A miopia conceitual limita a capacidade de ver e planejar além do imediato
Miopia conceitual limita a capacidade de ver e planejar além do imediatoMiopia é uma condição ocular comum na qual uma pessoa tem dificuldade para enxergar objetos distantes de forma clara, enquanto a visão de objetos próximos permanece normal.
A miopia, como desafio físico que distorce a clareza da visão à distância, encontra um paralelo intrigante no pensamento estratégico para gestão universitária. Assim como a condição ocular, a miopia conceitual limita a capacidade de ver e planejar além do imediato, focando demasiadamente no que está diretamente à frente, em detrimento do horizonte de longo prazo.
Imagine um mundo onde os professores não passam mais horas lendo slides e os “PowerPoint” enfadonhos foram extintos. A universidade deixou de ignorar todo o conhecimento adquirido sobre aprendizagem das últimas décadas e tornou seus currículos incrivelmente eficientes e verdadeiramente conectados às realidades do mercado. Para selar o exercício com um caráter de utopia, imagine que não existam mais barreiras para o financiamento estudantil. Imaginou?
Então me diga, qual seria o maior diferencial competitivo de uma IES frente ao cenário descrito? Antes de responder esta pergunta, considere outra: existe unidade em relação ao entendimento do que de fato é um diferencial competitivo?
Ao longo de duas décadas trabalhando com diferenciação, desenvolvi um exercício, quando atendia universidades, que sempre causou polêmica. Eu desafiava coordenadores a refletirem sobre o que realmente fazia seus cursos se destacarem. Pedia que escrevessem, em post-its, o que acreditavam ser os diferenciais competitivos de seus cursos e observava-os colar cada nota colorida na parede.
As respostas eram frequentemente as mesmas: “professores doutores”, “infraestrutura de ponta”, “atividades extensionistas”, “coordenadores acessíveis”. Até “wi-fi de alta velocidade” surgia ocasionalmente.
Com todos os post-its à vista, projetava na tela a definição de diferencial competitivo: ‘atributos que tornam uma organização única, difícil de ser copiada e superior aos seus concorrentes.’ Em seguida, convidava todos que, por ventura, tivessem se equivocado a retirar algum post-it.
O silêncio enchia a sala. Os dirigentes trocavam olhares desconfortáveis, esperando que alguém tomasse a iniciativa. Mas, para sua consternação, nem um único papel era removido da parede. Era um momento revelador sobre o mindset predominante na gestão universitária e o quão somos resistentes a mudança.
Ao longo da minha experiência em gestão universitária, atuando tanto como executivo quanto como consultor, tive a oportunidade de conhecer uma ampla variedade de instituições de ensino superior, destacando-se dois grupos bastante caricatos.
O primeiro grupo é composto por IES que, infelizmente, não são sérias. A instabilidade na principal cadeira acadêmica é um sintoma comum nessas instituições, pois ninguém permanece nela por muito tempo. Essas IES tendem a adotar um discurso de conexão com o mercado e desenvolvem uma espécie de aversão a tudo que vem do MEC. Trata-se de instituições com salas de aula de baixo desempenho, pontuações baixas no Enade e que são eternamente gratas ao formato de cálculo dos insumos que permite sustentar IGCs que não condizem com a qualidade acadêmica que possuem.
O segundo grupo é quase o extremo oposto. Essas IES menosprezam o mercado e suas demandas, vivendo em uma bolha com seus intocáveis ritos. Embora aparentemente comprometidas com aspectos acadêmicos e pedagógicos, frequentemente se perdem discutindo o “sexo dos anjos”, em reuniões improdutivas. Ao final do dia, os currículos permanecem obsoletos, sem tecnologia de personalização da aprendizagem embarcada, ausência de projetos integradores e de conexão real com o mercado. Trata-se de IES que se orgulham de seus ótimos resultados acadêmicos perante o MEC e já amargaram o fechamento de cursos (ou estão criando coragem) com CC, CPC e Enade 5, pois não possuem mais alunos.
Certamente há diversos outros tipos de instituições de ensino superior pelo mundo, porém esses dois grupos em particular tendem a ser caricaturas com as quais, presumo, alguns leitores se identificaram. Vamos tratar ambos os grupos como IES tipo 1.
As IES do tipo 1 tendem a perder relevância, reputação, credibilidade, prestígio, eficiência, valor, visibilidade e, obviamente, alunos. Embora o ciclo de deterioração dessas IES seja lento, um “fato novo” está prestes a acelerar esse processo de maneira drástica, e isso ocorrerá por meio das IES do tipo 2.
Instituições do tipo 2 enfrentam problemas semelhantes às do tipo 1, mas diferenciam-se por terem a humildade de reconhecer tais dificuldades. Além disso, elas se conscientizaram sobre o que será o diferencial competitivo mais poderoso nos próximos anos: o índice de trabalhabilidade.
A diferenciação no ensino superior privado passará diretamente pelo mapeamento e melhoria do índice de trabalhabilidade de alunos e egressos. Mas afinal, o que é trabalhabilidade?
Trabalhabilidade é a capacidade de uma pessoa se adaptar, criar e gerir sua própria carreira em um mercado de trabalho dinâmico e em constante transformação. Vai além da conquista do emprego.
Enquanto a empregabilidade foca na capacidade de conseguir e manter um emprego em um contexto mais tradicional e estável, a trabalhabilidade abrange essas habilidades e as expande para incluir a autonomia e a adaptabilidade necessárias para prosperar em diversos cenários de trabalho.
Agora, façamos outro exercício de imaginação. Em um belo dia você acorda e ao abrir o seu jornal ou site de notícias favorito, se depara com um anúncio da sua principal concorrente com a seguinte mensagem:
“Pensando em fazer uma faculdade? Exija mais que promessas. Antes de escolher, pergunte sobre os índices de trabalhabilidade. Nós mostramos os nossos com orgulho. Quer ver?”
Caro leitor, convenhamos, só haverá uma primeira IES no país a fazer isso. Concorda? Mas o que impede que vejamos esse tipo de anúncio nos dias atuais? Por qual razão o setor inteiro não está concorrendo pelos melhores índices de trabalhabilidade?
Dados. Isso mesmo, as áreas de carreiras, quando existentes, costumam navegar no escuro sem essas informações. Para identificar o índice de trabalhabilidade é preciso saber sobre seus alunos e egressos:
Onde moram? Em qual continente? País? Estado? Cidade? Em quais empresas trabalham? Quais cargos ocupam? Trabalham na área que se formaram? Estão felizes no trabalho? Atuam no híbrido, remoto ou presencial? Quanto ganham? É mais ou menos do que a média do mercado? Quais empresas mais os contratam? Qual é o porte das empresas? Eles são empreendedores?
Além de deixar de navegar no escuro, quando uma IES gera dados robustos e verificáveis do sucesso profissional de seus alunos e egressos, ela ainda conquista:
Imaginem duas IES. Uma IES com dados e outra IES sem dados. Aquela que detém os dados larga na frente por um simples motivo: vai ter a fotografia exata do real índice de trabalhabilidade institucional e de cursos. Aqui, existem dois cenários:
Cenário 1: Os índices de trabalhabilidade estão bons em relação ao mercado. Nesse sentido, podemos supor que os currículos estão alinhados ao mercado e a área de carreiras está com a estratégia calibrada.
Cenário 2. Os índices de trabalhabilidade não estão bons em relação ao mercado. Nesse sentido, podemos supor que os currículos não estão alinhados ao mercado e/ou a área de carreiras precisa rever suas estratégias.
Ou seja, monitorar e otimizar a trajetória de estudantes e egressos com indicadores precisos, molda o futuro da IES com clareza e estratégia, sem saltos no escuro.
Instituições de ensino superior com marcas fortes são consistentes, previsíveis, relevantes e autênticas. Elas cumprem o que prometem. No contexto educacional, o branding exige foco, sem dispersão. A dispersão enfraquece a marca.
Construir uma reputação sólida é crucial para atrair não apenas os melhores alunos, mas também os professores e pesquisadores mais qualificados. Mas o que realmente significa ter uma boa reputação?
Diferentemente da promoção de marca, que muitas vezes busca a visibilidade imediata através da quantidade de público, a reputação de uma instituição de ensino foca em atrair o público certo com mensagens e valores que convergem profundamente com suas necessidades e aspirações. Veja estas seis diferenças entre promoção de marca e construção de reputação:
Da sobrevivência para as pequenas instituições ao valor das ações dos grandes grupos, o ensino superior será sendo pautado por dois grupos de IES: aquelas que serão capazes de gerenciar e potencializar a trabalhabilidade e aquelas que continuarão definhando em número de alunos e relevância.
Enquanto muitos setores já consideram a análise detalhada de seus públicos uma prioridade absoluta, o ensino superior, inacreditavelmente, continua navegando no escuro com relação ao seu próprio público.
Essa abordagem contrasta fortemente com indústrias como o marketing digital e o e-commerce, onde o conhecimento aprofundado do público-alvo é essencial para o sucesso. No entanto, o cenário atual mudou drasticamente.
Com a demanda reprimida esgotada, diferenciar-se, garantir relevância e construir uma reputação sólida tornaram-se essenciais para qualquer IES que busca destaque em um mercado que será cada vez mais pautado pelos índices de trabalhabilidade de alunos e egressos.
Por: Daniel Sperb | 22/05/2024