Coordenadora do CEPI e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP
Medidas precoces de proibição e o uso leviano por alunos são alguns dos problemas acarretados com a chegada IA generativa na sala de aula
Recentemente, em um curso que ministrei em uma universidade estrangeira, um aluno entregou o trabalho de avaliação final totalmente gerado pelo ChatGPT, sem sequer tentar ocultar o feito. Estava tudo lá, exceto o prompt. Seria sua intenção aproveitar-se de uma possível brecha na formulação da tarefa, ante a inexistência de vedação expressa nas instruções, ou foi simplesmente uma maneira descarada de trapaça? Como enfrentar essa questão?
Desde que se tornaram publicamente acessíveis, os aplicativos de IA generativa têm tumultuado o ambiente acadêmico: das medidas precoces de proibição de uso, passando pelas pesquisas de performance acadêmica das próprias ferramentas, o uso leviano por alunos, até o recente retorno ao papel.
Quando não delimitado pela proposta pedagógica, o uso da IA generativa em trabalhos acadêmicos compromete tanto a avaliação da produção do aluno quanto o processo de ensino-aprendizagem. Em um artigo de opinião intitulado “AI cheating is hopelessly, irreparably corrupting US higher education”, um professor de inglês da Florida SouthWestern State College argumenta que o uso de IA pelos alunos para produção de textos tem comprometido o processo de pensamento crítico e lógico.
Do ponto de vista pedagógico, se o uso da IA generativa não faz parte da proposta de um trabalho formativo ou avaliativo, seu uso sequer precisaria ser mencionado, dependendo, portanto, de expressa autorização, remetendo à estrita legalidade.
O aluno, porém, não enxerga o curso por esse ângulo educativo. Sua lógica converge para a do senso comum, em favor da ampla legalidade, na qual o que não é proibido é permitido. Na sua gestão de trabalhos da faculdade, das relações pessoais e da profissão, a IA generativa é uma aliada estratégica para garantir uns minutos a mais de sono.
Entre a estrita e a ampla legalidades dos trabalhos acadêmicos, há diversos aspectos a se considerar. Um bom ponto de partida pode ser uma recente decisão do Tribunal Distrital de Columbia. No caso Thaler vs Perlmutter, oTribunal entendeu que obras sem autoria humana não se qualificam para registro de direito autoral. No caso, o autor da ação, Stephen Thaler, desenvolvedor e proprietário de um sistema de computador por ele denominado “Creativity Machine”, gerou uma obra de arte chamada “A Recent Entrance to Paradise”. Segundo Thaler, a obra foi “criada de maneira autônoma por um algoritmo executado em uma máquina”. A agência de registro de direitos autorais, ré na ação, negou o registro com base na Lei de Direito Autoral americana de 1976.
Considerando o entendimento do Tribunal, se o output da IA generativa não possui autoria, então ele é imprestável como trabalho acadêmico. Embora inexista violação de direito autoral por parte do aluno que apresenta tal output como sendo seu, o trabalho constitui plágio acadêmico por se tratar de cópia de conteúdo alheio. Para evitar o plágio, o aluno teria de descrever todos os passos para gerar o conteúdo, como url, data e hora de acesso, sequências de prompts e as respectivas respostas, incluindo as que produziram o conteúdo desejado.
Certamente, um trabalho apresentado dessa forma, sem qualquer modificação por parte do aluno, não tem qualquer valor avaliativo e/ou formativo, exceto quanto à habilidade de “codificar” prompts relevantes. O trabalho seria análogo a fotocópias de conteúdo levantado pelo aluno, desconsiderado, nesse caso, o esforço de pesquisa, inexistente na interação com a IA generativa.
Para agregar algum valor, o aluno teria, no mínimo, de verificar todas as fontes citadas, bem como avaliar a pertinência dos argumentos, demonstrando algum esforço de validação do output. Ainda assim, não haveria qualquer esforço autoral em relação ao conteúdo gerado, o qual permaneceria sem valor avaliativo (ante a ausência de autoria). Se devidamente documentada e pertinente ao problema proposto pela tarefa, tal validação poderia eventualmente ser objeto de avaliação.
Em caso de modificações no output por parte do aluno, haveria esforço autoral passível de avaliação. Para fins de proteção de direito autoral e, por conseguinte, para avaliação, apenas as alterações são atribuíveis ao aluno (já que se trata de obra derivada), de modo que apenas mudanças pertinentes e que contribuam para a consecução do objetivo da tarefa seriam objeto de avaliação. Se o objetivo da atividade demandada pelo docente for atendido pelas modificações, então ele poderá aceitar como trabalho a obra derivada do output da IA generativa, desde que seja devidamente documentada a geração da obra bruta, sua validação e o conteúdo que foi alterado.
Entendo que, em caso de ausência de regras, pelo menos no estágio atual da discussão, esse aceite não se reputa um direito do aluno, mas sim uma liberalidade do docente, a quem cabe avaliar se os objetivos pedagógicos e/ou avaliativos da tarefa foram atendidos. Ainda assim, de um ponto de vista pragmático, talvez seja interessante incluir o uso adequado da IA generativa em trabalhos rotineiros (excluídos, portanto, os trabalhos de conclusão) em prol da transparência e da honestidade acadêmicas, sob risco de fomentar o aumento de casos de fraudes.
*Este artigo sobre o uso da IA faz parte da edição 278 da Revista Ensino Superior. Assine e tenha acesso à edição completa.
Por: Marina Feferbaum | 21/09/2023