ARTIGO
Escritor analisa a necessidade de inovação nas instituições de ensino superior à luz das mudanças tecnológicas e do mercado educacional e centra o foco no principal elo dessa cadeia: o aluno por Camila Viegas-Lee, de Nova York Desde o surgimento de faculdades com fins lucrativos e a propagação de cursos em massa pela internet
Publicado em 19/12/2022
Desde o surgimento de faculdades com fins lucrativos e a propagação de cursos em massa pela internet, o ensino superior entrou numa encruzilhada. Assim como no Brasil, alguns especialistas nos Estados Unidos dizem que as universidades americanas estão enfrentando um período de “inovação desestabilizadora” (ou disruptive innovation, como foi cunhado o termo em inglês). A ideia é que tecnologias novas e filosofias diferentes podem varrer as instituições estabelecidas se elas não romperem com seus velhos paradigmas e se adaptarem nos próximos anos.
Nos EUA está cada vez mais difícil encontrar manchetes otimistas sobre o ensino superior – e isso se aplica a todo tipo de instituição. O apoio do Estado às instituições públicas está cada vez menor, forçando cortes orçamentários e aumentos nas taxas de matrículas. Instituições privadas que antigamente contavam com mais recursos já não podem esperar o mesmo retorno de seus investimentos. E faculdades com fins lucrativos continuam a ser um enigma: será que vai haver mais regulamentação para relegá-las à margem da indústria? Ou será que tornarão o campus universitário tão anacrônico como alugar um vídeo numa locadora ou retirar um livro na biblioteca?
Para discutir os possíveis caminhos para o setor, a revista Ensino Superior conversou com o escritor Henry J. Eyring que, ao lado de Clayton Christensen, publicou o livro The innovative university: changing the DNA of higher education from the inside out (Jossey-Bass, 2011). Ainda sem tradução para o português, o livro propõe uma mudança profunda no ensino superior, uma ação que deve ser operada de dentro para fora. O tema serve de inspiração para a 15ª edição do Fórum Nacional do Ensino Superior Particular (Fnesp), que será realizado nos dias 26 e 27 de setembro, em São Paulo.
Na entrevista a seguir, Eyring indica maneiras inteligentes para que as faculdades consigam se adaptar às mudanças atuais, pensando especialmente na formação dos alunos. “Não basta ensinar conteúdo. É preciso ensinar alunos a estudar”, comenta.
Henry Eyring: Universidades com fins lucrativos sofrem a tentação de maximizar o lucro a qualquer preço. Ainda que haja ressalvas, isso ocorre nos Estados Unidos e provavelmente também no Brasil. Entre 2008 e 2010, as instituições americanas com fins lucrativos ganharam muito dinheiro. Seus investidores viram os preços de suas ações subirem porque era fácil admitir estudantes com financiamento do governo federal sem se preocupar se eles estavam preparados ou se iam terminar o curso. Vimos essa bolha estourar e essas instituições fracassarem na ampliação da formação. Então os gestores perceberam que é preciso dar um passo atrás e decidir quais os alunos que podemos servir melhor – e dessa maneira nos certificar de que esses alunos estão bem preparados para os cursos que criarmos. Os gestores se importavam demais com a classificação de sua faculdade em Wall Street e aprenderam que o sucesso a longo prazo depende de servir bem seus alunos-alvo.
Mais difícil de recuperar são as faculdade que não têm fins lucrativos, porque tendem a competir com instituições semelhantes por prestígio. Viajei ao Brasil várias vezes. E visitei as Universidades de São Paulo e Brasília. Não há uma classificação, mas a hierarquia é clara. Se você entrar na USP, é claro que tem de ir para a USP. Se você conhecer Harvard, Stanford ou o MIT, nem pensa duas vezes para estudar lá. Isso cria uma competição prejudicial especialmente para as instituições que estão forçando seus recursos para ser mais como as de elite. Meu conselho é parar de querer competir com a USP e pensar em que tipo de estudante você está mais bem posicionado para servir. Concentre-se nos alunos e atenda as necessidades deles. Só assim é possível virar o número 1 aos olhos de quem importa e no coração dos alunos. E então você terá muito mais chance de sucesso.
Uma das coisas mais interessantes do momento são os Moocs [Massive Open Online Courses, ou cursos abertos massivos on-line]. É emocionante ver o potencial da educação on-line. Ao invés de ver os Moocs como competidores, os gestores de faculdades tradicionais deveriam vê-los como uma grande oportunidade. É possível usar o ensino em massa para crescer. Basta aceitar os créditos dos cursos introdutórios de matemática ou ciências, por exemplo, e admitir um maior número de alunos direto no terceiro ano. Os gestores de instituições tradicionais ficam na dúvida, não querem crescer muito para não perderem prestígio. Mas deveriam esquecer essa palavra e confiar no fato de que há ótimos alunos lá fora com grande potencial de sucesso.
Essa é uma questão interessante e é por isso que a teoria do Clay [Christensen] é tão poderosa. Tecnologias desestabilizadoras sempre parecem inferiores, pelo menos no início. Elas parecem ser o tipo de coisa pela qual só um não consumidor se interessaria. Pensem na introdução de automóveis japoneses nos EUA na década de 1960. Ou no lançamento do primeiro Apple 2, de Steve Jobs e Steve Wozniak. O computador era literalmente considerado apenas um brinquedo. É importante lembrar de duas coisas. A primeira é que a tecnologia melhora. Essa é a natureza da tecnologia. Computadores sempre melhoram. As inovações que deram certo são preservadas e as que não funcionam são redesenhadas. Portanto, é de suspeitar que o ensino on-line vai se aperfeiçoar. A segunda coisa para ter em mente é que crianças crescem. Então os nerds do ginásio se acostumaram com os Apple 2 e se tornaram ricos e sofisticados consumidores da Apple, que de repente se tornou a empresa mais quente no mundo. A mesma coisa vai acontecer com os Moocs. Instituições tradicionais americanas como Harvard, Stanford e MIT já reconheceram sua importância.
Não basta ensinar conteúdo. É preciso ensinar alunos a estudar. Um professor famoso escreve um livro e nós, tradicionalmente, mandamos nossos alunos ler e ouvir palestras sobre o tema. Então os exames testam a capacidade dos alunos de decorar o livro, e assim que terminam as provas, esquecem tudo. Aí têm de fazer um curso para tentar relembrar o conteúdo para poder passar no BAR, por exemplo [teste semelhante ao exame da OAB] e no final não sabem nada sobre o exercício da advocacia. Isso remonta à ideia de se tornar o número um dos seus alunos. É preciso pensar no conteúdo acadêmico que se quer transmitir, para onde vão os alunos e como prepará-los para o futuro. Há toda uma mudança de currículo em torno disso e acho que essa é uma das razões pelas quais os Moocs são bem-sucedidos. Os estudantes formam comunidades, discutem assuntos em grupos e aprendem uns com os outros. O próprio processo de aprendizado tem um aspecto mais real para o estudante. Essa é outra vantagem do ensino on-line.
Sou otimista e acho que as inovações estão ocorrendo numa velocidade encorajadora. Meu amigo Eric Mazur, um talentoso professor de física de Harvard, mudou seu estilo de dar aula. Ele tem encorajado o que chama de instrução pelos pares, em que os alunos ensinam uns aos outros. Ele também criou um sistema, hoje administrado pela Pearson, que permite acessar a aprendizagem dos alunos e se adaptar para ajudá-los a aprender de forma mais eficaz. Há exemplos maravilhosos de inovação. Basta saber se os gestores de universidades ou o corpo docente terão a liberdade acadêmica para adotar essas inovações. Ou se vão resistir. A resposta provavelmente vai variar de uma instituição para outra, mas acho que, em geral, há uma boa razão para ser otimista e acreditar que essas mudanças provocarão um grande florescimento do ensino superior.
Você basicamente tem de fazer do crescimento seu amigo. Uma empresa em crescimento tende a ser mais rentável porque é possível escalar economias. O problema é que o ensino superior está preocupado demais com o prestígio e não consegue escapar do modelo “tijolo e argamassa”. Se o orçamento é cortado, normalmente se reduz o número de alunos. Essa é a espiral da morte. Mas se o gestor tiver a coragem de não se importar com o que a elite pensa a respeito da sua instituição – pelo menos não com base no número de alunos –, vai conseguir contornar a crise. É preciso encontrar maneiras de servir um maior número de alunos sem a construção de novos edifícios para poder crescer de forma rentável. Uma faculdade pode ser economicamente mais eficiente em larga escala. Um gestor poderia, por exemplo, decidir que o corpo docente se dedicasse em tempo integral aos cursos de 3o e 4o anos, enquanto os cursos básicos de 1o e 2o anos seriam feitos on-line. E podemos até cobrar uma pequena taxa para aplicar o crédito on-line na faculdade. Isso será o suficiente para acrescentar alunos, ganhar mais dinheiro e ter mais estudantes matriculados nos 3o e 4o anos. Essa é uma maneira de se tornar mais rentável e servir um maior número de alunos. Todos os países do mundo precisam de mais gente graduada no ensino superior. Todo mundo ganha com isso.
Outra coisa que os gestores de universidades podem fazer é estimular o corpo docente mais inovador. Peter Drucker (empresário norte-americano de meados de 1900) disse que liderar inovação é uma questão de alimentar as oportunidades e matar os problemas de fome. Então, ao invés de mudar tudo ou simplesmente eliminar o que não funciona e apresentar novas iniciativas que, na sua visão, serão mais eficazes, achando que é isso é sinal de proatividade, o gestor deve aumentar os recursos de quem já esteja fazendo coisas interessantes e diminuir recursos de áreas dominadas por um modelo antiquado, onde não é possível encontrar novidade. Isso porque no ensino superior, em que professores têm cátedra, as coisas devem ser feitas com mais cautela. Mas lembre que as pessoas apreciam o valor das inovações. Se você der tempo ao tempo vai ver que a maioria das instituições serão capazes de se adaptar mais rapidamente do que se imagina.
A última e provavelmente mais importante de suas sugestões é trazer de volta os valores pessoais ao ensino superior. Professores acadêmicos são valiosos pelo que representam: sinceridade, integridade, trabalho duro, dedicação à comunidade, compaixão. Quanto mais eles puderem injetar esses valores em suas aulas, mais seguros se tornarão contra a competição desestabilizadora e melhor será o nosso mundo. Como motivar para isso?
Meus professores de faculdade exerceram algumas das maiores influências na minha vida. O tipo de pessoa que escolhe o ensino superior é, em relação à população geral, não só excepcionalmente inteligente, mas também socialmente consciente, com grande capacidade de compaixão. São pessoas que trocaram os salários maiores de outras carreiras para se dedicar ao conhecimento e aos alunos. São pessoas que se preocupam com pessoas. O paradoxo é que as bolsas de estudo acadêmico tendem a descontar valores morais. Um estudioso precisa ser imparcial, basear-se apenas em fatos e não ter juízos de valor. Há uma razão para isso: a ciência avança na base de fatos. Mas se perde, pelo menos nos EUA, a compaixão de generosos professores que podem sugerir uma vida que vai deixar o estudante mais feliz a longo prazo. Eles têm toda essa riqueza de julgamento e valores morais suprimidos pelo ambiente acadêmico. Então, eu tento lembrar meus colegas de que a maioria das coisas que se aprende na faculdade é valiosa para toda a vida. Essas coisas não estão num currículo formal e não estão sujeitas a julgamento científico: compaixão, criatividade, consciência social. É difícil medir isso, mas é muito valioso. Se as faculdades vão sobreviver na competição com cursos cada vez mais informatizados, tenha certeza de que será por causa dessa dimensão humana. Não é difícil estimular os professores a fazer isso porque essa é sua inclinação natural.
por Camila Viegas-Lee, de Nova York