Estudantes, docentes e pesquisadores terão que se adaptar a essa nova realidade
"Dependência excessiva de respostas prontas pode levar à superficialidade do conhecimento", destaca Glauson MendesAdeus, links azuis. Quatorze de maio de 2024 será lembrado como o dia em que o Google anunciou o que muitos estão chamando de o início do fim das buscas tradicionais. A lista de links azuis, companheira de tantas jornadas intelectuais, será sobrepujada por respostas diretas e lapidadas, esculpidas pela inteligência artificial. Uma revolução que promete sacudir os alicerces da nossa relação com a informação.
O novo sistema de busca do Google, batizado de AI Overviews baseado no Search Generative Experience (SGE), é movido por modelos avançados de IA que processam linguagem natural com o objetivo de fornecer respostas mais precisas e contextualmente relevantes. É o que a empresa denomina como a pesquisa na “Era do Gemini”, nome dado à sua plataforma de IA, concorrente direta do ChatGPT da OpenIA.
Isso significa que, em vez de receber uma lista de links quando realiza uma pesquisa, o usuário obterá respostas sintetizadas que combinam informações de diversas fontes. “Nos resumos gerados com IA, o Google faz o trabalho por você”, como disseram no evento de lançamento Google I/O 2024.
Nessa mudança, existem perspectivas muito positivas e outras preocupantes. Vamos compreendê-las.
O Google promete transformar a maneira como consumimos informações online. Essa é a primeira questão importante que precisamos saber.
Durante as férias de verão, por exemplo, pais buscando atividades para entreter crianças do ensino fundamental não serão apenas direcionados a sites com ideias. A Experiência de Busca Generativa propõe uma lista planejada e personalizada de atividades, como artesanato e jogos ao ar livre, diretamente nos resultados de busca.
Além disso, o SGE busca simplificar a compreensão de temas complexos. Questionamentos sobre conceitos avançados, como “O que é a teoria das cordas?”, resultarão em resumos concisos que explicam os fundamentos de maneira acessível para não especialistas.
Em consultas sobre saúde ou nutrição, como a comparação entre brócolis e couve-flor, a busca resume as informações nutricionais chave e destaca as vantagens de cada um, auxiliando os usuários a fazer escolhas informadas conforme suas necessidades dietéticas.
Ainda segundo a empresa, essas novas funcionalidades prometem tornar as buscas mais eficientes, reduzindo a necessidade de múltiplas pesquisas e permitindo uma visão mais ampla, a partir de uma busca detalhada, com menos esforço. E logo abaixo das respostas sintetizadas virão novas perguntas pré-formatadas e selecionadas pela IA para que você se aprofunde na experiência da pesquisa.
A capacidade de fornecer respostas sintetizadas e contextualmente relevantes pode economizar tempo valioso para os usuários, permitindo-lhes acessar informações de maneira rápida e eficiente. Isso é particularmente positivo para profissionais onde a velocidade e a precisão da informação são essenciais para a tomada de decisões.
A personalização das buscas é outro avanço significativo. Ao entender melhor o contexto e as necessidades individuais dos usuários, o SGE pode oferecer recomendações mais relevantes e úteis, tornando a experiência de busca mais intuitiva. Por exemplo, ao buscar por cinema, a IA sugere filmes em cartaz baseados nas preferências de gêneros e localização do usuário, proporcionando uma experiência mais personalizada.
A promessa de inclusão e acessibilidade é um aspecto relevante no novo sistema de buscas. Ao tornar a informação mais acessível a pessoas com diferentes habilidades e necessidades, o novo formato do search pode ajudar a democratizar o acesso ao conhecimento e promover a inclusão digital. Ferramentas como leitores de tela melhorados, tradução automática e interfaces de voz podem abrir novas oportunidades para milhões de pessoas ao redor do mundo.
No campo da educação, a integração da IA pode oferecer novas oportunidades de aprendizado personalizado. Plataformas educacionais podem usar a IA para criar currículos adaptativos, que se ajustam ao ritmo e estilo de aprendizado de cada estudante. No entanto, essas tecnologias devem ser usadas para complementar, e não substituir, a interação humana e o pensamento crítico.
Professores e educadores precisarão desenvolver novas habilidades para integrar a IA em suas práticas pedagógicas. A alfabetização digital se tornará tão fundamental quanto a leitura e a escrita, preparando os alunos para navegar em um mundo onde a IA é onipresente.
A promessa de respostas rápidas, sintetizadas e personalizadas, sem o labirinto de links, é sedutora. Contudo, a comodidade cobrará seu preço. A IA, ao mastigar e regurgitar a informação, pode nos privar do sabor da descoberta, da exploração de diferentes caminhos e da construção do próprio saber.
E qualquer IA, por mais sofisticada que seja, não é infalível. Mesmo as IAs mais avançadas, como as desenvolvidas pela DeepMind, subsidiária de pesquisa em IA do Google, não estão isentas de falhas. Erros e vieses podem estar ocultos nos algoritmos, comprometendo a precisão e a integridade das informações geradas.
A falta de transparência sobre o funcionamento interno desses sistemas, a chamada “caixa preta”, levanta dúvidas sobre a confiabilidade, ética e até mesmo a propriedade intelectual das informações que consumimos. A DeepMind, apesar de ser uma subsidiária do Google desde 2014, opera de forma independente, com sua própria equipe, marca e instalações e enfrenta o desafio de equilibrar a necessidade de transparência e abertura com a proteção da propriedade intelectual e a garantia da segurança de suas tecnologias.
Ao melhorar seu mecanismo de busca com IA, o Google também abriu espaço para questões éticas, de privacidade, de qualidade da informação e outras complicações que ainda não são totalmente compreendidas ou controladas. Essa é a segunda questão importante que precisamos levar em consideração.
Para a educação, a revolução será tremenda. A busca online tradicional com fontes precisas, que nos últimos 25 anos serviu como pilar da pesquisa e do aprendizado, está prestes a ser transformada. Estudantes, docentes e pesquisadores terão que se adaptar a essa nova realidade, aprendendo a navegar em um mar de respostas prontas – e perguntas associadas prontas também –, sem perder a bússola do pensamento crítico e da autonomia intelectual.
O Google afirma que os resultados orgânicos não irão desaparecer. É verdade, mas serão apresentados: primeiro o AI Overviews, depois os Links Patrocinados, em seguida os Recursos do SERP (Search Engine Results Page), para enfim, surgirem os Links da Busca Orgânica. Os contextos dos resultados das buscas variam, mas a Figura 1 exemplifica a questão.
Embora não haja um número preciso, é seguro afirmar que uma parcela significativa dos usuários do Google tende a escolher a primeira resposta apresentada nos resultados de pesquisa. É justamente aí que reside o problema da facilidade em que a comodidade cobrará seu preço.
Sinapses não surgem a partir de respostas fáceis. A plasticidade cerebral é potencializada quando somos expostos a situações que exigem esforço cognitivo e adaptação. É a aventura, a jornada de aprendizado, que exige questionamento, reflexão e a construção do próprio conhecimento que promovem a criação e o fortalecimento dessas conexões no cérebro.
A IA pode ser uma aliada poderosa, mas não a dona da verdade. Se não estivermos atentos, ela pode se tornar a única voz que ouvimos, sufocando nossa capacidade de pensar por nós mesmos. A bolha separatista causada pelos algoritmos das mídias sociais pode se repetir, a partir dessa mudança, de forma muito mais avassaladora na sociedade.
A dependência excessiva de respostas prontas pode levar à superficialidade do conhecimento. Quando tudo é servido em bandeja de prata, aumenta a tentação de aceitar informações sem questionamento. A profundidade da pesquisa e a habilidade de pensar criticamente podem ser corroídas. Essa é a terceira questão que precisamos de atenção.
O impacto do novo sistema de busca baseado no Gemini não se limita ao mundo acadêmico. Ele reverbera em todos os aspectos da sociedade. Empresas e profissionais de marketing, por exemplo, terão que repensar suas estratégias de Search Engine Optimization (SEO). A ciência de otimizar conteúdo para aparecer nos primeiros resultados da busca orgânica pode se tornar menos relevante, substituída pela necessidade de fornecer informações que a IA considere relevantes. E voltamos novamente à questão da opacidade do funcionamento dos modelos de IA.
Além disso, a forma como consumimos notícias e entretenimento pode mudar drasticamente. A IA pode filtrar informações, priorizando certas perspectivas e silenciando outras, o que pode reforçar vieses de confirmação. A diversidade de vozes e opiniões, fundamental para uma sociedade democrática e informada, pode ser ameaçada.
Com a IA se tornando uma parte integral da busca, outras áreas do cotidiano também serão transformadas. Assistentes pessoais, como o Google Assistant, se tornarão mais inteligentes e proativos, antecipando nossas necessidades e oferecendo soluções antes mesmo de pedirmos. Isso pode aumentar a eficiência e conveniência, mas também levanta questões sobre privacidade e a quantidade de dados pessoais que estamos dispostos a compartilhar.
Governos e órgãos reguladores têm uma parcela de responsabilidade a desempenhar nesse novo cenário. Discutir e criar um marco regulatório que assegure o uso ético e transparente da IA é urgente. Isso inclui garantir que os algoritmos sejam auditáveis e que os dados usados para treinar as IAs sejam representativos e livres de preconceitos.
Diante de tantas dúvidas, uma certeza: estamos à beira de uma nova era, onde a busca e o consumo de informação tende a se tornar radicalmente diferente. O principal mecanismo de busca online do mundo está de mudança.
A outra parcela da responsabilidade é de todos nós, em garantir coletivamente que essa tecnologia seja usada de maneira ética e responsável, promovendo a autonomia intelectual e o pensamento crítico.
Essa revolução não é apenas uma questão tecnológica, mas uma transformação cultural que afetará todas as áreas da vida humana.
O futuro do conhecimento está em jogo e ninguém – acredito que nem mesmo o Google – sabe com exatidão qual será o resultado dessa partida. Assim como outro titã da tecnologia, a Meta, que em 2014 também não sabia quando mudou radicalmente os algoritmos do Facebook. Mas o resultado conhecemos hoje.
O Google abriu a caixa de Pandora. Agora, seremos nós a domar seja lá o que for que dela escapar. E garantir que a inteligência artificial seja uma ferramenta a serviço do ser humano e do conhecimento, e não uma ameaça à nossa autonomia intelectual.
Mais detalhes em Google I/O 2024 (veja abaixo).
Por: Glauson Mendes | 20/05/2024