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Entrevistas

Letramento digital: bem mais que programação

Tudo o que se vê nas redes, como questões éticas e de cidadania, é mediado por tecnologias e algoritmos.

Publicado em 29/05/2023

por Ensino Superior

letramento digital 2

Em tempos de notícias falsas, fraudes virtuais e desenvolvimento de tecnologias capazes de reproduzir criações humanas, melhorar o acesso e a compreensão do mundo digital tornou-se questão fundamental para estudantes e professores de todas as idades. Na entrevista a seguir, Paulo Blikstein, professor da Escola de Educação da Universidade de Columbia e diretor do Transformative Learning Technologies Lab, reflete sobre o conceito de letramento digital e sua importância. Para ele, o letramento verbal é uma condição necessária, mas não suficiente para chegar não só à condição de usuário, mas de criador no mundo computacional. Pensando sobre a realidade da educação básica brasileira – fundamental para formar os futuros universitários – muitas de suas ponderações também são válidas para as IES. Ele recomenda não só que as escolas tenham suas áreas de Tecnologia da Informação, realidade já existente em muitas instituições superiores, mas também que haja disciplinas com profissionais capacitados para acompanhar o velocíssimo desenvolvimento tecnológico.

 

A ideia de letramento digital é muito associada ao conhecimento de ferramentas e à programação. Mas há outros aspectos menos utilitários, como as questões éticas envolvidas. Quais pontos definem o que é letramento digital?

 

O letramento digital vai muito além da programação, ele inclui questões éticas, de cidadania e outras que vou mencionar a seguir. Hoje em dia, a participação cívica na sociedade, o entendimento do que está acontecendo no mundo, a tomada de decisões como votar, participar politicamente, tudo isso é mediado por tecnologia. As pessoas recebem notícias pelas redes sociais e também se comunicam por elas, e essas redes são mediadas por algoritmos. O que você vê nas redes é mediado por um algoritmo. Se você não entende o que é o algoritmo, a sua participação na sociedade é prejudicada, pois você não sabe se está recebendo notícias como elas são, ou filtradas por um algoritmo que está tentando maximizar o seu engajamento com aquele conteúdo. O letramento digital protege da desinformação. Outro aspecto é saber proteger a privacidade dos seus dados, saber que existem coisas que não se deve compartilhar, pois as consequências são graves. Há diferentes tipos de golpes, de crimes cibernéticos. Também tem as questões de bem-estar e saúde mental – essas tecnologias não são necessariamente saudáveis. Saber, por exemplo, quando é hora de desligar o Instagram, o celular, se afastar de um aplicativo, de um jogo. Muitos jogos são desenhados com o que a gente chama de dark patterns, padrões utilizados intencionalmente para viciar as pessoas, baseados em teoria da psicologia cognitiva, comportamental. Há uma série desses padrões catalogados por pesquisadores. É importante saber identificá-los, saber que viciam as pessoas, causam problemas de saúde mental e tudo mais.

 

No âmbito educacional, até onde a tecnologia é meio e até onde é fim? Deve haver alguma disciplina específica?

 

A tecnologia é meio e fim. Em uma aula de robótica, de programação, a tecnologia é fim. Mas ela também é meio, pois você está aprendendo física enquanto faz um robô, está aprendendo matemática ao projetá-lo em um software. Você aprende a linguagem de programação, mas também as outras disciplinas. Agora, a tecnologia como uma infraestrutura, por exemplo, acesso à internet, acesso a e-mail, isso deve estar universalizado nas escolas, mas é talvez o uso menos complexo da tecnologia. Quando falamos de uma escola com conexão para a internet, é apenas o primeiro passo, pois isso não quer dizer que essa internet é usada pedagogicamente. Costumamos trabalhar com três níveis: a tecnologia de infraestrutura, a tecnologia de ensino (o uso para otimizar algo mais tradicional, quando ela também é um pouco mais meio) e a tecnologia para experimentação e criação. Acho que deve haver as duas coisas: disciplinas específicas de tecnologia e a tecnologia como ferramenta de criação, de experimentação, incorporada às aulas de ciência, de matemática. Tecnologia não deve ser algo que acontece isoladamente. Há momentos que são extraclasse, ou de disciplina específica, mas tem de estar incorporada às disciplinas normais, que é como os cientistas trabalham. Não faz sentido aprender a ciência que era feita nos anos 50, é preciso aprender a ciência de hoje, usar a tecnologia para fazer experimentos. Tem de aprender a matemática de hoje, que usa computador.

 

letramento digital

Paulo Blikstein, da Universidade de Columbia: as escolas precisam de um professor de tecnologia (crédito: Bruce Gilbert)

Como lidar com essa questão na formação continuada, pensando especialmente nos professores com menos desenvoltura para as novas tecnologias?

Não dá mais para colocar todo o peso de aprender tecnologia nas costas do professor e da professora. Hoje precisamos nas escolas de um professor só de tecnologia. Quando você coloca tecnologia em uma empresa, computadores, redes, e tudo mais, tem um departamento de TI inteiro gerenciando aquilo. Na escola, não costuma ter. As pessoas vão se virando para manter aquilo funcionando, e isso é inadequado. A tecnologia exige infraestrutura de manutenção, não pode estar nas costas do professor fazer manutenção de computador, ou da infraestrutura básica. Também existem muitas coisas sofisticadas na tecnologia, não podemos esperar que o professor e a professora aprendam tudo. As escolas têm de ter um profissional de tecnologia, e a formação do professor tem de focar uma base pedagógica, ou seja, entender para quê ele pode usar a tecnologia. Mas aprender como programar ou como usar uma impressora 3D é demais para um professor que tem de dar aula de ciências, de matemática etc. Temos defendido a presença de um professor extra na escola, que a gente chama de professor de redesenho pedagógico, que vai aprender mais profundamente essas tecnologias, trazer isso para os currículos. Com esses profissionais na escola, mesmo aqueles com menos desenvoltura para tecnologia poderão dar uma aula mais moderna, pois haverá mais recursos e ajuda. Não vamos nunca alcançar, com a carga horária que temos para a formação continuada, a velocidade da tecnologia. Uma solução é focar as horas que existem mais na parte pedagógica e criar essa infraestrutura na escola para apoiar os professores.

 

Falamos muito em letramento digital como ferramenta para entender esse novo universo. Até que ponto um letramento verbal que dê conta do domínio pleno da língua ajuda nessa questão?

 

É claro que o letramento verbal, clássico, é fundamental para entender o mundo digital, ou qualquer mundo. O domínio da linguagem não tem só uma função comunicativa, mas de formação do pensamento. O letramento verbal tem reflexos em todas as partes da sua cognição e, claro, no letramento digital também. Isso vai ao encontro do pensamento de Paulo Freire, de que não é só ler a palavra, é ler o mundo também. O letramento digital permite que você leia o mundo, e o mundo hoje em dia é repleto de tecnologia; esses dois letramentos são fundamentais, o verbal e o digital. O verbal é condição necessária para o digital, mas não suficiente para você alcançar o digital. Você precisa não só programar, mas entender todas essas coisas antes. Muitos pesquisadores apontam características muito semelhantes entre o letramento verbal e o digital, que, na verdade, chamamos de letramento computacional, pois não é só a tecnologia digital, e sim um letramento mais ligado a entender como funcionam as máquinas, os computadores, os algoritmos e tudo mais. O empoderamento trazido pelo letramento verbal tem uma analogia muito interessante com o digital, ou seja, se você está em um mundo em que as pessoas leem e escrevem, você não só entende como pode produzir e participar dessas produções e de tudo que elas possibilitam. No mundo computacional é a mesma coisa. Se sabe ler, mas não sabe escrever, você está limitado em suas possibilidades. Não basta ser apenas um leitor, um usuário, tem de ser um usuário e um criador.

 

Autor

Ensino Superior


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