Revista Ensino Superior | Resistência, resiliência, perseverança. Talvez - Revista Ensino Superior

Colunista

Resistência, resiliência, perseverança. Talvez

Resistência, resiliência, perseverança. Talvez esses sejam os atributos que conferiram a Mariangela Hungria da Cunha o Prêmio Mundial de Alimentação (World Food Prize) 2025, também conhecido como o Nobel da Agricultura. A hipótese é da própria microbiologista e  pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, […]

shutterstock_2507584013-700x420

Resistência, resiliência, perseverança. Talvez esses sejam os atributos que conferiram a Mariangela Hungria da Cunha o Prêmio Mundial de Alimentação (World Food Prize) 2025, também conhecido como o Nobel da Agricultura. A hipótese é da própria microbiologista e  pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, há mais de quarenta anos, em meio às reflexões acerca da conquista.

Não se trata de desmerecer o próprio feito – o desenvolvimento de tecnologias inovadoras em microbiologia do solo, permitindo a substituição de fertilizantes químicos nitrogenados por biológicos, o que leva o país a economizar U$ 25 bilhões e deixar de emitir 230 milhões de toneladas de CO2 equivalente –, mas de refletir acerca dos muitos ‘nãos’ que recebeu.

Um deles tem relação com o norte-americano Norman Ernest Borlaug (1914 -2009), que ganhou o Prêmio Nobel da Paz por causa da sua “revolução verde” e, inconformado por não haver uma categoria para a área da agricultura e produção de alimentos no Nobel, criou o World Food Prize. Ele provou que a adubação química pesada poderia salvar o mundo da fome.

Leia: Resistência e posicionamento para a pesquisa global

Foi nesse contexto que Mariangela chegou à Escola Superior Luiz de Queiroz, a Esalq da USP, em 1976, para cursar engenharia agronômica e, em seguida, o mestrado em solos e nutrição de plantas. Desde a graduação seu objetivo era pesquisar os microrganismos, uma vertente, então, totalmente desacreditada. “E nunca me desviei um centímetro daquilo em que eu acreditava. Dediquei quarenta anos a isso e hoje o Brasil é líder mundial no uso de biológicos na agricultura.”

Criada em Itapetininga, no interior de São Paulo, Mariangela foi com a família para a capital paulista aos 10 anos. O objetivo da mudança era a continuação de seus estudos. Foi bolsista no Colégio Rio Branco.

O doutorado em agronomia e ciência do solo foi na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O pós-doutorado, na Cornell University e na University of California, ambas nos EUA, e na Universidade de Sevilla, Espanha. É pesquisadora da Embrapa desde 1982 e trabalha na Embrapa Soja, em Londrina, desde 1991. É professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

O anúncio do prêmio aconteceu em 13 de maio. Será entregue em 23 de outubro, em Des Moines, nos EUA. Mariangela é a primeira pesquisadora brasileira a receber a láurea, já concedida a outros brasileiros: Edson Lobato e Alysson Paulinelli, em parceria com o norte-americano Andrew Colin McClung; e o presidente Lula, em 2011, juntamente com o ex-presidente ganês John Agyekum Kufuor. Desta vez, não há divisão do prêmio. Mariangela será a única a recebê-lo. Não se sabe quem são os membros votantes, pois são mantidos em sigilo, mas a pesquisadora soube que a votação foi unânime.

O que significa esse prêmio para você?

Jamais poderia imaginar. Eu, no interior do Paraná, gente do mundo inteiro concorrendo, foi realmente uma surpresa. Acho que a vida inteira ouvi tantos “nãos”, que se tivesse acreditado neles não teria prosseguido. Fico analisando. Em geral as pessoas dividem o prêmio, no meu caso foi sozinha, em votação unânime. Acho que foi um pouco por resistência, resiliência, perseverança, porque eu tinha essa vocação desde criança, essa determinação em trabalhar com biológicos.

Quais foram esses ‘nãos’?

Em 1970, Norman Ernest Borlaug ganhou o Prêmio Nobel da Paz por causa da “revolução verde”. Havia a teoria malthusiana de que a população cresceria exponencialmente e já faltavam alimentos, então havia a perspectiva de uma crise monumental de fome no mundo. Borlaug era um agrônomo, melhorista, e provou que através do melhoramento – trabalhou com milho e trigo – junto com a adubação química pesada, era possível aumentar muito a produção de alimento. Trabalhava principalmente com fertilizante nitrogenado, que deixa as plantas bem verdes, por isso o nome, “revolução verde”.

Veja só, ele foi o primeiro agrônomo da história a ganhar o Nobel da Paz, e o Brasil, que na década de 1960 importava alimentos, aplicando isso, estava começando não só a ficar autossuficiente como a dar os primeiros passos na exportação.

Leia: O Brasil é forte em pesquisa científica e pode ser melhor

Eu entrei na Esalq, uma universidade antenada com tudo o que é atual, então, ali, prevalecia a visão química. Mas eu acreditava que devia ter espaço para os produtos biológicos, algo totalmente desacreditado. Os biológicos eram para uma horta em casa, ou agricultura orgânica em pequena escala, não aquilo para o que queriam do Brasil, o que ele é hoje, pois já se falava do Brasil como “celeiro do mundo”.

Nunca me desviei um centímetro do que eu acreditava. Dediquei quarenta anos a isso e hoje o Brasil é líder mundial no uso de biológicos na agricultura e biológicos que permitem altíssimos rendimentos.

Tem sido discutido o papel das mulheres na pesquisa feita no Brasil. Elas são maioria, mas têm pouca visibilidade. Quando você fala desses ‘nãos’, tem a ver com o fato de ser mulher?

Minha avó foi minha grande incentivadora. Eu me identifiquei muito com ela, pois ela era apaixonada pelas ciências, era professora de ciências. Quando eu tinha oito anos, ela me deu o livro “Caçadores de micróbios” [1945, Paul de Kruif (1890-1971)]. Eu estava de férias, fiquei lendo quase a noite inteira e no dia seguinte falei para ela “vó, quero ser microbiologista”. Mas não queria na área médica. E logo depois me deu a biografia de Marie Curie [Prêmios Nobel em Física (1903) e Química (1911]. Pensei: “olha essa mulher cientista, poderosa! Quero ser uma mulher cientista”.

Quando tinha 10 anos minha mãe foi para São Paulo. Eu tive uma grande  oportunidade, sou extremamente grata, estudei no Colégio Rio Branco, espetacular, com bolsa de estudo. Eu era a primeira aluna do colégio e toda a minha classe ia para medicina, odonto, para as ciências biológicas. Quis agronomia. Foi um escândalo, até chamaram minha mãe. Porque naquela época a agronomia não era uma profissão para a elite intelectual, não era algo bem visto. Minha mãe me apoiou.

O problema não era ser uma área majoritariamente masculina, o problema era ser machista. Porque você pode estar num ambiente de homens que não seja machista – quero tentar diferenciar as coisas – mas era muito, muito machista. Para piorar, minha família não tinha propriedades, nada, era um pessoal da cidade. Ainda fiquei grávida no segundo ano, foi um escândalo na faculdade. Havia muito preconceito. Falaram muito que eu tinha jogado minha vida fora, que eu nunca ia ser ninguém. Depois tive uma filha com necessidades especiais.

Parece que suas filhas não atrapalharam sua carreira acadêmica.

Sempre fui muito dispersa, me dedicava a tudo, realmente não tinha foco. Se tinha uma prova, estudava aquilo e tirava 10, se me afundava na história, amava; se fosse matemática, já largava a história. E quando se escolhe uma profissão tem de focar, ainda mais com a estrutura de ensino superior no Brasil, que exige foco desde o primeiro ano. Eu não tinha. Foram minhas filhas que me fizeram ter o foco. Eu jamais teria conseguido ser bem sucedida se não fossem minhas filhas.

Voltemos, então, aos fertilizantes. Você pode detalhar os benefícios dos biológicos em relação aos químicos?

Vou falar do nitrogênio, meu carro-chefe. O nitrogênio é o nutriente de que as plantas precisam em maior quantidade. O nitrogênio faz parte do DNA, RNA, aminoácidos, proteínas e a soja, rica em proteína, precisa muito de nitrogênio.

O processo do fertilizante químico utiliza o nitrogênio do ar. Quase 80% do ar que respiramos é N2, nitrogênio gasoso. São dois átomos de nitrogênio com uma tripla ligação entre eles, fortíssima, uma das mais fortes que conhecemos na natureza. Então, para fazer o fertilizante nitrogenado químico, um processo que foi desenvolvido em 1910, são necessárias altas temperaturas para quebrar essa ligação entre os dois átomos de nitrogênio. Quebrando, esse nitrogênio transformado é oferecido às plantas como fertilizantes nitrogenados.

Mas é um processo caríssimo, precisa de altas temperaturas e pressão que são dadas por derivados de petróleo. São cerca de seis barris de petróleo por tonelada de adubo sintetizado. E é muito solúvel. Com a chuva se perdem fertilizantes para os rios, reservatórios de água e também emite muito gás de efeito estufa. E ainda, como perde muito fácil, a planta aproveita pouco. Se você colocar 100 quilos, a planta aproveita, no máximo, 50. Então, para nós, fica caríssimo porque estamos importando 85% desse nitrogênio.

Leia: Pesquisa botânica leva Unip à Antártida

No biológico, temos principalmente bactérias que evoluíram há milhões de anos para ter uma enzima que consegue fazer a mesma coisa que a indústria – capta o nitrogênio do ar e quebra. É uma bactéria fixadora de nitrogênio. Essas bactérias surgiram até antes de existir qualquer planta na Terra, mas, quando as plantas apareceram, essas bactérias começaram a se associar. É uma coevolução que faz com que essa bactéria não só ofereça nitrogênio à planta, mas o faz na medida certa, não há perda nem emissão de gás de efeito estufa. É um processo maravilhoso, baratíssimo, não incorre em poluição ambiental. O Prêmio veio pela dedicação a esse processo de fixação biológica do nitrogênio. A contribuição do processo ocorre principalmente com algumas plantas leguminosas, em que a coevolução deu mais certo, como soja e feijão, que pode resultar no oferecimento de 100% do que a planta precisa.

Nisso, há uma economia de US$ 25 bilhões. Pegamos toda a área com soja, o rendimento médio nacional e quanto de fertilizante nitrogenado precisaria. Seriam esses 25 bilhões que não usamos porque usamos as bactérias, que saem praticamente de graça. Deixamos de emitir 230 milhões de toneladas de CO2 equivalente, isso porque, conforme falei, o fertilizante nitrogenado é o mais poluente e implica uma emissão de gás de efeito estufa enorme, tanto na síntese, no processo em que se gastam os seis barris de petróleo, quanto no transporte. E, quando se aplica no campo, perde muito como N20,  que é altamente potente como gás de efeito estufa.

É possível que o Brasil deixe de utilizar fertilizantes químicos?

Ainda não, pois não temos conhecimento para fazer agricultura como se faz em nosso país  – terceiro maior produtor de grãos do mundo hoje – só com os biológicos, mas o Brasil é o país que está com a taxa mais alta de adoção de biológicos do mundo.

Nós importamos hoje mais de 80% dos fertilizantes químicos usados. É uma grande dependência, tanto que com a pandemia e a guerra entre Rússia e Ucrânia, que são dois países dos quais mais importamos fertilizantes químicos, as pessoas entraram em pânico. E é um absurdo: como pode um país em que a agricultura é tão importante depender dos químicos?

No caso da soja, hoje temos 47 milhões de hectares cultivados; é uma área maior que Espanha ou Itália. Em 85% desta área utilizamos os biológicos.

E os efeitos na terra?

Pelas análises que fazemos, quando utilizamos os biológicos, os índices de saúde e qualidade do solo são sempre melhores. O químico, ou perde com a chuva ou ele não ajuda tanto a construir a vida no solo, a matéria orgânica. O biológico é muito mais eficiente. Um fertilizante químico pode ser de altíssima qualidade, mas, num solo em que a vida está pobre, a planta quase não consegue aproveitar.

Como você vê os sistemas tradicionais, como a agrofloresta, o extrativismo indígena?

O nosso país é enorme, cheio de possibilidade, temos espaço para tudo. O que deve existir é respeito ao que se quer e se pretende fazer. Por exemplo, a agricultura familiar é muito pouco valorizada. As pessoas não pensam que de 60% a 70% de tudo o que comemos no nosso dia a dia vem da agricultura familiar. Se queremos continuar a ter alimentos frescos, saudáveis, diversificados, é preciso valorizar a agricultura familiar. Há dificuldade de financiamento, porque para financiar tem de ter super bem escriturada a propriedade, e às vezes eles não têm. Não têm assistência técnica, porque o governo está desmantelado e eles não podem pagar um consultor privado.

Em novos tipos como o agroflorestal,  vemos o cacau como uma das possibilidades, porque integra a natureza, uma situação mais protegida e que tem também seu espaço, conseguindo preços diferenciados, tipo exportação.

Mas também há a agricultura de larga escala. Um agricultor que tem uma propriedade grande produzindo alimentos não quer dizer que ele seja um mau agricultor. Temos maus agricultores pequenos, médios e grandes. Temos de dissociar isso. Realmente tem uns maus que são bem grandes, mas posso falar que trabalho desde o pequenino até os super grandes e que a maioria se preocupa, quer saber técnicas sustentáveis de melhoria do solo.

Agora você está se dedicando à recuperação de pastagens. É possível parar o desmatamento, reflorestar, ter pastagens e ainda sobrar terra para a soja e tudo o que precisamos?

Sim. Acontece que o nosso grande problema ambiental na agropecuária são as pastagens. Foram anos de políticas equivocadas. O agricultor vai para uma região, desmata, vende a madeira, cultiva alguns anos porque o solo está fértil ainda, daí cai a fertilidade, vira pastagem, e vai para outro lugar derrubar árvores.

Com isso, hoje, a nossa área com pastagens no Brasil é mais do que o dobro da área com todas as culturas que nós temos. Por volta de 81 milhões de hectares são das culturas e, com pastagem, estão 170 milhões de hectares. De 60% a 70% dessas pastagens estão em estágio de degradação. Com biológicos, mostramos que conseguimos uma recuperação de pastagens, de áreas degradadas, porque às vezes esse solo está ruim, sem vida. Ao reintroduzir a vida no solo com microrganismos, vamos criando matéria orgânica e estamos conseguindo não só aumentar a produção de biomassa para o gado comer como também aumentar a qualidade.

Leia: Pessoas com deficiência impulsionam a pesquisa na universidade

Hoje temos uma coisa que se chama lotação de gado, quer dizer, quantas cabeças de gado se consegue pôr no hectare. No Brasil, é ridículo, algo em torno de uma cabeça para um hectare, porque o pasto é de má qualidade. Mas, se melhorarmos a qualidade, é tranquilo colocar todo o gado que temos hoje no Brasil e liberar metade das áreas de pastagem, o que significará dobrar a área com culturas, sem ter que derrubar uma árvore.

Então, não é fato que o governo está querendo atravancar os que querem produzir. O que há são péssimos agricultores. Nosso rendimento pode ser muito maior. Esse agricultor não produz o que deveria e quer uma nova área, mas o que ele precisa fazer é aumentar a eficiência da produção dele. Hoje temos provas de que podemos ter rendimentos muito maiores do que as médias nacionais que estamos tendo.

Por: | 03/07/2025


Leia mais

shutterstock_2507584013-700x420

Resistência, resiliência, perseverança. Talvez

+ Mais Informações
Mercado de IA mostra cuidados na gestão de talentos

Mercado de IA mostra cuidados na gestão de talentos

+ Mais Informações
Collage,Portrait,Of,Black,White,Colors,Working,Girl,Sitting,Chair

Ao se referir a Lorem ipsum, diferentes expressões são usadas,...

+ Mais Informações
Unifeob

decorrentes da não publicação.

+ Mais Informações

Mapa do Site