialmente as pobres) e de suas famílias de origem. Esse legado, largamente difundido entre educadores e psicólogos (e ainda presente no cenário atual), possibilitou a legitimação de um discurso que "patologizou" os problemas de ensino e aprendizagem e, freqüentemente, depositou sobre a criança e sua família a causa dos problemas escolares.


O ônus do fracasso


Mais recentemente, as discussões desencadeadas pela análise crítica da escola e de sua função, numa sociedade estratificada e injusta como a nossa, estimularam o surgimento de um novo tipo de relação entre a psicologia e a área educacional, assim como o desenvolvimento de novas linhas de pesquisa. Tais reflexões evidenciaram a necessidade de alterações profundas não somente em algumas visões já consagradas, como também nas explicações dominantes sobre alguns problemas crônicos do sistema educacional. Esses trabalhos vêm permitindo a mudança do eixo de discussão. Até então ele era pautado na "culpabilização da vítima" (no caso, o aluno pobre, da escola pública) para a construção de um conjunto de conhecimentos sobre a complexidade envolvida nos problemas relacionados ao universo educacional e aos processos de constituição de singularidades, que possibilitam enxergar os alunos como sujeitos reais e concretos (não mais idealizados, portanto) e, principalmente, marcados pela diversidade. Infelizmente, embora indispensáveis, muitos desses trabalhos não chegam ao alcance do grande público educacional.

O que afirmamos até aqui não é nenhuma novidade. O que talvez nem todos saibam é que a educação em nosso país faz girar, anualmente, dezenas de bilhões de reais. Trata-se, sem dúvida, de um mercado aquecido, para usar a terminologia adotada no mundo dos negócios. Além do crescente número de instituições privadas que oferecem cursos de educação básica e superior, um bom indicador desse mercado atraente é a também crescente avalanche de congressos, seminários, simpósios e publicações que tratam da temática educacional. Eventos de grande e de pequeno porte se espalham pelas capitais e causam significativo alvoroço no setor. Mas qual será a razão tanto para a oferta quanto para a procura desse tipo de evento? A resposta talvez seja bastante simples: a educação virou um bom negócio.


Geléia geral


Nesses encontros, que muitas vezes mais parecem grandes feiras, é exposta uma vasta gama de produtos: softwares educativos, livros didáticos, literatura de auto-ajuda pedagógica (sim, já faz um bom tempo que editoras e autores descobriram esse grande filão!), mobiliários, sistemas de ensino, equipamentos tecnológicos de última geração. O apelo do marketing para estimular a compra de novidades é quase sempre o mesmo: de posse dessas modernidades o professor conseguirá operar a tão desejada revolução no sistema de ensino e, principalmente, conquistar ferramentas para enfrentar os desafios do novo milênio!

O apelo se repete para instigar a platéia a participar da extensa agenda de cursos, palestras e conferências ministradas por um número expressivo de especialistas. Pes­soas, trabalhos e abordagens são tratados como panacéia contra todos os males e, como produtos, prontos para serem rapidamente consumidos. Nessas duas últimas décadas, as modas pedagógicas se alternam com uma rapidez cada vez mais evidente, mas o furor consumista que impulsiona o lançamento dos "novos nomes da pedagogia" permanece inalterado. Quando lançados, são tratados com glamour e fetiche, sendo logo endeusados e vorazmente consumidos. E, com a mesma pressa, descartados.  A cada mês, novos ídolos dormem se sentindo reis absolutos e acordam destronados.

Mas, afinal, quem são esses especialistas? O que falam? Quais as suas contribuições? Há economistas, jornalistas, psicólogos, sociólogos, diretores de escola, pedagogos e outros profissionais. Alguns são figurinhas conhecidas que viraram uma espécie de arroz-de-festa. Geralmente são esses que fazem mais sucesso: por meio da sedução, do charme, do carisma como comunicadores, do abuso de clichês e palavras de ordem do senso comum, da apresentação de temas da moda, costumam falar o que os presentes querem ouvir e arrancar aplausos entusiasmados da platéia. Muitas vezes, esse sucesso impulsiona a venda de livros (sim, eles têm vários títulos no mercado, já que publicam livros com uma rapidez espantosa!) e a realização de consultorias e assessorias a diferentes segmentos da educação. Os convidados internacionais (sempre em menor número) gozam de grande prestígio nos eventos, na maior parte das vezes somente pelo fato de serem estrangeiros. Muitos deles vivem em total ostracismo em seu país de origem, mas aqui são tratados (e passam a se sentir) como celebridades graças à grande receptividade da platéia (muitas vezes mais interessada em tirar uma foto na companhia de figura tão ilustre do que fazer alguma pergunta relacionada ao que foi exposto na palestra proferida).


Raros e bons


Felizmente esses encontros contam também – ainda que em menor número – com a presença de estudiosos sérios, educadores de reconhecido valor. Estes são bastante disputados porque raramente dão as caras. E o que os faz tão diferentes daqueles que acabamos de descrever? São também pessoas de diferentes áreas do saber, mas que trilharam um longo caminho de estudos, pesquisas e trabalho no campo educacional. Muitos deles trabalham em grupos ou centros de pesquisa ligados a alguma universidade, fundação ou instituição do terceiro setor. Além de seu compromisso com a produção científica, muitos desses profissionais procuram estabelecer um permanente diálogo entre teoria e prática. As idéias, textos e debates que vêm sendo produzidos por esses grupos com certeza ajudam não somente a discutir os problemas educacionais, como também a encontrar alternativas para superá-los. São pessoas preocupadas primeiramente em trazer algum tipo de colaboração efetiva para o nosso triste cenário educacional. Em resumo, são pessoas que não entendem como um bom negócio a exploração da terra arrasada que sempre foi a educação brasileira.

 Embora seja um ingrediente interessante para a atualização, nem sempre a participação em congressos representa real oportunidade para o desenvolvimento profissional do educador. Estudos mostram que a transformação da quase sempre dura realidade das salas de aula depende de um trabalho reflexivo permanente, que dê condições ao professor de articular, de modo crítico, teoria e prática; de preferência fazendo-o coletivamente no contexto de cada escola. A experiência de países que já conseguiram consolidar um sistema público de ensino há um bom tempo – como a Inglaterra e a França – nos ensina que os desafios da contemporaneidade somente poderão ser enfrentados a partir de uma sólida formação docente. Este é o nosso desafio: formar educadores capazes de fazer escolhas, de não se deixar seduzir pelas pressões consumistas, de indagar sobre os tempos difíceis que vivemos, de ver o presente com olhar mais crítico e perplexo (entendendo que talvez ele pudesse ter sido diferente do que foi) e, principalmente, disposto a lutar para que o futuro possa ser menos sombrio do que se anuncia.

* Teresa Cristina Rego é professora doutora da Faculdade de Educação da USP e autora de diversos livros, entre eles: Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação e Memórias de escola: cultura e constituição de singularidades, ambos publicados pela Editora Vozes (e-mail:
teresare@usp.br

).

Autor

Teresa Cristina Rego


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