O Brasil já tem mais advogados por habitante no mundo e, ainda assim, ano após ano, o curso de direito se mantém como a graduação presencial com maior número de matriculados. Segundo o Mapa do Ensino Superior do Brasil deste ano, publicado pelo Instituto Semesp, […]
O Brasil já tem mais advogados por habitante no mundo e, ainda assim, ano após ano, o curso de direito se mantém como a graduação presencial com maior número de matriculados. Segundo o Mapa do Ensino Superior do Brasil deste ano, publicado pelo Instituto Semesp, são 571.380 estudantes matriculados em direito em instituições particulares, o que representa quase 18% do total. É uma quantidade bem maior do que o segundo curso mais procurado, psicologia, que tem 314.021, ou 9,8%. A porcentagem dos matriculados em direito ronda os 18% há pelo menos cinco anos.
Joelma Primo, da Universidade Católica de Salvador (UCSal), conta que o direito digital está nascendo agora e vai precisar de profissionais (foto: divulgação)
Coordenadores de faculdades dizem que tanta procura por estudar as leis tem múltiplas razões, tanto por questões culturais e sociais como pelo fato de ser um curso que abre um amplo leque de oportunidades no mundo do trabalho.
O país tem um advogado para cada 164 cidadãos, de acordo com a OAB. Em termos de comparação, nos Estados Unidos há um para cada 253 habitantes. Embora o número total de advogados possa indicar uma saturação do mercado, Joelma Primo, coordenadora do curso de direito da Universidade Católica de Salvador (UCSal), acredita que em certas frentes o que existe na verdade é falta de profissionais. “A sociedade avança e o direito avança junto. Temos as redes sociais e a chegada das inteligências artificiais, por exemplo, que demandam por profissionais do direito digital”, afirma.
Segundo ela, a ideia de mercado saturado prevalece para quem não tem uma visão mais ampla. “Que mercado está saturado? O mercado do direito digital está nascendo agora”, garante. A coordenadora diz que esses novos desafios acabam sendo atrativos para os jovens. “Temos tantos influenciadores, com contas e números que podem parecer abstratos, mas como isso integra o patrimônio deles? E antes, quando falecia um artista, o inventário eram os bens em imóveis, dinheiro em conta. Agora, podemos incluir a imagem e a voz dele. A lei permite uma música póstuma produzida com IA, por exemplo. Quem cuida disso?”, elenca sobre questões importantes da atualidade que provocam interesse.
Mas nem só de jovens vivem os cursos de direito; essa é uma graduação que, historicamente, recebe um bom número de estudantes com mais experiência de vida e de trabalho. As salas de aula costumam ser bastante heterogêneas, com bom equilíbrio entre homens e mulheres, jovens recém-saídos do ensino médio e pessoas mais velhas.
“Quando a gente pensa em formação em ensino superior, pensa primeiro em jovens. Contudo, pela própria característica do curso, o direito é também muito buscado por profissionais já estabilizados, que procuram transição de carreira ou formação complementar para continuar na sua área, porque o direito foi algo que se mostrou importante em seu percurso de vida”, diz Joelma. Segundo ela, hoje, nas turmas de direito da UCSal há vários alunos que vieram da área da saúde: psicólogos, médicos, dentistas etc.
Muitas vezes, a escolha por estudar direito reflete uma necessidade de se entender os meandros das leis e procedimentos numa busca maior, uma busca por Justiça. Mirtes Renata Santana é um exemplo disso: entrou na graduação do curso de direito após perder seu filho. Ela trabalhava como empregada doméstica em 2020 e estava passeando com o cão da patroa quando o menino, Miguel, com apenas 5 anos, quis ir atrás da mãe. A patroa, Sarí Corte Real, colocou a criança sozinha dentro do elevador; Miguel acabou caindo do 9o andar do prédio. Mesmo sendo durante a pandemia, Mirtes era obrigada a prestar os serviços pessoalmente na casa dos patrões.
Num país muito burocratizado, o direito auxilia em várias atuações profissionais, pondera Leopoldo Rocha Soares, diretor do Mackenzie (foto: divulgação)
“Cursar direito nunca foi um sonho, foi uma necessidade. Uma forma de buscar o conhecimento jurídico para me fortalecer e enfrentar os inúmeros absurdos contra meu filho, contra mim, contra outras pessoas que, como nós, foram silenciadas ou ignoradas por esse sistema racista”, escreveu ela em sua rede social depois de apresentar o seu Trabalho de Conclusão de Curso. O processo criminal, porém, segue sem conclusão.
A história de Mirtes é um caso extremo, mas é comum que muitas pessoas procurem o direito para atender necessidades práticas. “O Brasil é um país muito burocratizado, em que as pessoas dependem de quem detém o conhecimento do funcionamento burocrático. Esse é um conhecimento válido não só no exercício das carreiras jurídicas”, explica Leopoldo Rocha Soares, professor do curso de direito e diretor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no campus de Campinas. “Digo isso até por experiência pessoal: ser da área do direito me ajuda como diretor de faculdade. Não é à toa que cursos de administração e engenharia tenham disciplinas do direito”, afirma.
Para além de resolver problemas reais, Soares acredita que há um outro fator cultural que faz o direito parecer bastante atraente na área de humanidades: é uma carreira tradicional. “Não acho que seja exatamente um curso coringa, mas é visto como uma opção que dá estabilidade profissional e segurança financeira para quem é propenso a humanidades. Na dúvida, muita gente acaba preferindo a solidez do tradicional”, explica.
Soares garante que, mesmo com tanta concorrência, advogados com boa formação continuam conseguindo boas colocações em departamentos jurídicos de empresas, em escritórios de advocacia ou mesmo constroem clientela própria. Podem, assim, atuar tanto como empregados de alguém, quanto como profissionais autônomos, trabalhando sem um patrão.
Isso tudo, claro, sem contar as diversas possibilidades de concurso público. Há carreiras do setor público específicas para quem se gradua em direito, como as de juiz, promotor, delegado, assim como há outras que exigem curso superior em qualquer área, mas cujas provas pedem sempre conhecimentos jurídicos – caso das provas para escrivão, auditor fiscal e, a depender do concurso, para oficial de justiça.
Se é verdade que há uma parcela dos bacharéis em direito que escolhe não advogar, há muitos formados que não se tornam advogados por não conseguirem ser aprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Passar na prova é obrigatório para exercer a advocacia, mas em média só 20% dos candidatos são aprovados na primeira fase da prova da Ordem. Não se sabe ao certo o que acontece com esse alto contingente de bacharéis sem a Ordem, mas uma parcela deles acaba atuando em funções jurídicas auxiliares, sem ficar responsáveis por casos.
E talvez seja esse o grupo mais ameaçado pelo avanço da IA. “Quem não faz um trabalho de qualidade pode mesmo ser substituído. Hoje o ChatGPT já faz uma petição e a pessoa vai ao juizado especial sem precisar do advogado”, diz o coordenador do Mackenzie. Ainda assim, ele defende que a área do direito está “menos exposta” que várias outras profissões justamente por depender fortemente do fator humano.
“Quando a tecnologia estiver apuradíssima, talvez eu prefira passar por uma cirurgia feita por um robô a passar pela mão de um médico, porque há uma questão de precisão. Mas ser um bom jurista depende não só do raciocínio e da precisão, mas da sensibilidade”, afirma. Isso significa saber adaptar o discurso na frente de um júri ou de um juiz, ter jogo de cintura para negociar um acordo, conseguir estabelecer uma relação de confiança com o cliente. “Se eu tenho um modelo de pedido de indenização por dano moral e só ponho os nomes e pronto, sou um advogado que pode ser substituído. Mas a essência do trabalho deveria ser saber extrair da conversa com o cliente o que é importante para aquele processo”, exemplifica.
Para Roberto Dias, da FGV em São Paulo, tornar os alunos “resolvedores de problemas complexos” é uma exigência, já que a IA vai reduzir a demanda por profissionais simplesmente burocratas (foto: divulgação)
Seguindo a lógica de que não é possível simplesmente repetir padrões anteriores, Roberto Dias, coordenador de graduação em direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, conta que a visão atual do curso é tornar os estudantes “resolvedores de problemas complexos”. E ainda que a IA possa provocar uma redução de demanda para profissionais simplesmente burocratas, novos problemas estão sempre surgindo.
“A gente tem dado ênfase às habilidades e competências. O tempo todo os estudantes são desafiados a resolver demandas de problemas complexos que envolvem questões jurídicas. Eles passam por projetos multidisciplinares, em turmas de apenas vinte alunos, sobre as estratégias da instituição para manter a relevância dos profissionais”, relata Dias. Outra ferramenta para que o estudante entenda o papel do direito na sociedade é colocá-lo para cursar disciplinas optativas em outras faculdades.
“Ninguém vai perguntar para um advogado o que está escrito na linha tal do Código. O importante é ele ter uma formação de como aplicar os conhecimentos jurídicos em uma diversidade de áreas”, afirma. O movimento acadêmico de ensinar a resolver problemas tem levado ex-alunos de direito da FGV a migrarem para diferentes frentes de atuação, do terceiro setor ao mercado financeiro. “Claro que a maioria ainda vai para a área jurídica em si, mas temos visto esse movimento de diversificação. Um dos nossos ex-alunos criou uma fintech”, cita Dias.
Para o coordenador da FGV, a quantidade de interessados em estudar direito no Brasil tem ainda outro fator essencial: a exposição midiática. “Cada dia que chego para dar aula, aconteceu alguma coisa no país que serve de gancho para uma discussão do direito. Tivemos o caso do mensalão, depois o desastre de Mariana, o protagonismo que assumiu hoje o STF (Supremo Tribunal Federal). O tempo todo a sociedade está debatendo assuntos jurídicos”, relata Dias. E, claro, se estão todos discutindo o assunto, muitos vão se interessar em se aprofundar.
Direito é um curso de cinco anos de duração e não há opção de EAD. Não se trata, portanto, de uma busca por um diploma fácil. Ninguém pode prever por quanto tempo o interesse pela graduação vai se manter em alta, mas, no momento, o Brasil continua chamando por novos estudantes.
Por: | 15/07/2025