NOTÍCIA
O que, mais do que qualquer outra coisa, leva líderes a direcionar ou redirecionar suas vidas, lidar com problemas aparentemente intratáveis e manterem-se fiéis a seus valores diante de desafios gigantescos?
Publicado em 02/03/2023
Por Jacqueline Novogratz e Anne Welsh McNulty/SSIR Brasil: Patrick Awuah fugiu da ditadura militar em Gana e deixou a terra natal para fazer faculdade nos Estados Unidos. Ele se instalou em Seattle, teve uma carreira de sucesso como gerente de programas da Microsoft, casou-se com uma americana e constituiu família. Ao deixar Gana para trás, Patrick estava decidido a jamais voltar. Anos mais tarde, entretanto, o nascimento de seu primeiro filho despertou uma inquietação latente. Sabendo que a África seria importante para o modo como seus filhos se enxergariam e para a forma como o mundo os enxergaria, começou a cogitar uma volta ao seu país de origem. Mas qual poderia ser sua contribuição?
Patrick encontrou a resposta na educação, acreditando haver uma relação causal entre o enfoque educacional tradicional de Gana, com raízes no período colonial, e a liderança débil que ele via em todos os níveis do país. Embora tenha vindo a fundar a Ashesi University, primeira universidade de artes liberais da África (atualmente a melhor universidade de Gana e entre as 300 melhores do mundo, segundo o ranking de impacto da Times Higher Education de 2022), ele levou um tempo para se sentir pronto para agir: “Eu estava adiando porque tinha receio de fracassar. Mas se não tentasse, fracassaria de qualquer maneira — então, por que não ir adiante?”.
Essa não é uma história singular de liderança, mas, sim, representativa, e que carrega o tipo de visão e vigor necessários para promover mudanças. Através de nosso trabalho de apoio a redes de contatos de líderes no Aspen Institute, onde ambas fazemos parte do conselho administrativo, e em nossas organizações — Acumen e McNulty Foundation — ouvimos centenas de histórias incríveis como a de Patrick. Além disso, tivemos a sorte de conhecer, compreender e aprimorar indivíduos cheios de ambição de todos os cantos do mundo. Alguns alteraram as missões de suas empresas para colocar o impacto social em seu cerne, em vez de apenas o lucro, ao passo que outros abandonaram o mundo empresarial por completo para atuar em prol de comunidades marginalizadas. Alguns são jornalistas que enfrentaram ameaças de morte, regimes autocráticos e culturas de corrupção com o objetivo de publicar histórias capazes de mudar a vida das pessoas e revelar verdades que desafiam o poder. Outros, de origens e crenças distintas, se juntaram para reimaginar os sistemas em que vivemos.
Assim, nós nos perguntamos: O que todos esses líderes têm em comum? O que os leva a direcionar ou redirecionar suas vidas, lidar com problemas aparentemente intratáveis e manterem-se fiéis a seus valores diante de desafios gigantescos? Após ponderar sobre as trajetórias dessas pessoas, acreditamos ter encontrado um elo comum: coragem moral.
Vemos essa qualidade como o mais importante atributo que líderes de mudança social podem ter. Coragem moral é o comprometimento para agir segundo os valores que se possui independentemente das dificuldades ou dos prejuízos pessoais, inspirando convicção para atuar com clareza e seguir firme nos objetivos, mas sendo flexível quanto ao método. Coragem moral é uma mentalidade que centraliza as condições internas necessárias para fazer com que escolhas corajosas sejam visíveis, transmitindo a confiança de que é possível.
Do mesmo modo, coragem moral é a determinação e a resiliência necessárias para tentar e errar, à medida que se busca resolver algumas das maiores desigualdades da sociedade — cair e se levantar novamente; é persistir quando tudo a seu redor está desmoronando, suportando provações não apenas por meses ou anos, mas pela vida toda.
Nós acreditamos que a coragem moral não é inata — deve ser cultivada e desenvolvida. Graças a nosso trabalho, observamos práticas que ajudam a identificar, fomentar, direcionar e sustentar essa coragem. Os programas em liderança da Aspen conduzem os participantes por um processo intensivo, de dois anos de duração, que tem como objetivo auxiliar líderes a despertar e elucidar seus valores, elevar sua coragem moral e canalizar sua liderança para resolver nossos maiores desafios. Vimos líderes passarem por essa jornada e emergirem mais fortes, eficazes e engenhosos na busca por mudança social. O processo está enraizado na transformação do eu e, por sua vez, produz reverberações que transformam as comunidades, organizações e os sistemas onde lideram e vivem.
Se vamos promover mudanças de acordo com os problemas enfrentados pelo mundo, precisamos que mais pessoas respondam ao chamado para combater a injustiça. Precisamos de um movimento de verdadeiros líderes e de liderança sustentável orientado pela coragem moral. E precisamos de um coro de financiadores e apoiadores que reconheçam a árdua jornada adotada por inovadores sociais e invistam neles a longo prazo.
Nós acreditamos que qualquer pessoa — e todas as pessoas — pode cultivar coragem moral; é um exercício, um disciplinado “treinamento de músculos morais” que se fortalecem com o uso. Independentemente do local de atuação dentro do ecossistema de mudança social, essas práticas podem ajudá-lo a liderar bem e de forma justa. Compete a todos nós reimaginar e reformular sistemas de modo a priorizar nossa humanidade compartilhada e a sustentabilidade de nosso planeta e de nossas comunidades, e isso começa com algumas práticas fundamentais para se prontificar e assumir esse trabalho:
Reunir determinação para agir com coragem moral de maneira sustentável não é uma ação espontânea. Na verdade, para fazê-lo corretamente, é preciso uma quantidade considerável de perspectiva e autoconhecimento. Líderes que se conhecem tendem a liderar de modo menos egocêntrico e mais convicto. Muitas vezes, são capazes de articular melhor sua visão e mitigar suas percepções errôneas, bem como seus preconceitos.
Desenvolver autoconhecimento dá trabalho e deve começar de dentro, mas isso não significa que é preciso atuar sozinho — vimos muitos seminários e oficinas orientados da Aspen para Seeds of Peace e Acumen Academy criarem espaço para que isso acontecesse. O Wellbeing Project (Projeto Bem-Estar) documentou os benefícios do autoconhecimento, processo pelo qual líderes desenvolvem uma compreensão detalhada de experiências, valores e crenças profundamente pessoais que os inspiram e os motivam. Criar espaço para que um líder se questione e reconheça padrões em seu próprio comportamento é uma prática poderosa.
Para Patrick Awuah, o momento crítico se deu enquanto participava de uma mesa com 24 líderes de toda a África Ocidental, distintos em todos os aspectos. Eles se reuniram por sete dias para explorar valores humanos atemporais por meio de textos, lidar com seus próprios valores conflituosos, e cultivar uma compreensão maior a respeito do que torna uma sociedade boa — bem como seu papel para criá-la. Graças à leitura e à fundamental discussão do conto “Aqueles que abandonam Omelas”, de Ursula K. Le Guin, os valores de Patrick despertaram e ficaram claros. O sonho de montar uma universidade de artes liberais em Gana significava deixar para trás uma vida confortável — a metafórica Omelas — e abraçar o desconhecido. Segundo suas próprias palavras, ele percebeu que precisava se comprometer: “Ainda que não saibamos qual será o fim da história, precisamos escrever a história”.
Tornar-se mais autoconsciente requer enfrentar limites e pressuposições que permeiam nossos sistemas e crenças. Isso implica pensar em quem está — e em quem não está — presente quando decisões estão sendo tomadas; significa também se acostumar a sentir-se desconfortável. Até nos conhecermos e podermos dominar nossas paixões, é difícil compreender os outros.
Pessoas que almejam se tornar líderes precisam que os outros contestem suas crenças enraizadas para aprimorarem suas ideias e reforçarem os aspectos mais frágeis de suas visões. Cercar-se de colegas que não temem divergir é fundamental para fortalecer não apenas suas qualidades de liderança, mas sua capacidade de execução. Discussões respeitosas abalam o status quo e abrem a possibilidade de transformação, mudança de percepção e consideração, mostrando que a forma preferida de agir de um líder pode não ser a única (ou mesmo a correta).
Criar oportunidades e espaços para ajudar a elucidar os valores de um líder é primordial — muitas vezes em conversas, a portas fechadas, com líderes de diferentes setores e origens. Uma precondição fundamental para um diálogo autêntico é o estabelecimento de normas e regras básicas, com a adesão total do grupo. Esses acordos podem incluir comprometer-se para manter a confidencialidade, envolver-se de peito aberto, e, sim, discordar — mas com o intuito de compreender e aprender, não de “vencer”.
Na sociedade moderna, são raros os momentos que permitem uma autoavaliação honesta não baseada no desempenho. Se líderes não tiverem aonde ir para explorar ideias, cometer erros e até mesmo serem deselegantes na maneira como processam ideias — compreender a tensão entre suas crenças e as de outrem — estarão menos preparados para liderar com confiança, convicção e zelo. Hoje, mais do que nunca, líderes precisam se reunir em locais selecionados objetivamente e assentados na confiança para travar diálogos profundos, autênticos e corajosos com os demais. Algumas organizações estão realizando um ótimo trabalho nessa área, mas acreditamos que um número maior de financiadores e apoiadores precisa fazer mais para investir na criação e na oferta desses espaços.
Comandar uma organização enquanto se busca mudar sistemas injustos tem um custo alto. Liderança é algo solitário; burnout, uma ameaça constante. Como os líderes aguentam? Que pessoas precisam ter a seu lado para seguir em frente? Aonde vão para desafiar suas hipóteses de maneira contínua?
É aí que um grupo de colegas de confiança se faz necessário, uma vez que são capazes de atribuir responsabilidade e, ao mesmo tempo, demonstrar apoio a suas ambições. Líderes com esse tipo de comunidade estão bem mais equipados para navegar os desafios da liderança moral. Grupos solidários, criados por organizações de apoio à liderança, têm, muitas vezes, essa função. Contudo, há espaço para que financiadores adotem um papel agregador ainda mais proativo para criar uma comunidade entre beneficiados e ajudar esses líderes a desenvolver redes de contatos com colegas. Ademais, um conselho de consultores e mentores combinando tanto relações pessoais quanto profissionais pode ajudar líderes a encontrar a sustentação necessária para seguir na luta, principalmente quando o sucesso parece mais incerto.
Sam Goldman e Ned Tozun, cofundadores da d.light, empresa de sistemas de distribuição de iluminação solar e de energia que transformou o modo como as pessoas ao redor do mundo acessam sua energia e pagam por ela, compreendem os benefícios de um sistema de apoio e de uma base de confiança sólida. Testemunhar uma lamparina de querosene tombar e incendiar a cabana de seu vizinho em seu vilarejo na Nigéria incentivou Sam a se comprometer a levar energia segura e limpa àqueles que não têm a acesso a isso, e ele encontrou em Ned um parceiro confiável — eles se conheceram após Sam voltar aos Estados Unidos e se matricular no curso Entrepreneurial Design for Extreme Affordability, na Stanford University. No entanto, levou anos para fazer a d.light ser a empresa que é hoje, uma organização que mudou a vida de centenas de milhões de pessoas em setenta países. Se tivessem entendido os desafios que enfrentariam para criar uma empresa viável, talvez jamais tivessem tentado. Porém, seguiram focados em sua missão: usar um ao outro para testar ideias, se lembrar de seus ideais e encontrar sustentação para seguir em frente. Os fundadores da d.light nunca perderam de vista seu norte: permitir que todos tenham acesso à energia. Um foco singular combinado a um conselho sólido e solidário, além de investidores pacientes, reforçou o comprometimento que tinham com seu objetivo.
Independentemente de quem você seja, o trabalho de mudança é árduo. Além de praticar coragem, os líderes se beneficiariam do envolvimento com práticas e princípios para se auto-renovarem. Alguns líderes passam um tempo junto à natureza para se acalmar e se maravilhar; outros valem-se de arte ou literatura, ou de uma prática espiritual. Financiadores também desempenham um papel nisso, investindo em espaços para os líderes voltarem a seus ideais centrais ou participarem de comunidades com outros líderes compartilhando tanto aflições quanto alegrias. Apoiar essa renovação pode voltar a inspirar ou reavivar a urgência de agir — e é de urgência que precisamos atualmente.
A trajetória em direção à mudança social é um trabalho para a vida toda, podendo ser lento, duro e desgastante do ponto de vista pessoal. Imagine o fundador da primeira universidade de artes liberais de um país lutando para obter o financiamento intermediário necessário para dar continuidade a um programa já bem-sucedido. Ou um oftalmologista que ajudou milhares de pacientes percebendo que tem de deixar para trás sua formação e zona de conforto para enfrentar o problema em um nível mais sistêmico. Ou uma mulher que trabalha para acabar com as disparidades raciais em sistemas de saúde cuja principal intervenção torna-se impossível devido a uma inédita pandemia mundial.
Muitas vezes testemunhamos líderes empreendedores seguirem seu caminho diante de obstáculos, equívocos e contratempos na busca por impacto social. Além disso, os vimos atuar com coragem e profunda convicção perante desafios, pessoas que não acreditam em seu sucesso, e sistemas corrompidos resistentes a mudanças. Por fim, vimos outros abandonarem papéis de liderança ao perceberem que suas habilidades, redes de contato profissional e seu conhecimento seriam mais úteis para sua missão de outras formas.
Investir em líderes também é um investimento para a vida toda. Como financiadores, apoiadores e promotores de uma liderança autêntica e corajosa, nosso papel é reconhecer essa longa jornada, às vezes solitária e dolorosa. Devemos apoiar líderes e suas organizações não apenas em momentos de reconhecimento e sucesso, mas também durante dificuldades, fracassos e transições inevitáveis. Cada um de nós tem uma função a desempenhar para fomentar sistemas de confiança e sustentação necessários para seguir em frente. Precisamos de mais líderes capazes de entrar nessa arena contra a injustiça, e precisamos redobrar nosso investimento neles à medida que seguem sendo testados. Porque sabemos que eles serão testados, principalmente diante de desafios internacionais crescentes e convergentes. E, ainda assim, seguiremos adiante com determinação porque temos as ferramentas para promover mudanças e, portanto, devemos usá-las.
Quando se trata de líderes, a coragem moral separa o ótimo do bom, o que pode alterar paradigmas daquilo que é meramente incremental. De maneira mais precisa, a coragem moral é uma característica que todos nós precisamos cultivar dentro de si, uma vez que as mudanças que o mundo precisa são enormes — e nosso tempo é curto.
Jacqueline Novogratz é fundadora e CEO da Acumen, autora dos best-sellers The Blue Sweater e Manifesto for a Moral Revolution: Practices to Build a Better World, além de reconhecida líder no setor de impacto social. Como pioneira em investimentos de impacto, a Acumen investiu mais de US$ 146 milhões em capital ”paciente” em 151 empresas, impactando a vida de quase 400 milhões de pessoas em todo o mundo.
Anne Welsh McNulty é cofundadora e CEO da McNulty Foundation, e ex-diretora administrativa do Goldman Sachs. Motivada pela crença de que uma pessoa pode promover poderosas ondas de mudança, Anne canalizou seu pioneiro sucesso em finanças para uma missão que busca ampliar a liderança corajosa. A fundação investiu mais de US$ 30 milhões na última década para apoiar aqueles que apresentam soluções para problemas globais por meio do Prêmio McNulty, além de ter promovido a liderança de mulheres e jovens de grande potencial.