NOTÍCIA

Edição 285

Pessoas com deficiência impulsionam a pesquisa na universidade

O número de pessoas com deficiência no ensino superior cresce devagar. As universidades brasileiras não estão preparadas para recebê-las

Publicado em 17/07/2024

por Sandra Seabra Moreira

Pessoas com deficiência nas IES A falta de pesquisa em torno do tema da deficiência é uma lacuna que começa, vagarosamente, a ser preenchida, com o acesso de pessoas com deficiência às universidades

O sonho de Mila Guedes é que exista nas universidades brasileiras algo parecido com o Student Disability Service, um centro de serviços para pessoas com deficiência, da Universidade de Maryland, em Baltimore County, EUA. Lá, estudantes com deficiência realizam seus exames com todo tipo de tecnologia assistiva e contam com testes de acomodação, em que necessidades específicas são levantadas e atendidas. Os recursos também estão presentes em outros espaços da universidade, como na biblioteca.

Mila passou em Maryland o primeiro semestre deste ano, por meio de uma bolsa de intercâmbio, e voltou ao Brasil para terminar seu mestrado no Programa de Pós-Graduação – Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades do Diversitas, núcleo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Mila tem deficiência múltipla, baixa visão, e utiliza cadeira de rodas. A trajetória acadêmica é recente, mas o ativismo pelos direitos das pessoas com deficiência vem de longe e, desde 2015, está focado nas questões que envolvem mulheres com deficiência.

Mila Guedes

A ativista Mila Guedes pesquisa deficiência e gênero (foto: divulgação)

Ela é coordenadora geral do curso de formação em liderança e empoderamento feminino para mulheres com deficiência do Brasil do Programa Todas in-Rede da Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Sua vasta experiência vem sobretudo de participações internacionais, como na coordenação do projeto sobre Gênero, Deficiência e Violência da organização internacional Mobility International USA (MIUSA).

“As universidades brasileiras não estão preparadas para receber pessoas com deficiência”, atesta Mila. O país conta com a Lei Brasileira de Inclusão, que entrou em vigor em 2015, uma resposta à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de 2006.

 

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De acordo com o Inep, em 2012, o número de matrículas no ensino superior de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades correspondia a 0,4% do total; em 2022, eram 0,8%. Se o número de pessoas com deficiência aumentou nas universidades, Mila afirma que isso se deve mais a esforços e condições socioeconômicas individuais.

Em 2022, de acordo com a Capes, dos 142.697 estudantes matriculados em cursos de mestrado, 1.263 eram pessoas com deficiência. Entre os 45.294 que concluíram, apenas 388 eram pessoas com deficiência (ver tabela). Esses números são informados pelas instituições de ensino e são ainda imprecisos. Isso porque as IES não são obrigadas a informar o número de pessoas com deficiência e a informação sequer tem peso na avaliação dos cursos de mestrado ou doutorado.

Tabela

Em abril deste ano, a Capes instituiu o Censo da pós-graduação stricto sensu, com objetivo de coletar dados demográficos e os relacionados às condições socioeconômicas, culturais, étnico-raciais, de gênero e da educação especial, além de informações relacionadas às atuações por área do conhecimento. “Pelo menos isso”, menciona Mila.

A primeira Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad): Pessoas com Deficiência, lançada em 2023, com números do terceiro trimestre de 2022, deve também municiar as políticas públicas urgentes e já em atraso. A população com deficiência no Brasil foi estimada em 18,6 milhões de pessoas de dois anos ou mais, o que corresponde a 8,9% da população dessa faixa etária. Apenas 25,6% das pessoas com deficiência concluíram o ensino médio, enquanto mais da metade das pessoas sem deficiência (57,3%) obtiveram a conclusão. Já a proporção de pessoas com nível superior foi de 7,0% para as pessoas com deficiência e 20,9% para os sem deficiência.

 

O atraso na academia

Edu O.

Edu O., professor da Escola de Dança da UFBA, é autor da Carta aos bípedes (foto: divulgação)

Carlos Eduardo Oliveira, ou Edu O., é artista de múltiplas linguagens – dança, teatro, literatura, performance – há mais de 25 anos. É professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Diretor do Grupo X de Improvisação em dança, projeto extensionista, e da Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS), um componente curricular na modalidade disciplina, ambos da UFBA. Pessoa com deficiência desde criança, Edu O. é o primeiro e provavelmente o único professor de dança cadeirante numa universidade.

Nasceu e cresceu em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. Brincar na rua de terra foi um manancial de inspiração. A mãe, os amigos e a comunidade local, a “Turma da Rua C”, “estruturam meu modo de repensar metodologias, tanto de criação quanto didático-pedagógicas.” Essa vivência é relatada em sua tese de doutorado, intitulada Vocês, bípedes, me cansam – Modos de aleijar a dança como contranarrativa à bipedia compulsória. Ele também escreveu Carta aos bípedes.

As barreiras físicas, como falta de rampas ou elevadores quebrados, são as mais evidentes. Há outras, como a falta de pesquisa em torno do tema da deficiência, uma lacuna que começa, vagarosamente, a ser preenchida, com o acesso de pessoas com deficiência às universidades. Edu O. afirma que as discussões em torno da deficiência e de quanto o capacitismo retroalimenta o preconceito avançaram muito pouco nas universidades. A dança não é menos capacitista. Atuando nas duas frentes, Edu O. instiga novos caminhos para as pesquisas.

 

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Ele diz que os movimentos sociais tiveram mais êxito em colocar o assunto em pauta, “desde as reformas da década de 1970, dos movimentos sociais, quando quebravam as calçadas para fazer rampa, quando as pessoas com deficiência se amarravam nos ônibus para exigir acessibilidade no transporte público”. E menciona o modelo histórico-cultural de Roberto McRuer, apresentado no livro Teoria Crip. Para esse autor, são os movimentos sociais que fundam um pensamento. “Ele fala: ‘o que estou fazendo aqui já veio antes, com artistas e ativistas’”.

Conforme descreve Débora Diniz, em seu O que é deficiência, o modelo social acerca da deficiência lançava luzes àquele que se restringia à área médica, e, num segundo momento, as feministas lançaram o olhar para as cuidadoras e mulheres com deficiência. “A primeira geração do movimento social de pessoas com deficiência, na maioria homens brancos, apontou o capacitismo enfatizando a possibilidade do trabalho, “como se isso fosse o mais importante, não é”, explica Mila. “A segunda geração do movimento de pessoas com deficiência vai apontar que há pessoas com deficiência que não vão conseguir trabalhar, portanto, não se trata da independência, mas da interdependência.”

“É importante o estudo da mulher com deficiência porque as pautas são diferentes, nós temos pautas que não conversam com as mais gerais. Porque quando eu falo de direitos sexuais reprodutivos, de lugares de atendimento, câncer de útero ou mama, são pautas femininas.”

 

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Retomando McRuer, Edu O. afirma que “o modelo histórico-cultural entende que se utopicamente vivêssemos numa sociedade, numa cidade completamente acessível, o pensamento sobre a pessoa com deficiência ainda seria incapacitante. Ou seja, não adianta eu ser professor da escola de dança, eu ser doutor, artista há mais de 25 anos de diversas linguagens. As pessoas ainda me olham como pessoa com deficiência, e com um viés da deficiência como incapacitante, inferior. Por mais que me elogiem. ‘Você é maravilhoso mas não te quero aqui’”.

Na Teoria Crip, ou teoria Aleijada, inspirada também da Teoria Queer, “pegamos os termos pejorativos e reelaboramos, ressignificamos na afirmação. Por exemplo, tenho um projeto chamado “Conversa Aleijada”. As pessoas dizem ‘eu não gosto desse nome’, e eu respondo ‘vá assistir para ver do que estamos falando’”. Nesse empenho por ressignificar, a arte é muito importante, lembra Edu O.

 

Mais consciência do que investimento

A Universidade de Maryland tem 14 mil alunos e 11% estão registrados nesse centro. De acordo com a diretora do Student Disability Service, conta Mila, o serviço não dá altas despesas. São oito funcionários, 12 intérpretes de libras que se revezam de acordo com a presen-ça de pessoas com deficiência auditiva e mais 12 estudantes da própria universidade. “Lá é lei, as universidades cumprem”, afirma MIla.

Nos EUA, regulamentações apoiam ou exigem a acessibilidade na educação, como a Individuals with Disabilities Education Act (IDEA) e a Americans with Disabilities Act (ADA). A ADA protege as pessoas com deficiência contra a discriminação. “Por exemplo, estipula que cursos e exames relacionados a aplicações, licenciamento, certificações ou credenciamento profissionais, educacionais ou comerciais devem ser oferecidos em um local e de maneira acessível a pessoas com deficiência, ou devem ser oferecidos arranjos alternativos acessíveis”, explica Sam Chandrashekar, especialista em acessibilidade, professora em universidades canadenses e líder global de acessibilidade da D2L Corporation.

 

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Sam conta que a maioria das instituições na América do Norte tem um escritório de suporte que ajuda os alunos com deficiências oferecendo acomodações. “Uma acomodação razoável é uma mudança na forma como as coisas são feitas, normalmente para dar oportunidades iguais a um aluno com deficiência para fazer um teste, acessar o conteúdo de aprendizagem ou participar da sala de aula. Um exemplo de acomodação seria o fato de os alunos com deficiência que usam tecnologias assistivas ou têm deficiências cognitivas terem mais tempo para concluir os exames. Os alunos também recebem financiamento para a compra de tecnologias assistivas”, detalha.

“Até uma estudante tetraplégica é atendida”, conta Mila. Para tornar-se uma instituição educacional inclusiva não é necessário um salto gigantesco, afirma Sam. “As faculdades e universidades, inclusive as de pequeno e médio porte, podem se preparar para receber e reter alunos com deficiência em fases.” Ela aponta uma estrutura com sete pontos:

 

Mentalidade inclusiva: a acessibilidade na educação deve se fundamentar na empatia pelas diferenças humanas. Alunos diferentes têm necessidades diferentes. As necessidades devem ser atendidas de forma personalizada, com foco na obtenção de resultados iguais e não apenas no fornecimento de recursos iguais.

Tecnologia compatível: alguns alunos com deficiência podem usar tecnologias assistivas para ajudá-los a acessar sistemas de aprendizagem on-line. Um sistema educacional acessível deve garantir que essas tecnologias funcionem de forma compatível com a plataforma de aprendizagem. O processo de aquisição da plataforma de aprendizagem e de outras tecnologias de aprendizagem deve ter critérios para garantir os padrões de acessibilidade.

Conteúdo acessível: um exemplo de conteúdo acessível é o fornecimento de descrições de texto para imagens usadas nas aulas, pois o software leitor de tela usado por alunos com baixa visão ou cegos para ler documentos digitais não reconhece imagens, apenas texto.

 

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Pedagogia inclusiva: os mecanismos devem ser inclusivos para permitir que os alunos se envolvam no aprendizado e contribuam com seu conhecimento. Para isso, o currículo, a instrução e a avaliação devem ser intencionalmente planejados para serem inclusivos. O Desenho Universal para Aprendizagem é um dos mecanismos para a prática da pedagogia inclusiva.

Sam Chandrashekar

Sam Chandrashekar, especialista em acessibilidade, aponta sete itens para que a IES possam receber e reter alunos com deficiência (foto: divulgação)

Conformidade regulatória: as regulamentações de acessibilidade ajudam a fortalecer o sistema educacional por meio de requisitos que exigem ações das instituições educacionais, em vez de deixá-las à sua escolha. A conformidade com os regulamentos deve ser praticada com diligência, seguindo o espírito da lei e não apenas a letra da lei. Isso significa que os educadores devem se concentrar em garantir que os alunos sejam capazes de aprender e não apenas em marcar uma caixa para mostrar que estão em conformidade com as leis.

Governança sustentada: um sistema estruturado de governança de acessibilidade deve ser estabelecido e mantido na instituição educacional para nutrir o sistema educacional. Isso significa que é importante que a liderança esteja envolvida.

Comunidade colaborativa: os alunos e professores das instituições e os sistemas educacionais devem permanecer conectados. A colaboração como uma comunidade é importante para que as instituições se apoiem mutuamente para permanecerem inclusivas, compartilhando conhecimentos e recursos.

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Autor

Sandra Seabra Moreira


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