Projeto já aprovado pelo Congresso passa a entidade responsabilidade de conduzir as políticas do setor
Publicado em 10/09/2011
A formação dos professores é um pré-requisito para a melhoria da qualidade da educação. Com base neste pressuposto e nas enormes deficiências que o Brasil possui em ambos os campos, o Ministério da Educação formulou uma estratégia para uma política de qualificação dos docentes que atuam na educação básica: transferir para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de avaliação e fomento da pós-graduação, a responsabilidade de conduzir as políticas e ações no nível do governo federal quanto à formação inicial e continuada do pessoal do magistério.
A proposta foi transformada em um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional em junho, depois de sofrer modificações no Senado. Na prática, isso significa que a Capes vai passar a conduzir uma série de ações, em várias frentes, com o objetivo de melhorar a qualidade da formação docente.
Uma das frentes é a constituição de parcerias com as instituições ligadas à Universidade Aberta do Brasil (UAB), órgão de educação a distância recém-criado pelo governo. Já há 300 pólos da UAB funcionando no país e a idéia é chegar a mil. Nesses pólos serão desenvolvidos programas de formação inicial e continuada, seguindo “procedimentos que tenham um impacto positivo na formação e na qualificação docente”, nos termos do presidente da Capes, Jorge Guimarães. Isso significa que a Capes vai publicar editais para que as instituições interessadas desenvolvam programas de formação docente segundo referenciais definidos pela instituição.
Para defini-los, as sociedades científicas estão sendo convidadas a dar sugestões sobre o que pode ser feito em termos da formação de professores para a educação básica em cada área. “A Sociedade Brasileira de Física já se pronunciou e nos enviou uma série de sugestões e propostas. A idéia é que outras entidades façam o mesmo”, conta Guimarães.
Alguns desses programas começaram a funcionar em julho, priorizando a formação de docentes nas áreas de matemática e ciências, que sofrem com a falta de profissionais habilitados. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) dão conta de que há um déficit de 24 mil professores de física, enquanto a estimativa de formandos até 2010 é de 14 mil alunos. Assim, é preciso traçar estratégias para o problema.
Uma segunda frente em que a Capes atuará consiste na utilização de alunos de pós-graduação como professores em escolas. “Existem 150 mil alunos de pós-graduação no Brasil que podem trabalhar pela melhoria da qualidade da formação”, assinala Guimarães. Assim sendo, a Capes pretende criar mecanismos para estimular – inclusive por meio de remuneração – esses estudantes a atuar como docentes de escolas públicas, após passarem por um treinamento.
As outras linhas de atuação são a criação de um programa de iniciação para estudantes de licenciatura e a seleção, por meio de competições entre alunos de escolas públicas, de talentos que receberão apoio para sua formação, visando ao ingresso, no futuro, na carreira docente. Nas Olimpíadas de Matemática, primeira modalidade de competição estudantil realizada, foram identificados 50 mil alunos com aptidão para se desenvolver na área das ciências. Futuramente, serão promovidas competições em outras disciplinas – língua portuguesa, biologia e física são algumas delas.
“Não abrimos mão da avaliação, que foi o que tornou a Capes reconhecida no Brasil e internacionalmente”, defende Jorge Guimarães, presidente da Capes |
Para embasar e orientar as ações da Capes, será realizado um amplo diagnóstico da situação da formação de professores no Brasil, que vai incorporar e sistematizar resultados de estudos localizados e pontuais já levados a cabo, com o objetivo de investigar as causas das deficiências hoje existentes. “É preciso explicar por que instituições que se destacam na pós-graduação estão falhando na área de formação de professores”, assinala o presidente da Capes. Além disso, será implantado um sistema de avaliação dos cursos existentes, nos moldes do que a instituição adota para a pós-graduação, o que é visto como uma das ações centrais da instituição nessa nova frente de atuação. “Não abrimos mão da avaliação, que foi o que tornou a Capes reconhecida no Brasil e internacionalmente”, defende Guimarães.
Instituição adequada?
Apesar do consenso sobre a necessidade e a urgência de se estruturar uma política de formação docente – sob pena de o Brasil não dar o salto de qualidade no campo da educação – há dúvidas quanto à eficácia de se transferir para uma instituição cujo know-how reside na pós-graduação a responsabilidade de ditar os rumos das políticas de formação de professores.
Os questionamentos se dão em torno do pressuposto que embasa a proposta que transforma a Capes na instituição responsável pela indução e o fomento da formação inicial e continuada de professores, tal como expresso na justificativa do projeto de lei encaminhado ao Congresso: a “eficiência e o alto nível” do trabalho realizado pela Capes, que resultou num consistente sistema de avaliação e no estabelecimento de padrões de excelência para a pós-graduação, funcionam, na visão do MEC, como “fatores de indução à excelência dos educadores da educação básica”, além de propiciar maior integração entre o ensino superior e os demais níveis. A idéia é a de que os padrões de qualidade podem ser transferidos para a área da formação docente.
“Essa tarefa retira a Capes de seu curso, além de tentar impor e transpor para a educação básica padrões de excelência fundados em critérios de ‘regulação’ do ensino superior e da pós-graduação”, assinala Helena Freitas, presidente da Associação Nacional de Formação de Professores (Anfope). “Esse último aspecto nos causa maior preocupação por submeter a educação básica e seus profissionais à lógica produtivista que hoje caracteriza a pós-graduação em nosso país”, complementa.
A presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Márcia Ângela Aguiar, levanta outro aspecto que considera problemático na proposta: a falta de familiaridade da Capes com a educação básica. “Atribuir à Capes a responsabilidade de se constituir na instância responsável pela formação de professores da educação básica suscita vários questionamentos. Distanciada do ambiente cultural do ensino básico e das lutas específicas em prol da melhoria da educação básica, a instituição, certamente, teria grandes dificuldades para alcançar o objetivo proclamado no sentido de implantar um padrão de excelência na formação de professores no país”, questiona Márcia.
A Anfope até aceita que a Capes centralize a definição das ações e políticas na área de formação docente, desde que essa atribuição seja temporária. Na visão da instituição, a melhor alternativa para solucionar o problema da formação docente – evitando a fragmentação de programas e ações hoje existente no Ministério da Educação – seria a criação de um órgão, com status de secretaria que congregasse todas as políticas referentes à formação docente. Dentro dessa lógica, a Capes teria um papel de fomento no âmbito da formação continuada. “A proposta que fazemos ao MEC há quase dez anos é a de criar na Capes uma linha de fomento e financiamento de bolsas para professores da educação básica, articulada aos programas de formação continuada dos sistemas de ensino municipais e estaduais e aos programas e pós-graduação nas universidades”, explica Helena.
“A educação básica precisa ficar mais atrelada à educação superior”, avalia Lisbeth Cordami, secretária-geral da SBPC |
O presidente da Capes rebate esse tipo de crítica, enfatizando que o modo de atuação da entidade na pós-graduação, baseado no respeito à autonomia das instituições de ensino e no estabelecimento de padrões de qualidade baseados em avaliações, pode ser transposto para a formação de professores e ter um impacto positivo. “A Capes pode ser fomentadora de mudanças nesse processo”, defende Guimarães.
A secretária-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Lisbeth Kairserlian Cordami, também vê com bons olhos as novas atribuições da Capes. Ressalta que o tema ainda não foi objeto de discussão na SBPC, mas, pessoalmente, acha que a história da Capes garante à instituição condições e legitimidade para desenvolver programas para a educação básica. “A educação básica está à margem das discussões na área da educação e precisa ficar mais atrelada à educação superior. Hoje muitos programas estaduais e municipais de formação estão isolados.”
Para Lisbeth, a Capes pode promover uma articulação entre as diferentes instâncias, além de renovar as metodologias e estratégias. “A Capes teve uma meta, um foco, sem se perder no caminho. Agora, é outro foco. Deve existir alguma instituição que se encarregue da formação docente. Pode até ser outra, não precisa ser Capes, mas ela tem legitimidade para isso.”
Educação a distância
Outra questão que preocupa é o fato de, dentro da nova estratégia, a UAB ser utilizada como um dos canais centrais para os programas de formação. A crítica reside no risco de utilizar a educação a distância como a principal estratégia pedagógica no nível da formação inicial. A preocupação em relação à ênfase na modalidade surgiu quando o projeto ainda tramitava no Senado e provocou uma modificação no texto original para explicitar que na formação inicial se dará preferência “ao ensino presencial, conjugado com o uso de recursos e tecnologias da educação a distância”.
O risco de se privilegiar a educação a distância como estratégia e metodologia de formação é minimizar o papel exercido pelas faculdades e institutos de educação. Márcia Ângela Aguiar, da Anped, alerta: “A UAB não deve ser um pretexto para minimizar a função que os centros e faculdades de educação e os institutos responsáveis pelas licenciaturas exercem como centros formadores desses profissionais”. A Anfope propõe a criação de centros de formação de professores articulados com as universidades públicas, que propiciariam o desenvolvimento de novas metodologias e tecnologias. Os pólos da UAB integrariam esses centros.
Qualquer que seja a solução, demandará tempo. “Não se melhorará a qualificação dos professores brasileiros em dois, três ou cinco anos. É trabalho para uma geração”, avalia o presidente da Capes, Jorge Guimarães.