Inovação

Colunista

Marina Feferbaum

Coordenadora do CEPI e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP

Por que devemos ensinar ética no ensino superior

Há, para além da ética profissional, uma ética da cidadania e da vida pessoal, segundo a qual nos responsabilizamos

ética Foto: Shutterstock

Por Marina Feferbaum e Guilherme Forma Klafke*: Não é novidade que se deve ensinar raciocínio ético no ensino superior, ainda que a proposta pareça pouco difundida na prática. Na origem das universidades, discussões sobre o que é certo e errado eram centrais, preservando-se e difundindo-se conhecimento sobre ética. Atualmente, seja por conta de uma proposta de ensino mais técnico e voltado a conteúdo e às exigências do mercado, seja pela falsa percepção de que não é possível ensinar essa competência, notamos que se perdeu um pouco a dimensão da importância de pautar noções éticas para os estudantes.

Não estamos, claro, fazendo referência à ética dos códigos profissionais, como aquela presente nos códigos de ética da advocacia (Código de Ética e Disciplina da OAB), dos médicos (Código de Ética Médica) ou dos desenvolvedores de software (Código de Ética e Conduta Profissional da ACM). Embora sejam tratados de maneira mais conteudista nos programas de graduação, ainda assim estão presentes no currículo. Falamos da ética no sentido mais amplo, que fornece diretrizes para enfrentar dilemas de difícil solução.

Há, para além da ética profissional, uma ética da cidadania e da vida pessoal, segundo a qual nos responsabilizamos e tomamos melhores decisões na nossa vida e em sociedade. Um profissional da medicina deve, claro, saber o que é certo e errado em sua profissão. Mas fora do consultório a pessoa também tomará decisões que podem impactar outras. Ainda que essa ideia de “certo e errado” seja vista cada vez mais como relativa, temos a obrigação de refletir e decidir nossas vidas guiados por uma ética.

 

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Não existe, contudo, uma única abordagem para a ética. Há quem defenda que devemos nos pautar pelos resultados de nossas ações, como os consequencialistas. Outros defendem que devem seguir um sistema de valores e deveres, como previsto na ética kantiana. E há quem sustente que devemos cultivar virtudes que nos tornem capazes de tomar decisões certas ainda que não haja deveres aparentes, como defendia Aristóteles. 

O conteúdo e a reflexão ética devem, portanto, ser problematizados e ensinados de maneira transversal sempre que possível, para que nossos estudantes se tornem cidadãos e cidadãs que tomem decisões responsáveis. Como docentes, precisamos fazer os estudantes desenvolverem a noção de que há diversos sistemas de valores e variadas éticas, com impactos distintos a diferentes grupos sociais.

Há duas razões para isso: primeiro, para despertar a consciência da pessoa sobre as consequências das suas escolhas e posições para o indivíduo, o profissional e a sociedade que queremos construir. Veja-se o campo de estudo da bioética. O que profissionais de saúde devem fazer quando tratam alguém incapaz de dar consentimento? Quando interromper um tratamento optando por cuidados paliativos em detrimento de uma baixa chance de cura? Ou, ainda, o que fazer quando há conflito da religião em relação a um menor de idade testemunha de Jeová que necessita transfusão de sangue no hospital? Comitês de bioética contribuem para respostas a essas questões segundo uma ética do dever – o que médicos devem fazer?

 

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A segunda razão é possibilitar que a pessoa esteja apta a identificar um dilema ético e tenha instrumentos para agir, enfrentando de maneira crítica essas situações que aparecerão em seu caminho. Essa necessidade surge, por exemplo, como consequência da emergência de uma sociedade orientada por um estado permanente de inovação, que cria a todo instante questões éticas. Ilustrativa é a possibilidade de indução inconsciente de comportamento a partir de sofisticadas análises de dados. A evolução da ideia de privacidade na proteção de dados pessoais e da qualificação do consentimento são apenas dois desdobramentos dessa realidade.

Ensinar, então, não apenas o conteúdo, mas também a capacidade de refletir eticamente significa preparar essas pessoas para lidar com as inevitáveis decisões que terão que tomar em suas atividades profissionais, em sociedade e em sua própria vida. Dada a complexidade das questões, não basta inserir ou acrescentar uma disciplina específica de alguns créditos. Isso seria pouco significativo, uma vez que conceito e aplicação estariam separados. É fundamental que o aprendizado seja concreto na realidade dos demais conteúdos programáticos, atravessando questões de diversas naturezas e pautados por uma abordagem ética – como, por exemplo, a ética dos deveres (deontológica).

Ao longo do curso, devemos, portanto, guiar os estudantes para desenvolverem a capacidade de determinar quais são os valores-guias e como aplicá-los, conciliando os diversos deveres da profissão e o exercício da cidadania. Não há, portanto, outro caminho que não o de considerar a ética como um conteúdo transversal no currículo universitário.

 

Os autores

 

Marina Feferbaum: coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP, onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação.

Guilherme Forma Klafke: professor da pós- graduação lato sensu da FGV Direito SP, onde também é líder de projetos no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI).

 

Por: Marina Feferbaum | 23/02/2023


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