NOTÍCIA
Para iniciar uma cátedra é fundamental o benchmarking: conhecer cátedras que estão em operação e os ganhos que elas trazem. Também eleger um tema relevante, que empreenda um ganha-ganha para a universidade, a parceria e a sociedade
Publicado em 28/02/2023
Sérgio Henrique Ferreira foi um médico farmacologista brasileiro, cientista, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto que obteve reconhecimento nacional e internacional por causa de suas pesquisas, em especial a que extraiu um peptídeo do veneno da jararaca que resultou no Captopril, remédio para controle da hipertensão. Exerceu cargos em entidades científicas, entre eles, a presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 1995 a 1999. Por essa época, Mozart Ramos, um jovem químico recifense, pesquisador às voltas com a estrutura das moléculas, e bastante ativo nos meios científicos, acompanhava com admiração o professor Sérgio Henrique, também por características da sua personalidade, como a empatia e a capacidade de mobilizar as pessoas. Aliás, gerações de pesquisadores brasileiros o tiveram como referência.
O cientista morreu em 2016, em Ribeirão Preto. Pessoas inspiradoras têm suas memórias enaltecidas para que continuem a incentivar os que vêm em seguida. No mundo acadêmico seus nomes batizam cátedras, departamentos, espaços de conferências. Sérgio Henrique Ferreira deu nome à cátedra criada em 2020 pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, polo de Ribeirão Preto (IEA-RP). O objetivo é o de contribuir com políticas públicas na área da educação básica de municípios de médio porte, de 100 mil a 500 mil habitantes. Em 2019, já contando com o financiamento do Santander Universidades, ao IEA-RP faltava encontrar o titular da cátedra que levaria as pesquisas e as tarefas adiante. Aquele jovem químico dos anos 90, admirador de Sérgio Henrique Ferreira, foi convidado pelo Conselho do IEA-RP para coordenar os trabalhos da cátedra.
“Eu era encantado por ele. Quando recebi o convite para dirigir a cátedra com seu nome, e para trabalhar com política pública em educação, área pela qual sou apaixonado, nem perguntei quanto ganharia”, conta Mozart Ramos, então diretor de articulação e inovação do Instituto Ayrton Senna. O convite foi irrecusável, mesmo com o aporte pouco atrativo de R$ 200 mil anuais para as despesas, incluindo seu salário no orçamento, e a necessidade de viagens constantes de Recife para Ribeirão Preto. O aceite tinha, entretanto, um pré-requisito. “O objetivo é chegar ao chão da escola. Se for para publicar paper e deixar na biblioteca eu não quero.”
Ao serem criadas, as cátedras têm seus focos definidos, que podem ser o estudo acerca de uma personalidade que foi referência no campo do conhecimento ou atuação social. Pode estar destinada à pesquisa de um tema – insegurança alimentar, por exemplo –, ou ainda vinculada a políticas públicas, como é o caso da Sérgio Henrique Ferreira. “Uma das belezas da cátedra é a flexibilidade na forma de atuação”, afirma Mozart.
A cátedra Sérgio Henrique Ferreira atua na aprendizagem escolar e na diminuição da desigualdade educacional nas escolas de ensino básico da rede pública. “O que entendo como desigualdade é ter, numa mesma rua, duas escolas da mesma rede de ensino, com professores recebendo o mesmo salário, trabalhando no mesmo ambiente social e econômico, e essas escolas serem absolutamente diferentes em termos da aprendizagem e indicadores educacionais.” O que leva a essa desigualdade? “Não há uma única razão, muitas vezes decorre de dois fatores intraescolares que são os mais importantes: a qualidade do professor e da liderança escolar. Um líder eficaz promove o impacto de 12 pontos na escala Saeb, tanto em língua portuguesa como em matemática. Assim, se quero melhorar a aprendizagem escolar é preciso focar na formação do diretor”, exemplifica.
As cátedras vinculadas ao IEA da USP não estão estruturadas em relação às atividades de suas pró-reitorias, “a esse cargueiro que é a USP”, diz Mozart. Elas têm mais autonomia porque o IEA tem conselho próprio. “Por exemplo, para trabalhar com alunos de pós-doutorado, fazemos o projeto e vai direto para o Conselho Acadêmico do IEA, que analisa, autoriza, e depois o pesquisador tem o certificado de pós-doc pela USP, através da cátedra.”
Em formatos mais ágeis, “dependendo do perfil do titular, a cátedra passa a ser uma start-up, do ponto de vista da inovação, no campo da atuação social ou na política pública. Se os recursos são parcos, valem ouro a expertise e poder de articulação do catedrático. Ele acaba assumindo uma atuação que passa bem longe do estereótipo do catedrático encastelado em meio a torres de livros. E pode ir mais longe. A ideia é bem-vinda no atual contexto em que a educação básica pública pede socorro, com seus problemas estruturais agravados pela pandemia, é prioridade do governo e da sociedade civil e as IES são chamadas a colaborar.
Ao assumir a cátedra, em fevereiro de 2021, Mozart optou por ter uma remuneração de bolsa de pós-doutorado. Contou com uma pequena equipe: ”três funcionários muito bons, um para a elaboração de projetos, outro para a parte contábil e financeira e mais um para a comunicação”. Reservou R$ 50 mil para três projetos iniciais e importantes para os objetivos da cátedra: o levantamento e análise dos municípios de médio porte no Brasil, uma plataforma para acesso fácil aos dados coletados – que resultou na plataforma QEdu Gestão, uma seção em qedu.org.br – e levantamento da situação educacional de Ribeirão Preto e entorno. Mozart, com grande articulação, foi reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e secretário de Educação do mesmo estado e o primeiro presidente do Todos pela Educação.
As finanças se mantiveram estáveis em 2020 e 2021 por conta da pandemia. Gastos com passagens e estadias foram reduzidos, “até sobrou um dinheirinho”, conta Mozart. Ao mesmo tempo, eventos remotos pulularam, com a participação da cátedra em congressos, palestras e debates, promovidos por universidades, entidades, institutos. E eventos da própria cátedra, como a formação de professores, em iniciativa conjunta com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). “Mantivemos o foco nos municípios de médio porte, mas abrimos aos pequenos municípios a participação de seus professores nos debates e eventos de formação.”
Outra frente foi a produção de artigos de opinião e acadêmicos. Em especial, os acadêmicos tinham importância porque um dos propósitos era a análise estatística da situação educacional do município, para dar ao gestor municipal subsídios para tomada de decisões com base em evidências. Também a mídia demandou tempo e dedicação. Com o MEC praticamente inoperante durante a crise sanitária, e as trocas ministeriais constantes, especialistas eram requisitados. Mozart foi um deles.
O segundo semestre de 2021 pedia os eventos presenciais. “Começamos a entender que precisávamos de outra envergadura financeira para 2022 e comecei a procurar parcerias. Se o projeto é bom, o dinheiro aparece.” A ideia foi contar com empresas, terceiro setor e secretarias de educação. Já em 2021, a B3 Social ofereceu aporte de R$ 200 mil para aplicação em 2022. Os resultados começaram a aparecer, o que facilita a adesão. Por exemplo, a prefeitura e a secretaria municipal de educação de Ribeirão Preto utilizaram pesquisas e artigos da cátedra para a implantação de medidas de melhoria na educação local.
Em 2022, a cátedra Sérgio Henrique Ferreira alcançou quatro estados – São Paulo, Maranhão, Bahia e Pernambuco –, 33 municípios, 496 escolas, impactando a vida escolar de mais de 208 mil alunos do ensino fundamental das redes públicas. Para 2023, a perspectiva do ponto de vista orçamentário é ter seis vezes mais recursos do que aqueles iniciais. Com parceiros como a Fapesp, a Fundação Telefônica Vivo, a B3 Social e as secretarias de educação, o trabalho também tende a se multiplicar. Operando no modelo remoto, alcança municípios longínquos. Já em Ribeirão Preto, vigora o modelo presencial, como o projeto Liderança Eficaz, que será replicado para outros municípios e tem início a parceria com o Instituto Máthema Educacional para formação de professores. “Se todos os projetos forem apoiados, teremos mais força presencial. Já existe dinheiro para fazer atividade presencial em Bebedouro e Batatais, no campo da formação de professores de matemática.”
Guilherme Ary Plonski, diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP desde 2016, conta que ao assumir o cargo havia uma única cátedra vinculada ao IEA. Hoje, são seis, e devem chegar a oito este ano. Entretanto, explica que não há o objetivo específico de aumentar o número de cátedras, importam mais o tema e os resultados que elas alcançam. “O IEA é bastante seletivo em relação ao tema, que precisa ser interdisciplinar e relevante para a sociedade. Por exemplo, a educação em municípios de médio porte, com foco na educação básica, é importante e atual.” A década da ciência oceânica, conforme decisão da ONU, vai até 2030, assim, “a Cátedra Unesco para sustentabilidade do oceano é tema superoportuno”.
A ideia da cátedra é oferecer espaço para a pesquisa de longo prazo. Uma cátedra tem duração de quatro a cinco anos, prazo que pode ser prorrogado. Outra característica são as parcerias com entes externos para viabilizá-la. Além do Santander Universidades, primeiro parceiro da cátedra Sérgio Henrique Ferreira, outros parceiros do IEA são o Comitê Gestor da Internet, Itaú Social, Itaú Cultural e Folha de S. Paulo. O parceiro não é apenas um financiador, ele também participa. No âmbito da cátedra, o que está no centro é a pesquisa, lembra Plonski. Portanto, os parceiros financiam e têm interesse no resultado delas. Ele exemplifica. “Na cátedra Oscar Sala, que aprofunda conhecimentos sobre a internet, nosso parceiro é o Comitê Gestor da Internet do Brasil, que tem todo o interesse e competência relativa ao tema. São dois olhares diferentes, é uma cocriação.”
Embora não exista o objetivo de aumentar a quantidade de cátedras, os números do IEA chamam a atenção. “O que influi nesse aumento são os resultados”, explica Plonski. Outro fator é o modelo atual, democrático, totalmente diferente das antigas cátedras, que agrada às universidades e aos parceiros. Antes da reforma universitária de 1968, vigorava a estrutura de origem europeia. “Essa estrutura prevaleceu por muito tempo. Cátedra significa cadeira. Alguém conquistava a cadeira de física e tudo girava em torno dele. Era vitalícia. A reforma universitária veio para oxigenar. Estamos ressignificando o conceito de cátedra.”
Hoje em dia, ao menos no IEA, o titular da pasta é alguém de fora dos quadros da USP e não precisa ser detentor de títulos acadêmicos. “No ciclo de uma cátedra há vários titulares. Na cátedra Olavo Setúbal, de arte, cultura e ciência, em parceria com o Itaú Cultural, tivemos titulares que não são rigorosamente da área acadêmica. O primeiro foi Sérgio Paulo Rouanet, intelectual notável, o segundo foi Ricardo Ohtake, atualmente presidente estatutário do Instituto Tomie Ohtake, e a terceira titular foi Eliana Souza Silva, diretora da Redes da Maré, do Rio de Janeiro.” Mais do que título acadêmico, ao líder intelectual da cátedra são requisitados competência, engajamento e prática. “Se Villa Lobos fosse vivo e quisesse ser titular de uma cátedra de música seria muito bem-vindo.”
Para a instituição de ensino superior que pretende iniciar uma cátedra, é fundamental o benchmarking, conhecer cátedras que estão em operação e os ganhos que elas trazem. Definir um tema relevante, que empreenda um ganha-ganha para a universidade, a parceria e a sociedade. E encontrar um líder para a tarefa. A ele caberá formar sua equipe. Nas equipes do IEA, cabem mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos, vinculados à USP ou não. Alguns recebem bolsas e são selecionados por meio de edital com chamada aberta.
Plonski aponta como bastante recomendado o modelo de governança compartilhada em que há paridade de presença no comitê. “No nosso modelo, são três pessoas do IEA, três da entidade parceira. O colegiado com número par não é recomendável, o sétimo membro é justamente o titular da cátedra. Há trocas de titulares e membros do comitê. Na minha experiência, as decisões são tomadas em consenso, nunca houve necessidade de votar. Pode haver uma conversa com muitas opiniões que vão se ajustando.”
Com formatos e temas diversos, as cátedras se institucionalizam também nas IES particulares e configuram espaços privilegiados de pesquisa, produção de conhecimento e sensibilização do corpo docente e discente acerca de temas urgentes para a sociedade. A cátedra Unesco de Juventude, educação e sociedade, da Universidade Católica de Brasília, por exemplo, se efetivou a partir de trabalho já realizado na universidade, o Observatório de Violências nas escolas. Dirigida por Geraldo Caliman, foi criada em 2008, portanto com 14 anos de atuação. O objetivo é “o estabelecimento de um centro de excelência na geração de conhecimentos sobre juventude, em perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar, associando o ensino de graduação, pós-graduação, a pesquisa e a extensão”, conta Caliman. No cerne da cátedra permanece o Observatório, com uma rede de 17 universidades e organizações da sociedade civil, locais e internacionais.
Os recursos vêm dos projetos dos professores associados. “Como a Cátedra não se constitui em uma estrutura, mas em uma rede, mais importante que obter recursos próprios é o fato de se alinhar em sintonia com vários pesquisadores que atuam com objetivos comuns.” Caliman menciona que vem observando o aumento de pedidos de novas cátedras por parte de várias universidades. “Acredito que novas propostas de cátedras se dão porque as redes de produção do conhecimento se reproduzem com mais facilidade em tempos de difusão das novas tecnologias na educação.”
A Unesco favorece a publicação dos livros resultantes das pesquisas. “No nosso caso, temos aproximadamente 70 livros já publicados; boa parte deles financiada pela Unesco Brasília. A maioria deles nos últimos sete anos.Eamaior parte dessas publicações são em open access: podem ser baixadas do nosso site, cátedra.ucb.br.
A agência da ONU para Refugiados (AC-NUR) é outra entidade que estabelece parcerias com as universidades para a realização de cátedras. A ACNUR reúne 35 IES brasileiras, entre públicas e privadas, na Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM). A sensibilização da comunidade universitária em torno da questão dos refugiados não só produziu pesquisa, mas também resultou na matrícula de 496 pessoas na condição de refugiado ou solicitantes dessa condição, entre 2021 e 2022. Essa inclusão se deu nos âmbitos da graduação, com 470 matriculados, além de 18 ingressos no mestrado e oito no doutorado.
Esta reportagem sobre o crescimento das cátedras é capa da edição 272 da revista Ensino Superior.