NOTÍCIA
São importantes a garantia de direitos às pessoas e a experimentação de todas as possibilidades que a sociedade vai cobrar dos alunos, futuros profissionais
Publicado em 11/03/2024
Nas universidades brasileiras vem crescendo o número de banheiros agêneros, neutros ou unissex. A Universidade de Brasília (UnB) implantou três unidades piloto de banheiro neutro no campus Darcy Ribeiro, em 2022, uma reivindicação da comunidade LGBT à secretaria de direitos humanos da instituição. Na PUC São Paulo a implantação veio antes, em 2017. No Rio de Janeiro, há dois anos, a Universidade Veiga de Almeida (UVA) previu a instalação de banheiros unissex em um prédio que foi adquirido e passou por reforma.
Beatriz Balena, reitora da Universidade Veiga de Almeida, conta que viaja o mundo em iniciativas do Semesp, para conhecer boas práticas. “Em várias universidades há banheiros unissex.” Em uma delas, conta, o banheiro sequer tinha alguma placa alusiva ao gênero permitido. “Havia apenas isso: ‘banheiro’.” Na UVA, os novos banheiros também são adaptados para prover a acessibilidade.
“Partimos do princípio que as experiências que os alunos viverão na universidade são únicas, mas são as últimas antes de terem de ser exemplos e profissionais. Eles têm de experimentar todas as possibilidades que a sociedade vai cobrar deles”, diz Beatriz. Diante das questões prementes que envolvem a diversidade, a reitora preconiza a revisitação aos valores da instituição. “Se falamos que ‘formamos um ser humano integral’, faz parte ter a experiência e levá-la como propositiva, que os futuros profissionais sejam agentes de transformação em empresas e organizações e, se forem empreendedores, que tenham uma visão mais inclusiva.”
No prédio principal da instituição, tombado, permanecem os banheiros femininos e masculinos. Por enquanto, na UVA e nas demais instituições, o banheiro unissex é uma terceira opção. “Um dia serão todos unissex, tenho certeza”, fala a reitora.
Jaqueline Gomes de Jesus concorda: “o ideal é que todos os banheiros sejam unissex”. Ela é pesquisadora e professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), em Belford Roxo, na baixada Fluminense, Rio de Janeiro e do departamento de direitos humanos, saúde e diversidade cultural da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), membra da Comissão de direitos humanos do Conselho Federal de Psicologia e presidente da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura (ABETH).
Por outro lado, Jaqueline lembra que a maioria das pessoas trans tem gênero, bastaria que pudessem frequentar os banheiros de acordo com o gênero com o qual elas se identificam, o que, na verdade, já o fazem. “Garantir esse direito é mais importante do que o banheiro propriamente. É uma questão de respeito.”
Ela explica que o banheiro unissex como terceira opção não é uma pauta das pessoas trans, mas das pessoas transfóbicas que se incomodam quando uma mulher trans usa o banheiro feminino ou quando o homem trans usa o banheiro masculino. O banheiro unissex pode ser útil para as pessoas não-binárias, ainda assim, diz Jaqueline, é uma forma de segregação.
O incômodo, normalmente vindo de pessoas cisgêneras, especialmente mulheres, tem relação com privacidade e segurança. Jaqueline observa que também homens trans correm risco. “Quando a aparência não é tão masculina, eles têm medo de serem estuprados nos banheiros masculinos.” Além disso, argumenta, “não faz sentido tirar o direito de um grupo porque supostamente outro grupo pode se aproveitar disso”.
Embora discutir a utilização de banheiros seja algo estranho em pleno século 21, é importante que o Supremo Tribunal Federal (STF) se atenha à questão, diz a especialista. Em 2015, uma pessoa transexual foi proibida de usar o banheiro de um shopping em Florianópolis, Santa Catarina, e o caso chegou ao STF com pedido de reparação por danos morais devido ao enorme constrangimento pelo qual a pessoa foi submetida. À época, o ministro Luiz Fux pediu vistas e o processo parou por oito anos.
Também em 2015, a Resolução 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, da Secretaria de Direitos Humanos, afirmava em seu artigo 6º que “deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito”. A Resolução não tem força de lei.
A questão insere-se no contexto de pânico moral alimentado pelo preconceito, discriminação e informações distorcidas. “Já houve casos de pessoas cisgêneras serem confundidas com pessoas trans e sofrerem agressões no banheiro”, conta Jaqueline. No país que, em 2023, foi pelo 14º ano consecutivo o que mais matou pessoas trans no mundo – de acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra) –, para estas pessoas ir ao banheiro pode se tornar uma saga. No Brasil, a média de vida de uma pessoa trans – travestis, transexuais e transgêneros – é de 35 anos.
O campus do IFRJ, em Belford Roxo, ganhará estrutura física definitiva este ano. Na provisória e na definitiva, os banheiros são individuais. “Chamamos de ‘banheiro para gente’”. Jaqueline diz que toda a problemática tem a ver com o fato de os banheiros serem coletivos. “O banheiro individual resolve as questões de segurança e privacidade.”
Jaqueline observa que nível de escolaridade não é garantia de consciência acerca dos direitos humanos. Falta formação nessa área nos cursos de graduação. “Por exemplo, o arquiteto estranhou quando dissemos que os banheiros não seriam coletivos, mas individuais.” Algo similar ao que acontecia em projetos de apartamentos que destinavam cômodos para empregadas domésticas, um resquício da cultura escravocrata.