NOTÍCIA

Edição 273

A transformação do curso de jornalismo

Em um contexto de desinformação e negacionismo, seria de esperar que os cursos de jornalismo estivessem em crise

Publicado em 17/03/2023

por Sandra Seabra Moreira

A transformação do curso de jornalismo Cobertura da Copa de 2022 no CEJOR da ESPM (Foto: divulgação Nova PR/ESPM)

A crise no modelo de negócios das empresas de comunicação, provocada pela revolução digital, fechou redações no mundo todo, nas duas últimas décadas. A concorrência com as big techs e suas plataformas é brutal. Ao jornalista, entretanto, encontrar uma vaga de trabalho pode não ser seu maior revés. Nos últimos tempos, até mesmo o glamour que alguns conferem à profissão e a exaltação de celebridades não se sobrepuseram às críticas. Toda vez que a democracia é de alguma forma ameaçada, imprensa e jornalistas seguem no roldão. São pedradas desferidas por leitores, internautas, à direita e à esquerda do espectro ideológico. Apenas em 2022, foram 376 casos notificados de agressões a jornalistas, segundo dados da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ).

A desinformação rola solta, ganha adeptos, surfa no negacionismo. O conhecimento científico é atacado. O ensino superior também é colocado à prova, por demandas reais do mercado, pela crise econômica, e pelo senso comum que tem rechaçado as graduações frente à necessidade rápida de ganhos. Há influencers desprezando o diploma. Seria de esperar que os cursos de jornalismo estivessem em crise. 

Não estão. “Porque a crise é do modelo de negócios e não do jornalismo”, opina Edilamar Galvão, coordenadora do curso de jornalismo da FAAP e criadora do LabJor, projeto transversal e interdisciplinar. Os cursos foram salvos pelo desejo dos jovens de mudar o mundo e por grades curriculares que estão em constante transformação e oferecem o que o estudante espera conhecer: aulas em laboratórios multimídia para experimentação, para a prática na convergência das mídias e suas múltiplas linguagens, disciplinas voltadas à gestão de negócios, desenvolvimento de soft skills, cursos de outras áreas à disposição, ampliando a visão do profissional. No jornalismo especializado, há uma febre entre os estudantes: o jornalismo esportivo.

 

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Na Cásper Líbero, a primeira faculdade de jornalismo do Brasil, criada em 1947, a procura pelo curso de jornalismo aumentou nos últimos três anos. Em 2023, são seis turmas, quatro pela manhã e duas à noite, de 45 a 50 alunos. O vínculo tradicional da faculdade com o jornalismo esportivo, a presença da histórica Gazeta Esportiva – atualmente um portal de notícias – no mesmo prédio, na avenida Paulista, também pertencente à Fundação Cásper Líbero, são aspectos atraentes mas, isolados, não explicam o aumento de interesse em meio a tanta adversidade. 

A transformação do curso de jornalismo

Helena Jacob: jornalismo de interesse público atraiu jovens para a graduação na área da comunicação (Foto: divulgação/Cásper)

“Não há uma pesquisa oficial, mas, entre os professores do curso, trabalhamos com a hipótese de que a eclosão da pandemia teve o papel de mostrar a importância do jornalismo. Se não fosse o consórcio de grupos de mídia, não saberíamos o número de mortos no auge da pandemia. Esse fato atraiu os jovens”, opina Helena Jacob, coordenadora do curso de jornalismo da Cásper. Ela lembra que a pandemia fez surgir discussões acerca do jornalismo de interesse público.

Outra motivação é o estudante já atuar nas redes sociais e querer se formar. “E aí vai um longo caminho para muitos deles entenderem que a atividade de influencer não é jornalística”, fala Helena. Para este ano, o curso da Cásper tem grade semestral, os conteúdos são condensados. As redes sociais são estudadas como ferramentas e duas disciplinas se destacam: jornalismo de dados e perspectiva crítica da notícia. O jornalismo segmentado – internacional, de entretenimento – ganha espaço no final do curso.

Na Escola Superior de Propaganda em Marketing (ESPM), em São Paulo, o curso de jornalismo foi criado em 2011. Após diminuição de alunos em 2018 e 2019, o curso voltou a crescer e no segundo semestre de 2022 eram 70 alunos. Na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), também na capital paulista, o curso de jornalismo é bem mais recente, de 2015, e vem a cada ano conquistando novos alunos, hoje também são 70. Em geral, os coordenadores de curso não relatam dificuldades dos alunos para estagiar. Eduardo Grossi, coordenador do curso de jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo, menciona que a crise econômica que se acentuou a partir de 2015 impactou bastante as empresas de comunicação e, em consequência, os estágios. “As agências de comunicação passaram a absorver a maior parte dos estudantes para suprir, entre outras práticas, a redação de textos para redes sociais. Em 2022, o mercado indicou uma retomada nas contratações e o estágio se reaqueceu. A busca de aprendizes para redações de jornalismo aumentou, mas a procura se intensificou no desenvolvimento de conteúdo para canais digitais.”

 

O fact-checking e o empreendedorismo

 

Em relação ao enfrentamento da desinformação e do negacionismo científico, Grossi diz que “o currículo do curso de jornalismo da Metodista historicamente conta com disciplinas voltadas aos estudos críticos da mídia. Com o acirramento do negacionismo, mais disciplinas do curso que não tinham como foco o debate ideológico passaram a discutir a questão com os alunos e a insistir no aprofundamento das técnicas jornalísticas e seus instrumentos para a aproximação da verdade factual”.

Perspectiva crítica da notícia é a disciplina focada na questão da desinformação e traz as reflexões necessárias aos alunos. Popularmente conhecida como fake news – mas se é fake não é notícia, muitos alegam, a desinformação criou uma nova função, o fact-checker. Edilamar conta que uma nova grade de disciplinas na FAAP traz, entre outras novidades, desinformação e fact-checking.

A internet potencializou o compartilhamento da desinformação. Edilamar contextualiza sob a perspectiva histórica. “Ao mesmo tempo que a revolução digital coloca em crise o modelo de negócio, ela também dá novo contorno à desinformação, que não é uma invenção do século 20.” Tanto não é um fenômeno exclusivo da contemporaneidade que há exemplos devastadores. “Atuou de maneira fortíssima durante a segunda guerra. Os judeus sofreram uma campanha de desinformação por meio do chamado Protocolo de Sião, uma mentira histórica, que, inclusive, circulou nos jornais – não nos esqueçamos. E que os nazistas tiveram a ‘competência’ de fazer circular nos livros históricos, nas escolas alemãs.”

 

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Ela afirma que a desinformação apareceu como desafio para a prática jornalística, mas também serviu para revelar que a principal competência do jornalismo é checar informações. Nesse sentido, parece um paradoxo a criação de editorias de checagem, entretanto, o que fazem essas editorias é a verificação de desinformação em circulação. Também surgiram no Brasil as empresas de fact-checking, como a Lupa e a Aos Fatos. “Bem atuantes nas redes sociais, com profissionalização de sua estrutura, são exemplares”, aponta Edilamar. 

No livro A tempestade perfeita – sete visões da crise do jornalismo profissional, a jornalista Cristina Tardáguila, além de trazer o histórico do fact-checking no mundo, conta sua saga para conseguir abrir a Agência Lupa, que começou como start-up e se tornou sociedade anônima. Para ela, que se virou com um MBA na Faculdade Getulio Vargas, as escolas de comunicação seguem formando empregados e não empregadores, o que não tem mais relação com a realidade da indústria. “Melhor seria se oferecessem também cadeiras como gestão, marketing, logística, direito trabalhista, tributação, e tudo o mais que pudesse ser incorporado do campo da administração”, escreveu. Edilamar concorda. No sexto semestre do curso da FAAP, o último antes de o estudante começar seu Trabalho de Conclusão de Curso – cujo tema é, justamente, projeto jornalístico autoral –, todas as disciplinas convergem para que ele seja capaz de pensar novas oportunidades no mundo da comunicação. “Temos desde disciplinas de administração, como business intelligence, até as de análise de conjuntura, como guerras culturais e narrativas hegemônicas e anti-hegemônicas.” 

Na ESPM, marketing, gestão e disciplinas no âmbito corporativo estão no curso de jornalismo desde o início, alinhadas às disciplinas de humanidades e das técnicas jornalísticas. “O jornalista não pode pensar numa carreira em que ele vá somente para a redação. Há outras funções, como o editor de mídias sociais, que não é apenas transportar a notícia para o meio digital, é necessário se apropriar das múltiplas linguagens. Há outras oportunidades também, como o jornalismo empresarial. E o jornalista pode ser empreendedor, gestor do seu próprio negócio. Por isso, não pode sair da graduação apenas com as competências específicas da prática jornalística. É preciso alargar o campo profissional e o curso já foi pensado com esse objetivo”, diz Maria Elisabete Antonioli, coordenadora.

 

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Se as vagas em redações fecharam, outras atividades apareceram. “Produção e gerenciamento de mídias sociais, geração de conteúdos – essa é uma fatia grande –, produção de releases, conteúdos corporativos, produção para pessoas físicas, profissionais autônomos, como médicos, advogados. Muita gente precisa do jornalista”, diz Helena. Na Cásper, o jornalismo esportivo será introduzido na grade de disciplinas. “Serão seis meses para satisfazer essa imensa vontade dos alunos. É uma loucura o interesse deles”, diz a coordenadora. O mercado traz novidades. “Há aumento de espaço para o jornalismo esportivo nas redes sociais. Os clubes produzem seu próprio conteúdo.” 

Também cresce o interesse no jornalismo esportivo entre alunos da FAAP e há alunas que se destacam nas redes sociais, conta Edilamar. Mais do que querer sucesso individual como influencer, o gosto é por trabalhar em equipe. Uma dessas alunas cobre fórmula-3, trabalha para pilotos, e tem os adeptos do esporte como seus seguidores.

 

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Quando o ensino superior bate à porta

 

Entrar para a vida acadêmica aos 17 anos tem seus aspectos positivos. Escrever esse texto aos 21 com diploma de jornalista é um deles. Nos últimos quatro anos, experimentei as mais diversas vivências proporcionadas a um graduando. Fiz teatro, estagiei em diferentes empresas, estive em um projeto de iniciação científica, escrevi um livro e uma centena de matérias. A todas essas realizações, no entanto, acrescento o fator sorte. Porque entrar para a vida acadêmica aos 17 anos pode ser, também, um tiro no pé. Mas, por sorte, essa bala não me pegou.

Abrir a porta de saída do ensino médio e dar de cara com a entrada para a vida adulta é um tanto chocante. Como escolher o curso que mais conversa comigo se não sei quem sou? Lembro-me das conversas que, somadas à pressão do vestibular, borbulhavam na cabeça de meus colegas no último ano do ensino médio. Lembro-me também da precipitada decisão de cursar publicidade.

A sorte aparece já no início. A Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), instituição em que me matriculei, trabalha a proposta de “núcleo comum”, uma grade curricular que une, nos três primeiros semestres, as disciplinas de jornalismo, publicidade e propaganda e rádio e tv. A oferta do núcleo me possibilitou contato com profissionais das três áreas, e estudantes mais velhos, que já estavam certos do caminho a seguir.

Além de uma imediata identificação com as aulas voltadas para o jornalismo, foi no núcleo comum que tive a sorte de me tornar aluno de Lilian Crepaldi, professora que apontou em mim o que chamou de “perfil jornalístico”. Lilian foi quem, apesar de meus receios, me convenceu a mergulhar na área, e garantiu me acompanhar até o final do curso. Também orientou o livro-reportagem O pecado da cura – as terapias de conversão sexual nas igrejas evangélicas, responsável por fechar esse ciclo na banca de TCC.

Apesar de uma pandemia que virou o mundo de ponta-cabeça e forçou uma adaptação ao híbrido no meio do percurso, o saldo dos últimos anos é positivo. A mudança definitiva para jornalismo trouxe experiências únicas, incluindo a compreensão dos temas e das causas que desejo abraçar. A pós-graduação bate à porta numa velocidade parecida com a saída do ensino médio. A diferença é que desta vez as escolhas serão baseadas nos meus interesses – pessoais e profissionais.

Gustavo Lima, jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e editor de redes sociais da revista Ensino Superior.

Autor

Sandra Seabra Moreira


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