NOTÍCIA

Edição 278

Psicologia: tsunami de tecnologia invade a clínica

Para ingressantes, o mercado parece promissor, mas há a concorrência da automação crescente, dos chatbots e a IA está à espreita

Publicado em 04/10/2023

por Sandra Seabra Moreira

Andréia Jotta | Psicologia Andréia Jotta, psicóloga e pesquisadora (foto: divulgação)

Entre os aspectos que a pandemia evidenciou estão as desigualdades econômicas e sociais do Brasil, a necessidade de cuidados com a saúde mental e o uso das TICs, tecnologias de informática e comunicação. São temas que estão no dia a dia de psicólogos e pesquisadores da saúde mental, intimamente interligados. Mas a complexidade desse campo não parece assustar os estudantes.

De acordo com o Mapa do Ensino Superior, em 2021, o curso de psicologia ocupava o segundo lugar nas matrículas efetuadas em cursos presenciais oferecidos pela rede privada, abaixo somente do curso de direito. De um ano para outro, o aumento foi de 7,8%. Entre os cursos mais procurados na internet, psicologia ocupou a terceira posição em 2019 e 2020, depois de direito e medicina. Nos anos seguintes e no primeiro trimestre de 2023, está na segunda posição, abaixo somente do curso de direito.

As TICs já estavam presentes antes da pandemia na prática clínica, apesar da resistência do Conselho Federal de Psicologia. Em meio à crise, se impuseram e se estabeleceram. Estão abertos os caminhos para a ampliação do atendimento psicológico, que alcança agora lugares e estratos da população que antes não podiam contar com as terapias.

 

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Para ingressantes, o mercado parece promissor. Mas não é bem assim. Há a concorrência da automação crescente, dos chatbots, os aplicativos de saúde mental – são cerca de dez mil nos EUA, boa parte gratuita. Há pouco tempo, a psicologia parecia estar a salvo da substituição do humano pelas máquinas, mas a IA está aí, à espreita, e se ainda não ameaça diretamente as vagas de trabalho, nada a impedirá no médio prazo. Por enquanto, não há sinal de uma regulamentação. Nesta entrevista, Andréia Jotta, psicóloga e pesquisadora, aprofunda aspectos da relação do ser humano com as TICs e da própria psicologia com as novas ferramentas tecnológicas. Ela atua no Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação, o Janus LEPTIC, do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática (NPPI), da PUCSP.

 

É possível traçar um breve histórico da apropriação das TICs pela clínica psicológica?


O NPPI começou nos anos 2000. Desde lá, estamos olhando para tudo o que está acontecendo com o ser humano – a subjetividade, a psique, os comportamentos –, mediante o uso das tecnologias. Isso começa um pouco antes, com a abertura do e-mail da Clínica de Psicologia da PUC, quando a internet ainda era discada e poucos tinham e-mail. Era um e-mail institucional que três professores resolveram abrir para a comunicação interna da universidade, para os alunos. Os que tinham e-mail descobrem a Clínica Psicológica e começam a mandar relatos de sofrimentos psicológicos. Esses professores entenderam que ali, além de uma comunicação, poderia se desenvolver um trabalho de saúde mental. Era importante dar conta dessa demanda. Houve muita briga com o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o serviço não podia ser chamado de psicoterapia, e de tanto insistirmos a prática se tornou “orientação psicológica via e-mail”.

 

Como acontecia essa modalidade de atendimento? Esse trabalho gerou pesquisas?


Desenvolvemos as orientações psicológicas via e-mail, tentando abarcar esse sofrimento, ainda por escrito, mas em grupo. Os três professores não deram conta, entraram os estagiários. Começamos a tabular os tipos de sofrimento e a receber muita demanda relatando vício na internet. Era 2006, os computadores já eram mais baratos, as redes se difundiram, havia mais serviços, mais acesso à tecnologia. Depois disso passamos pelo momento dos smartphones, daí a pessoa já não precisava mais car fechada no quarto para ter 100% de acesso à tecnologia.

Começamos a ter demandas de baixa produtividade e casamentos desfeitos. Então, paralelo às orientações psicológicas para fins gerais, começamos a trabalhar com os usos excessivos de tecnologia e criamos um mapeamento disso. Foi descrito como transtorno de impulso no DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – em 2015. A pessoa começa a usar e depois não consegue sair, como transtornos de jogo. E com a pandemia temos o boom.

 

Como ficou a formação dos graduandos em meio à pandemia?


Muitos não conseguiram fazer a formação completa, nos estágios só zeram atendimentos online e agora precisam de uma pós-graduação em clínica para poder ter a experiência presencial. Um dos problemas no pós-pandemia é conseguir pacientes, pois eles não querem mais ir até a clínica para sessão presencial. E a questão é que nem todo terapeuta ou paciente está apto a atender ou ser atendido online. O atendimento online pode suscitar conteúdos com os quais, às vezes, as pessoas não conseguem lidar. Até mesmo nós, no NPPI, tínhamos dificuldade de entender o que era “normal” ou não nas demandas que recebíamos. Especialmente sobre usos de tecnologia, as pessoas se sentem mais à vontade para falar nas sessões online, falam coisas que talvez levassem meses para expor presencialmente.

 

O Censo da Psicologia Brasileira de 2022 aponta que antes da pandemia a média de uso das TICs pelos psicólogos era de 34,01%, na pandemia chegou a 78,17% e hoje está em torno de 68,5%. Você considera que a tecnologia já faz parte da clínica?


A tecnologia veio para ficar e não vejo como um problema, muito pelo contrário. Sabemos que é efetivamente funcional e eficaz. É um serviço que vem sendo proposto pelo NPPI há 20 anos e sempre com demanda crescente, independentemente da ferramenta que se use. Uma das coisas que também constatamos em pesquisas é que o vínculo feito presencialmente e que vai para o virtual, ou que entra no hibridismo, funciona perfeitamente bem, não muda de status.

A tecnologia permite que outras classes sociais acessem o serviço, barateia, facilita, é possível atender mais pessoas. Mas, ao mesmo tempo que há o aumento de oferta de serviço, há o aumento de sofrimento por causa do uso excessivo da tecnologia.

 

Quais outras características do atendimento virtual são diferentes do presencial?


Não há setting, ou o setting é a comunicação. Contanto que o profissional salvaguarde a privacidade do paciente, um dia o profissional atende em casa, outro dia no consultório. Isso tudo colocamos num contrato e o paciente precisa estar ciente de que ele deve estar sozinho, sem interferências. Mas já aconteceu, por exemplo, de atendermos um paciente no meio do canavial. Ele era trabalhador rural, não tinha privacidade, tinha um problema de sexualidade e não queria expor isso dentro de casa. Havia muito preconceito. Ele pegava o celular e ia para o canavial.

Não dá mais para dizer que a boa terapia se dá apenas entre quatro paredes. Trabalhamos muito com essa democratização da saúde mental e do atendimento, principalmente porque a Clínica da PUCSP é um serviço gratuito.

 

O e-mail ainda serve para quê?


O e-mail tinha a vantagem muito grande de pegar a pessoa no auge do sofrimento, havia uma catarse. Hoje, o e-mail é usado como instrumento para a terapia de vídeo. No caso de o paciente demonstrar essa necessidade de fazer uma catarse, se reorganizar, pedimos que ele escreva e-mails, que são discutidos na sessão seguinte. O e-mail é sempre muito estruturante do ponto de vista das ideias.

 

Quando veio a pandemia, todas as práticas intermediadas pelas TICs foram liberadas?


Liberaram tudo. Há uma resolução do CFP do começo da pandemia e é essa que está valendo. Antes, o uso das TICs era permitido no âmbito da pesquisa. Por exemplo, começamos no NPPI a atender por skype ainda sob crivos do CFP. Não podia fazer mais do que dez sessões, não podia receber por isso, era tudo muito burocrático, precisava de um site, ou estar ligado a uma instituição de ensino e pesquisa. Daí vem a pandemia, o CFP libera tudo, inclusive atendimento de crianças e situações emergenciais, o que não entendemos como uma prática muito segura. Por exemplo, com as questões de suicídio é preciso ter muita prática no manejo para fazer online.

 

Em setembro de 2022, no evento Existe ética na inteligência artificial? do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), Glauco Arbix, professor titular do Departamento de Sociologia da USP, contou que há cerca de dez mil aplicativos para atendimento psicológico à população nos EUA, e que o país está investindo U$ 500 milhões esse ano nesses aplicativos e plataformas de autoajuda e terapia digital. Esses aplicativos são eficazes?


Como ferramenta, principalmente para ansiosos, são eficazes. A maioria dos chatbots, hoje, foram desenvolvidos para uma cultura norte-americana, que é bem diferente da brasileira, tanto que a terapia mais difundida por lá é a Terapia Cognitiva Comportamental. Sendo bem simplista: a pessoa tem comportamentos que foram reforçados e por isso estão internalizados no seu subjetivo e podem ser reprogramados. Mas a TCC não vai a fundo no seu passado, nas coisas que aconteceram, eventos traumáticos. Trabalham com sensações e sentimentos do momento e estímulos externos que provocam aquilo. E dão algum instrumento, como os exercícios – de respiração, meditação, hipnose ou um caminho mais sugestionável – para você sair daquele estado mental.

 

E os aplicativos brasileiros?


Temos aqui apenas as traduções. É como aquela série “Sessão de terapia”, com o Selton Melo, que tem o roteiro traduzido. Temos pouco desenvolvimento de produtos, as referências sempre serão internacionais. Isso, particularmente, acho muito perigoso. Como não temos pesquisa, acabamos importando patologias, não só aplicativos. A patologia americana de hard user – aquele que faz uso excessivo de tecnologias a ponto de começar a ter perdas signficativas em sua vida, como emprego, relacionamentos, dinheiro, saúde –, por exemplo, é totalmente diferente da patologia brasileira.

A mídia diz que “o adolescente é mimimi”. Adolescente mimimi é o americano: anda de carro, o pai banca. Não dá para dizer que o adolescente brasileiro de comunidade, que pega três ônibus para trabalhar, sai do trabalho e vai para a faculdade, chega em casa meia-noite, mora num lugar perigoso, violento, é mimimi. São patologias que não se encaixam e trazem maior sofrimento para a nossa realidade. Aí as pessoas se esforçam ainda mais para provar que não são mimimi, sendo que a princípio não são.

Fiquei um tempo em Boston. Realmente o adolescente americano não tem vontade de fazer nada. Aqui, o adolescente que não tem vontade de fazer nada morre de fome. Lá, se o adolescente não quer cursar o ensino superior, ele não precisa. Eles não querem porque já moram numa casa de quatro quartos. Eles foram enganados, disseram “se você consumir, vai ser a pessoa mais feliz do mundo”. Eles estão consumindo e vendo que a felicidade não está neste lugar. Sentem depressão, que vem do consumir e não ser feliz. Os brasileiros das classes A e B até podem ter a mesma característica, mas eles são 5% da população.

 

A machine learning está sendo usada para o alívio mental e emocional. Como você vê o avanço dos algoritmos, da IA no tratamento psicológico?


Um grande perigo. A hora que a IA chegar com tudo, aí sim, teremos uma interferência maciça da tecnologia na mente, na subjetividade humana. A IA supera a intuição humana em muitos momentos.

E o mercado de trabalho para psicólogos, vai se alterar ainda mais?


Haverá um prejuízo maior. Hoje, a IA ainda é ferramental. Na tecnologia, as coisas acontecem em ondas. Veio a onda da IA, mas comercialmente ela nem está entrando na velocidade que se imaginava. Aqui no Brasil ainda temos uma proteção muito grande porque o nosso wi-fi é muito ruim. Vai para os EUA para ver o que é 5G. Aqui, o 5G é fake.

 

Estar na periferia da tecnologia traz vantagens?


Sim, porque continuamos a desenvolver o ser humano.

 

Há iniciativas para regulamentação das ferramentas de IA no atendimento psicológico?


Principalmente no Brasil, só se faz a lei depois que dá problema, não se faz a prevenção. É difícil colocar luz sobre isso porque é um lugar de muito dinheiro. Não temos lei sequer para os aplicativos que intermedeiam relações humanas, tanto que discutimos muito o risco da uberização do serviço psicológico. Nesses aplicativos, há oferecimento de tratamento psicológico a baixo custo 24 horas por dia. E pagam ao profissional menos que o piso. O psicólogo está sob o CFP, mas o aplicativo é desenvolvido por um engenheiro que não está preocupado com a saúde mental, mas com ganhar dinheiro, quer fazer isso explodir no mercado.

 

Autor

Sandra Seabra Moreira


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