NOTÍCIA
Os centros e núcleos de estudos africanos e afro-americanos são instâncias importantes para impulsionar os objetivos da lei 10.639 e formar profissionais nas relações étnico-raciais
Publicado em 12/02/2024
Na PUC-Campinas, um arcebispo e uma mãe de santo do candomblé celebraram juntos um rito ecumênico na inauguração do Centro de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros Dra. Nicéa Quintino Amauro (Ceaab). Foi no ano passado, no dia internacional em memória à escravidão e à luta contra a desigualdade, 23 de agosto. A cerimônia contou com a presença de representantes de 23 municípios e mais de 600 pessoas. Outra cerimônia, também ecumênica, aconteceu para o plantio do baobá, doado para a iniciativa.
Quem conta o momento histórico é a coordenadora do Ceaab, Waleska Miguel Batista, cuja trajetória acadêmica é meteórica. Campineira, cursou o ensino médio na Etec, do Centro Paula Souza, em química. Prestou vestibular, o Enem, e foi aprovada na PUC Campinas, no curso de direito, com bolsa 100% via Prouni. Fez estágios em escritórios e órgãos públicos. Seu trabalho de conclusão de curso abordou o direito e as relações raciais. Com o título “Aspectos jurídicos do racismo no Brasil”, o TCC apontava uma promissora carreira acadêmica. Quando terminou a graduação, em 2016, já tinha sido aprovada no exame da OAB.
Aprovada no mesmo ano para o mestrado no Centro de Economia e Administração da PUC-Campinas, no programa Sustentabilidade Interdisciplinar, obteve bolsa por ser ex-aluna, que posteriormente foi convertida em bolsa da Capes. A dissertação “Cidades Includentes – o dever da desguetização da população negra a partir da Agenda da Onu Habitat III” trouxe comparações entre as cidades de Campinas e Cape Town, na África do Sul.
Com a pesquisa, Waleska constatou que “apesar de haver essa agenda internacional falando do combate às desigualdades nas cidades, temos cidades segregadas, sem políticas includentes, em função do racismo”. Ela também observou que a África do Sul não é um país multicultural. “Fui lá e vi o apartheid ainda muito presente na política urbana.”
Waleska terminou o mestrado em 2018 e ingressou no doutorado em 2019, na Universidade Mackenzie, num processo seletivo em que obteve o primeiro lugar. Seu desejo era o doutorado em direito “até em razão da formação e dos debates acadêmicos que tinha como alvo”, explica. O doutorado em direito político e econômico foi sob a orientação de Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos.
Foi contratada pela PUC Campinas em outubro de 2022, como advogada no núcleo de ensino clínico em direitos humanos, uma ação extensionista da assistência judiciária da faculdade de direito. “Desde que ingressei, o objetivo da PUC era fazer a constituição de mais debates internos sobre relações raciais”, conta. Hoje é professora na instituição e ministra as disciplinas de direito constitucional e direitos humanos. Em 2023, a pedido do reitor, iniciou os preparativos para a criação do Ceaab.
A lei 10.639, de 2003, incluiu o estudo da cultura africana e afro-brasileira no currículo oficial. Na universidade, a temática deveria estar presente em todas as formações, nas licenciaturas e bacharelados, mas “ainda é uma luta”, fala Waleska.
“A legislação completou 20 anos e muitos profissionais não estão formados para debater sobre a importância de o tema atravessar todas as matérias. Por exemplo, ao ministrar matemática, trazer um matemático negro de destaque. Não é preciso que haja debate sobre relações raciais, mas mostrar a intelectualidade e isso já é trabalhar fora do estereótipo presente no imaginário social de que o negro é incapaz, de que não tem produção intelectual, e que acaba por constituir o imaginário da criança também. Se temos um matemático negro, a criança entende que ela também pode se tornar um matemático. Se vamos estudar direito civil, temos de estudar direito civil e escravidão, porque foi o direito civil que regulou e chancelou a venda de escravizados. É importante. Na geografia, Milton Santos debate relações raciais e apresenta um plano estratégico sobre o Brasil. Mas a lei ainda carece de mais efetividade. Isso tem de ser cobrado, sim. Não estamos aqui na PUC para obrigar mudanças na matriz curricular, mas para mostrar que isso se faz fundamental.”
Os centros e núcleos de estudos africanos e afro-brasileiros são instâncias importantes para impulsionar os objetivos da lei 10.639 e para a formação de profissionais com perspectivas acerca da diversidade, hoje bastante requeridos pelo mundo corporativo.
Na PUC-Campinas, o Ceaab está na unidade administrativa da reitoria, diretamente ligado à principal gestão, a que pensará a formação e as matrizes curriculares dos cursos da instituição. “Todos os cursos têm debates sobre políticas públicas e direitos humanos, é a base. Fizemos uma solicitação para que os cursos enviassem as atividades que fizeram relacionadas à temática de relações étnico-raciais no Brasil, recebemos material de quase todos. Eles trabalharam o tema em atividades em sala, leitura, revisão ou grupos de estudos.”
Entre as atribuições do Ceaab estão a proposição, a implementação, a execução e a avaliação de ações para a educação étnico-racial nos âmbitos do ensino, pesquisa e extensão. Entre as ações, há palestras sobre racismo – já foram quatro edições, abordando racismo e saúde mental, segurança pública e desigualdades sociais –, proferidas para a comunidade interna e externa. “Difundimos nas redes internas, e-mails dos alunos, no site da PUC, e convidamos o movimento negro parceiro do Ceaab. Todo mundo é convidado, não precisa de carteirinha da PUC nem inscrição, é aberto.”
Outras frentes incluem formação continuada da comunidade acadêmica nas temáticas das relações étnico-raciais, da qual participam professores, funcionários administrativos, inspetores e o pessoal da limpeza. E os cursos de extensão, de curto e longo prazo, para a comunidade externa, inclusive para empresas. “Temos o foco nas organizações corporativas, em temas vinculados à ESG”, conta Waleska.
A manutenção de um repositório digital de produções científicas também é atividade do Ceaab. “São TCCs, pesquisas e artigos produzidos na instituição a partir da temática étnico–racial.” E há grupos de estudos sob a coordenação do Centro. Um deles trabalha o tema do “Racismo e sexismo na produção social”, com alunos do direito, publicidade e arquitetura.
A equipe que leva as atividades adiante é formada por três professores e um auxiliar administrativo. Parcerias com os movimentos negros são fundamentais, ensina Waleska, “é o que traz dinamismo para as atividades”.
Nicéa Quintino Amauro, que dá nome ao Ceaab, foi uma acadêmica de Campinas falecida recentemente, professora da Universidade Federal de Uberlândia, “que pensava, no contexto da química, os procedimentos para a estética das mulheres negras, além de participar, junto com sua família, em prol da proteção da população negra local. Foi uma mulher negra protagonista e líder”, finaliza.
Na Unisinos, em Porto Alegre, o Núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas, o Neabi, surgiu a partir de um grupo de diálogo inter–religioso, uma iniciativa da Igreja Católica, comandada pelo padre jesuíta José Ivo. Nele, estavam presentes representantes das religiões de matriz africana. “Havia também muitas iniciativas sociais. Foi uma mãe de santo que interpelou o padre sobre projetos para os negros”, conta Jorge Teixeira da Silva, professor da Escola de Saúde da Unisinos e coordenador do Neabi.
O questionamento e a lei 10.639 impulsionaram as primeiras discussões para a criação do Neabi, há 15 anos. Hoje, o núcleo atua em duas frentes, na graduação e na extensão. “Chamamos de projeto dobradiça, porque tem os dois pés, um cravado na graduação, outro na comunidade.”
É responsabilidade do Neabi ministrar a disciplina “Educação das relações étnico-raciais e culturais na escola de educação básica”, obrigatória em todas as licenciaturas. “É um nome comprido mas dá conta de elementos importantes”, menciona Teixeira. Um dos muros que a lei encontrou para sua efetivação é justamente a alegação de professores acerca da falta de formação para abordar a cultura africana e afro-brasileira com as crianças e jovens da escola básica. No bacharelado, o Neabi ministra as disciplinas “Afrodescendentes na América Latina” e “Povos indígenas da América Latina”. São optativas, escolhidas entre quatro disciplinas.
Teixeira aponta a necessidade de disciplinas específicas na universidade, embora o tema seja transversal. “O que é de todos é de ninguém e esse é o problema da transversalidade”, explica. “Tem de ser uma disciplina com essa especificidade para que o aluno seja avaliado pelo seu desempenho no desenvolvimento de competências. O objetivo é a diminuição dos efeitos da escravidão.” E que seja ministrada por professores negros, “um professor engajado, porque o professor bancário vai dar um texto e discuti-lo desprovido de paixão, de casos reais. Não que o professor branco não possa, ele tem o seu papel. Mas há tantos professores negros fora da universidade, por que não tê-los ministrando esse tema?”
Apesar de não obrigatória nos bacharelados, cresce a importância da formação nas relações étnico-raciais na medida em que o mundo corporativo já avançou nesse sentido. Teixeira fala da necessidade urgente de sensibilização. “Eu digo aos estudantes ‘vocês estão lutando muito para serem profissionais das diversas áreas, mas vocês não vão jogar fora toda a caminhada de vocês por causa de uma brincadeira, uma piadinha racista, machista, homofóbica. Se vocês não se sensibilizarem de forma humanizada, correm o risco de botar tudo a perder por serem profissionais obsoletos. Os tempos mudaram.” A outra aba da dobradiça são os projetos sociais, “ir aonde os negros estão”. Teixeira destaca a importância “de essas pessoas saberem o lugar que elas ocupam no mundo e que esse lugar não foi dado por Deus, mas por uma mão branca”. A hierarquização do ser humano, presente no pensamento colonial e ainda hoje na sociedade, coloca o negro em lugares nos quais eles mesmos não percebem. “É o que chamo de torpor social.”
“Vivemos um período militar em que não se podia falar sobre racismo no Brasil. O mito da democracia racial vingou. As escolas não falavam sobre isso, era todo mundo igual e ainda há uma geração de negros que acredita nisso”, afirma Teixeira, para quem a falácia da meritocracia, que incute a ideia de que é preciso se esforçar mais, aumenta a opressão. Os projetos extensionistas têm o objetivo de desvendar esse contexto.