NOTÍCIA

Edição 279

Assentados da reforma agrária alcançam o ensino superior

Políticas públicas como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, o Pronera, criado em 1998, tem como objetivo diminuir a desigualdade do Brasil

Publicado em 09/11/2023

por Sandra Seabra Moreira

Reforma agrária Formandos da terceira turma especial de medicina veterinária da UFPel (foto: divulgação)

São necessários 180 anos, ou nove gerações, para que um brasileiro entre os 10% mais pobres chegue à classe média, de acordo com estudo recente da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Por outro lado, um dos instrumentos mais eficazes para diminuir a desigualdade é a educação. Um diploma do ensino superior pode elevar em até 219,4% o ganho – financeiro e de qualidade de vida – de uma pessoa, em relação àquela que parou no ensino médio, de acordo com o Cadastro Central de Empresas de 2023, do IBGE.

Políticas públicas como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, o Pronera, criado em 1998, portanto alcançando seus 25 anos, tem como objetivo diminuir essa desigualdade que os números das pesquisas apontam com insistência. Ele é destinado a jovens e adultos de assentamentos criados ou reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), quilombolas, professores e educadores que exerçam atividades educacionais voltadas às famílias beneficiárias, além de pequenos produtores rurais atendidos pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). Dados de 2021 do Incra mostram que desde a sua criação o Pronera formou 529 turmas, em todo o país, nas modalidades Educação de Jovens e Adultos (EJA), nível médio profissionalizante, graduação, especialização e mestrado. No âmbito do ensino superior, as parcerias são realizadas com IES públicas e privadas sem fins lucrativos. São cursos de agronomia, veterinária, pedagogia, história, geografia, economia rural, tecnólogo de agropecuária, direito.

 

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Foi com o Pronera que a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, implantou as turmas especiais do curso de medicina veterinária, há 12 anos. Até agora, já foram três turmas, cerca de 130 alunos formados. A quarta turma está em andamento e a quinta teve início em 2023, com 60 alunos.

Também no início deste ano, a UFPel iniciou as tratativas para a implantação de mais uma turma especial, via Pronera, desta vez para o curso de medicina. Mas a premissa de que a educação promove mobilidade social parece incomodar quando ganha contornos concretos.

O anúncio dessa nova empreitada gerou críticas e apontamentos de dedos, tanto internamente, na Faculdade de Medicina, quanto de entidades de classe. Também foi enfrentando resistências similares que teve início a turma especial para a medicina veterinária, inclusive, envolvendo processos judiciais. “E nós superamos tudo”, conta Marco Aurélio Fernandes, professor do curso de direito e assessor da reitoria da UFPel.

 

Experiência exitosa

 

O curso de medicina veterinária regular da UFPel é um dos mais antigos e tradicionais da instituição. Já as turmas especiais, com apoio do Pronera, foram criadas a partir da mobilização de docentes e estímulo dos movimentos sociais. Os alunos dessas turmas especiais, provindos de assentamentos, conquistaram nota 5 no Enade. “Ou seja, não há nenhuma dinâmica em relação a essas turmas que atenue a exigência, o comprometimento da UFPel com a qualidade, a excelência”, menciona Fernandes.

O currículo é o mesmo do curso regular. A diferença está no apoio pedagógico, na monitoria que os alunos recebem. Esse apoio é fundamental. Por não se tratar de uma turma regular, no ano seguinte não há a oportunidade de refazer disciplinas e a reprovação em uma ou mais disciplinas pode comprometer a continuidade do estudante no curso. Fernandes relata que a proximidade dos professores com os alunos é ainda maior do que nos cursos regulares. “Sabemos que eventualmente pode haver dificuldades provenientes de formações anteriores e buscamos equalizar no decorrer do curso.”

Os estudantes são assentados do próprio entorno da cidade de Pelotas, do entorno do município de Piratini, onde há um programa importante de assentamento, de outras regiões do Rio Grande do Sul e de outros estados, como do Maranhão. A maioria são jovens que retornam aos seus locais de origem depois de formados.

“Temos percebido que o grau de comprometimento de alunos e alunas dessas turmas é distinto do regular. Tanto é verdade que o próprio percentual de desistência é muito menor em relação ao curso regular.” Para Fernandes, nesse comprometimento, prepondera o compromisso dos estudantes com o movimento social de assentados aos quais pertencem. “Relatos de egressos dão conta de que eles retornam para suas bases, seus locais de origem, lá atuam e, evidentemente, fazem a diferença.”

 

O susto

 

Assim como toda a área acadêmica e de pesquisa sofreu reveses nos últimos anos, com um governo federal que não priorizou a educação, o projeto das turmas especiais do curso de medicina veterinária sofreu com falta de verbas.

O financiamento de cada turma requer um projeto específico, com a discriminação de gastos e aportes. “Celebra-se o instrumento entre a universidade e o Incra, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, que aporta recursos para despesas com que a UFPel não tem condições de arcar, como a parte de alimentação, moradia, contratação do pessoal de apoio pedagógico, transporte e, especialmente no caso de medicina veterinária, há a questão do deslocamento, enfim, toda a logística. Os pactos não foram cumpridos por parte do Incra, em função da ideologia do governo de então, o que fez com que a UFPel tivesse que suportar encargos financeiros não previstos. O déficit foi de R$ 3,5 milhões.”

A partir deste ano, o INCRA voltou a fazer repasses. “Espero que o povo brasileiro lute bastante para que a situação anterior não aconteça mais.”

 

O que vem por aí

 

O curso de medicina para assentados é um sonho antigo da reitoria da UFPel, entendido como um verdadeiro instrumento de emancipação. O projeto, ainda em fase de construção coletiva, ganha força agora a partir de novas provocações dos movimentos sociais e estímulo do governo federal. Um dos argumentos dos críticos, diz Fernandes, é que o assentado tem que ser veterinário ou agrônomo. “O que tem a ver médico com assentado?”, perguntam. Em defesa do curso, Fernandes reitera “com palavras que já estão se tornando repetitivas e enfadonhas” – até porque dizem o óbvio: “Todas as comunidades, pequenas ou grandes, querem se prover de profissionais, de instrumentos e possibilidades que qualifiquem o seu existir. Seja na atividade econômica ou no próprio viver. A lógica do Pronera é qualificar pessoas desses espaços para que elas tenham autonomia. Afinal, quem não quer ter próximo a si um médico?”.

Fernandes lembra que os assentamentos estão em regiões distantes. Remetendo-se à experiência com os estudantes de veterinária, ele conta que os alunos dizem “professor, para nós, onde todo mundo diz que é de difícil acesso, aonde ninguém quer ir, é o nosso espaço de vida”. Vale lembrar que os setores do agrovet e agropet, em crescimento no país, são os principais destinos dos egressos de cursos regulares de veterinária. Na medicina, também não há indícios de que assentamentos distantes sejam opções corriqueiras de egressos dos cursos regulares.

 

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Com a nova proposta, capacitando assentados da reforma agrária, a UFPel espera contribuir para a existência de um sistema de saúde mais inclusivo, equitativo e sensível às necessidades das populações rurais e agrárias. Na fase atual, ocorre o levantamento das necessidades materiais, de infraestrutura, de recursos humanos e insumos. Se há controvérsias e resistências, também já existem apoios declarados. Por exemplo, a Ebserh, empresa pública responsável pela administração do Hospital Escola da UFPel, já se comprometeu a viabilizar os espaços de ensino necessários. A inclusão do novo Hospital Escola no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, é considerada um exemplo deste compromisso.

Autor

Sandra Seabra Moreira


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