NOTÍCIA
Com bastante frequência, o terceiro setor extrai e armazena dados das comunidades que supostamente atende.
Publicado em 20/02/2023
Por Nithya Ramanathan, Jim Fruchterman, Amy Fowler e Gabriele Carotti-Sha/SSIR Brasil: O terceiro setor tem por objetivo empoderar comunidades com ferramentas e conhecimento para que realizem mudanças por conta própria, uma vez que as chances de fomentar impacto de longa duração são maiores quando as mudanças são promovidas pela própria comunidade e não por tentativas externas. Esse compromisso deve incluir os dados, algo cada vez mais fundamental para gerar impacto social. Atualmente, a implementação efetiva e a melhoria contínua dos programas sociais exigem a coleta e a análise de dados.
Contudo, muitas vezes, os profissionais do terceiro setor, incluindo pesquisadores, extraem dados de pessoas, comunidades e países de acordo com seus próprios interesses sem sequer os disponibilizar para esses grupos muito menos permitir que eles tirem suas próprias conclusões a partir dessas informações. Os dados fortalecem a capacidade de tomar decisões fundamentadas.
É, portanto, contraproducente, e extremamente irônico, o fato de ignorarmos nossos princípios básicos no que diz respeito aos dados. Vemos financiadores e profissionais importantes tomar atitudes genuínas para decolonizar o apoio que fornecem. Porém, se estamos realmente comprometidos em romper com o colonialismo das práticas assistenciais, então devemos também avaliar a propriedade e o fluxo de dados.
Decolonizar dados não ajudaria apenas a garantir que seus benefícios fossem acumulados diretamente pelos legítimos donos, mas, também, abriria um intercâmbio de dados promovido por eles: as comunidades que alegamos empoderar.
Em seu livro de 2009, The Costs of Connection (O custo da conexão, em tradução livre), Nick Couldry e Ulisses Mejias aplicam o termo “colonialismo de dados” para práticas de extração de dados que repetem ou copiam práticas colonialistas históricas de extração natural de recursos e que fortalecem o paradigma colonial de exercer autoridade sobre os povos nativos no que diz respeito à tomada de decisão.
Algumas das referências mais antigas ao colonialismo de dados que encontramos vêm de comunidades indígenas que há muito lutam contra a extração e a exploração rentável da sabedoria local por parte de terceiros. Hoje em dia, o Urban Indian Health Institute (Instituto de Saúde Urbana), centro de pesquisa da área de saúde localizado em Seattle, nos Estados Unidos, é uma das organizações que trabalha para “decolonizar dados para os povos indígenas e pelos povos indígenas”.
Observamos o colonialismo de dados tanto no setor empresarial como em organizações de desenvolvimento. A definição — ainda em construção — de colonialismo de dados que empregamos é a da prática de reivindicar a propriedade de dados produzidos por outrem e para outrem, apropriando-se da maior parte do valor desses dados. Enquanto realizávamos pesquisas exploratórias na África para um novo empreendimento tecnológico-social, Jim Fruchterman, coautor deste artigo, entrevistou um líder local da região do Lago Naivasha, no Quênia, que comentou a falta de acesso aos dados do ecossistema, um dos mais estudados no Vale do Rift africano. Segundo o líder, informações sobre clima, uso de água, e produtividade, ou sobre as análises deles resultantes ficavam trancados em bases de dados de universidades, ONGs internacionais, empresas ou de agências públicas, sendo, em geral, inacessíveis ou inatingíveis.
De acordo como nossa experiência, o colonialismo de dados apresenta ao menos três consequências negativas.
Primeiro, gera decisões de baixa qualidade. Como as análises ocorrem sem o envolvimento da comunidade, o colonialismo de dados leva a conclusões que são, muitas vezes, distantes da realidade local e das perspectivas e dos interesses dos legítimos donos dos dados.
Depois, desempodera. O colonialismo de dados tira o poder de tomada de decisão do país ou das comunidades diretamente impactadas. Por exemplo, um líder africano que trabalhava no ministério da saúde de seu país revelou sua frustração e humilhação quando, participando de um congresso, viu pela primeira vez os dados sobre seu país serem apresentados por um pesquisador que havia ido até lá para realizar um estudo. Além do pesquisador assumir todo o crédito por esse trabalho, os tomadores de decisão de seu país foram privados da oportunidade de usar os dados para se orientar — e defender tal escolha — no caminho a ser seguido a partir dali.
Em terceiro lugar, apropria-se dos recursos de maneira indevida. As análises de dados são frequentemente usadas para determinar como e para onde circula o dinheiro. Por conseguinte, o colonialismo de dados elimina os legítimos proprietários dos dados no momento em que os financiadores e tomadores de decisão alocam capital e outros recursos. Por exemplo, programas de saúde de larga escala têm sido determinados, historicamente, pela incidência ou prevalência de dados, com grandes somas de dinheiro entrando e saindo das comunidades com base nos dados que elas não coletaram nem ajudaram a contextualizar apropriadamente. Mecanismos como financiamento baseado em resultados podem usar dados para justificar a retenção de fundos de uma região ou de um programa, efetivamente punindo as comunidades com base em análises das quais não participaram.
Tradicionalmente, práticas coloniais extrativistas tendem a focar em recursos naturais finitos tais como petróleo ou diamante. As quantidades limitadas e a demanda por esses recursos aumentaram seu valor. Porém, diferente do petróleo, dados podem ser replicados e compartilhados sem custo. Então, por que agimos como se fossem algo escasso?
No setor privado, as empresas mantêm a maior parte de seus dados em sistemas fechados porque ser o único proprietário da informação é cada vez mais a base de sua vantagem competitiva. As grandes empresas de tecnologia são progressivamente incentivadas a possuir e a angariar dados dos demais, e os enormes bancos de dados proprietários são uma gigantesca fonte de riqueza por elas acumulada.
Dados não são um recurso finito no setor de impacto social; ainda assim, agimos como se fossem. Nós acreditamos ser essa tendência reflexiva, em vez de uma intenção insidiosa de reprimir comunidades, que sustenta o colonialismo de dados atualmente. Compartilhar dados aceleraria o impacto comum, alinhando incentivos e evidenciando soluções que realmente funcionam. Compartilhar conjuntos de dados agregados e anônimos pode levar clareza a ambientes complexos com base em ideias compartilhadas para agir em prol da melhoria continuada dos sistemas existentes.
Por exemplo, em 2017, líderes de saúde se reuniram em Moçambique para discutir dados do desempenho de refrigeradores de vacinas que o ministério da saúde local estava coletando por meio da utilização de sensores que funcionavam em tempo real. O ministro da saúde da Tanzânia estava pensando em comprar alguns refrigeradores semelhantes. Assim, Moçambique compartilhou os dados de desempenho do refrigerador com o país vizinho. Essa atitude tão simples ressalta a situação complicada de muitos países cujos dados pertencem a terceiros (geralmente empresas) e que, portanto, não podem se ajudar ou ajudar seus vizinhos dessa forma.
É claro que nem todos os dados devem ser disseminados ou compartilhados abertamente. Dados de testemunhas de direitos humanos, relatórios sobre abuso de menores, registros médicos e status de HIV são todos exemplos de informações confidenciais que não devem ser compartilhadas. Nós nos referimos a dados que podem ser usados de maneira responsável e mais abrangente, como aqueles sobre equipamentos e infraestrutura, eficácia de programas, eficiência de remédios ou o uso do solo, por exemplo.
Os dados não devem mais ser extraídos ou capturados de países e comunidades. Se nós do terceiro setor queremos realmente nos envolver em sistemas de mudança em parceria com comunidades ao redor do mundo, precisamos estender essa parceria até o domínio do recurso mais durável atualmente: os dados. Nós propomos os quatro seguintes princípios acerca de propriedade, privacidade, compartilhamento, consentimento e apropriação do uso de dados como orientação para a decolonização de dados e para transferir o poder para as comunidades de onde são coletados.
Primeiro, os dados devem ser de propriedade das comunidades e dos países onde são coletados. Decisões sobre uso, análise, acesso e interpretação de dados devem ser conduzidas por esses legítimos donos que devem ter as ferramentas e os recursos para interpretá-los e agir com base neles. A Gavi, Aliança de Vacinas, é pioneira e líder dessa mudança, insistindo em afirmar que os países são os proprietários de seus próprios dados, e reiterando que o princípio de propriedade do país deve ser aplicado aos dados produzidos pelos refrigeradores de vacina.
Em segundo lugar, os legítimos proprietários devem determinar quais dados deveriam permanecer privados. Esse princípio vai além da proteção de informações de identificação pessoal, algo que, cada vez mais, é regulado nacionalmente. Pode incluir informações confidenciais que a comunidade deseja proteger, tais como a localização de resíduos de recursos naturais ou antiguidades.
Em terceiro, os dados devem ser compartilhados apenas mediante consentimento expresso, para que seu valor seja significativo. Os dados são valiosos por sua capacidade de serem usados para um aprendizado rápido. O compartilhamento de dados, quando feito de uma maneira que não aumenta o risco para ninguém ou nenhuma comunidade, reforça nossa capacidade de maximizar o valor daquele dado para seu legítimo proprietário, bem como para o setor de impacto social. Neste contexto, consentimento e valor significativos derivam do respeito pelos legítimos donos dos dados — honrando suas regras culturais, garantindo a priorização de seu aprendizado e uso, e colocando o controle diretamente em suas mãos. Quando implementado dessa forma, esse princípio deve incentivar uma verdadeira troca de valor no compartilhamento de dados, em vez da expropriação.
Em quarto lugar, os dados não devem ser punitivos. O mundo moderno usa os dados para aprender e aprimorar, e esse uso exige dados de qualidade. Dados que são usados para punir criam incentivos perversos para gerar dados falsos que evitem punições, o que nega o valor dos dados para a aprendizagem e para o impacto.
Afastar-se do colonialismo de dados não é uma transição fácil. Nós admitimos a humildade, a introspecção e o comprometimento necessários para identificar e eliminar o colonialismo de dados em todos os nossos trabalhos. Se pudermos fazer essa mudança, seremos capazes de fortalecer a ação coletiva e de ajudar a garantir que os benefícios dos dados sejam acumulados direta e imediatamente por pessoas e lugares de onde são coletados. Esse é o propósito da decolonização de dados, e, também, um valor central do setor de impacto social.
Nithya Ramanathan é cofundadora e CEO da Nexleaf Analytics, uma empresa sem fins lucrativos do setor de tecnologia que realiza parcerias com diferentes países para garantir que eles tenham os dados necessários para a criação de soluções duradouras que melhorem a saúde das pessoas.
Jim Fruchterman é fundador e CEO da Tech Matters, organização sem fins lucrativos do setor de tecnologia que desenvolve plataformas tecnológicas para ajudar organizações do terceiro setor a colaborar e a resolver problemas sociais ou ambientais.
Amy Fowler é diretora de programas de vacinas da Nexleaf Analytics, orientando as estratégias para os esforços globais da Nexleaf que têm por objetivo melhorar a visibilidade das cadeias de frio das vacinas. Anteriormente, ela passou quase uma década na Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) em diversas funções voltadas para os sistemas de saúde.
Gabriele Carotti-Sha estuda o potencial da inovação tecnológica voltada para o desenvolvimento econômico. Atualmente, produz o Tech Matters Podcast, que se concentra na interseção entre tecnologia e empreendimento social.