A pressão das redes sociais pede que as escolas aprimorem seus mecanismos de escuta da comunidade. A transparência é um dos pilares da área multidisciplinar chamada gestão de crises
Publicado em 23/11/2022
Acusações de racismo e bullying, protestos contra o suposto proselitismo político dos docentes, ameaças de violência física, denúncias de assédio e até mesmo a ocorrência de grandes tragédias, como a de alunos que atentam contra a própria vida. O noticiário de educação nos últimos meses se distanciou dos conteúdos pedagógicos para retratar uma nova face da vida escolar que vem atemorizando diretores, professores, alunos e famílias – a difusão instantânea de fatos que, comprovados ou não, abalam as relações com as famílias. Por isso, ao seu repertório de desafios, os gestores e gestoras precisam também desenvolver competências para gerir crises avassaladoras, viralizadas pelas redes sociais, das quais ninguém está livre.
É possível se preparar para isso? A resposta é sim. Em outros segmentos econômicos, a gestão de crises sempre fez parte das estratégias internas, da comunicação à alta direção. É o caso das companhias aéreas, que precisam dar explicações às famílias, às autoridades, à sociedade e à imprensa quando ocorrem acidentes.
Mas no mundo das escolas a administração de eventos inesperados sempre foi tratada de forma interna e até sigilosa – até que chegaram as redes sociais e os aplicativos de mensagem como o WhatsApp. Da noite para o dia, a postagem de uma denúncia pode romper fronteiras até mesmo internacionais, o que traz uma complexidade inédita ao desafio.
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Os casos se multiplicam em todas as regiões e ganharam tonalidades ainda mais fortes no período eleitoral, quando as disputas políticas polarizadas contaminaram o ambiente escolar e levaram até a manifestações de rua e porta das instituições, como aconteceu em escolas tradicionais e catarinenses. Mais recentemente, o fenômeno ganhou a configuração de uma onda em Curitiba, onde alunos de três diferentes escolas envolveram-se em ações do que foi chamado de ‘bullying político’, com postagens ameaçadoras nas redes sociais e perseguições a quem, a seu ver, se alinhava com o partido vencedor do pleito.
Não se trata de julgar se as redes sociais são ou não nocivas. Em muitas perspectivas, ao democratizar a possibilidade de expressão, as escolas são empurradas a se atualizarem em relação aos direitos e aos costumes. Da mesma forma, possibilitam denúncias que muitas vezes ficariam ocultas no silêncio das salas de direção. Assim também, nem sempre as informações incorretas são geradas ou difundidas intencionalmente.
Mas, é inegável, da mesma forma que as novas formas de comunicação criaram um novo universo, em que versões verdadeiras ou falsas, úteis ou oportunistas, se misturam e viralizam – fazendo terra arrasada em comunidades baseadas em relações de confiança, como é o caso das escolas, inclusive dificultando as chances de posicionamento e defesa de todas as partes envolvidas.
Para o pesquisador Felipe Soares, que realiza seu pós-doutorado na Toronto Metropolitan University estudando o impacto das teorias conspiratórias e da desinformação no mundo digital, muitas vezes as redes sociais se prestam à destruição da confiança. Segundo explica, a desinformação pode ter o objetivo de gerar o discurso do ‘nós contra eles’.
“Esse tipo de antagonismo acaba influenciando a comunidade escolar. E isso se dá tanto na relação entre alunos e alunos, quanto na relação entre alunos e professores”, explica o pesquisador.
O efeito que isso causa é o da desestabilização. “Quando a desinformação toma conta de uma comunidade, menos os membros dessa comunidade percebem o que têm em comum uns com os outros. Dessa forma, o potencial desagregador é enorme, inclusive nas instituições de ensino”, diz Felipe.
Outro aspecto que torna o fenômeno complexo é que, pelo menos até o momento, as escolas não sabem o que fazer para educar as novas gerações para o uso crítico e consciente das novas possibilidades de comunicação, seja para se informar, seja para produzir informação. É o que os especialistas chamam de literacia informacional ou educação midiática. Se isso é assim no ambiente mais característico da escola, a sala de aula, o que dizer da formação das famílias e dos professores? Na expressão da escritora Januária Alves, pesquisadora e autora de Como não ser enganado pelas fake news (ed. Moderna), é preciso cuidar de todo o ecossistema informacional.
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Com essa expressão, Januária define o espaço virtual composto por todos os que acessam e utilizam as redes sociais e a internet. “Portanto, todos fazemos parte dele. Envolver as famílias no processo de educação midiática é fundamental porque as crianças e jovens são educadas também pelo exemplo. Sem falar que os adultos também estão aprendendo a usar essas mídias, portanto, todos nós precisamos ser midiaticamente educados”, explica.
Os mais jovens demonstram cada vez maior dificuldade em separar o que é fato e o que é opinião – o ponto básico de toda proposta de educação midiática. O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) de 2018 mostrou, segundo Januária, que menos de um em cada 10 alunos dos 80 países avaliados foi capaz de fazer essa distinção.
Trata-se de uma discussão essencial, que chega em um momento em que as escolas têm os olhos voltados para outras demandas regulatórias, como a implantação da reforma do ensino médio. Mas, como fechar os olhos para um mundo, segundo dados de 2020, em que 41 milhões de mensagens são trocadas a cada minuto, via WhatsApp, e 347 mil novos stories são postados no Instagram? Há um longo caminho a percorrer, e, enquanto isso, os acontecimentos atropelam a realidade da educação.
É o que diz o diretor de uma grande escola particular do Centro-Oeste do país – que, como todos os demais que passam por essa experiência, não quer ser identificado. Da noite para o dia, passou de defensor da pluralidade para defensor de um dos candidatos à presidência, simplesmente por uma palavra interpretada erroneamente por um influenciador digital. “Isso é algo muito sério, tão grave que precisa ser discutido imediatamente por todas as escolas”, conta o gestor.
Se há razões para o medo contra as acusações infundadas – como a de assédio sexual que destruiu a Escola Base e seus diretores, nos anos 1990, e agora será tema de um documentário que entra em cartaz na Globoplay –, também é verdade que o poder das redes sociais vem estimulando que as escolas aprimorem seus mecanismos de transparência, de escuta e de resposta à comunidade. Esse é um dos pilares da área multidisciplinar chamada gestão de crises para a qual todos precisam estar atentos.
Segundo a relações públicas Erika Pessôa, diretora de uma agência especializada no tema, um dos marcos dos problemas vividos pelas escolas foi a pandemia – a partir desse momento, diz, os casos se multiplicaram. Isso levou a dois movimentos, acredita Erika. “Até pelo novo perfil das relações entre as escolas e as famílias durante e no pós-pandemia, as escolas passaram a demonstrar atenção maior para prevenir a tensão com os pais, mesmo nas menores coisas”, acredita.
“Da mesma forma, as escolas ficaram muito vulneráveis, diante das possíveis queixas das famílias, que imediatamente se tornam públicas e são replicadas”, diz.
Segundo a especialista, contribui com o cenário a difusão dos valores chamados ‘politicamente corretos’, que passam a ser cobrados pelos alunos e também por seus pais, bem como o avanço da consciência de direitos por todos, inclusive crianças e adolescentes – o que, evidentemente, é positivo. “Hoje, não é mais admissível brincadeiras que um dia pareciam normais, como elogios inapropriados, tapas e outros gestos”, lembra.
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Erika vem auxiliando muitas escolas a enfrentar crises, que na maioria das vezes partem de tendências globais. Há pouco tempo, por exemplo, o movimento Exposed estimulou jovens mulheres a acusar publicamente pessoas que um dia possam tê-las assediado. No Brasil, isso gerou também uma onda de denúncias contra professores, durante a pandemia. “Conheci uma escola, no Distrito Federal, que demitiu todos os professores homens por causa disso”, conta.
Em outro estado, dessa vez no Nordeste, foi a vez de uma instituição com milhares de aluno se ver atropelada por denúncias semelhantes. Era fake news, mas o trauma que gerou produziu transformações profundas na forma de escuta das famílias, com a criação de um departamento específico para ouvir as críticas dos pais, o investimento em formação dos professores, regras de compliance, entre outras providências.
Erika orienta que muitas vezes as escolas precisam começar justamente por conversas com suas próprias equipes, tanto da esfera administrativa como da área pedagógica. O resultado foi um sentimento de orgulho dos professores por ver que a escola não quis esconder o problema, mas optou por enfrentá-lo. Para ela, essa é uma oportunidade importante gerada pelas crises. “Nada pode ficar sem resposta, mesmo que sejam milhares de mensagens e posts”, recomenda. Ela se lembra de uma escola em que passou toda a madrugada respondendo posts no Instagram para publicar o posicionamento de uma instituição de ensino.
Para a profissional, as escolas precisam amadurecer para processos de prevenção dentro do cotidiano escolar. “Fortalecer a cultura interna é o melhor antídoto contra crises”, diz. Outra providência importante é garantir formas de escuta imparcial.
“Sempre que acontece algo, há muita emoção envolvida, e as famílias precisam ser acolhidas de forma objetiva e sem expor aquele que denuncia”, acredita.
Da mesma maneira, as escolas precisam separar reclamações simples de fatos potencialmente geradores de crises. Como diz Erika, é necessário que os gestores e educadores fiquem mais atentos às mudanças na sociedade e estudem os grandes temas sociais. Por isso, temas como ações antirracistas, igualdade de gênero, diversidade precisam ser mais bem compreendidos pelos gestores.
Para o jornalista Claudio Stringari, diretor da agência Central Press, também especializado na gestão de crises, é importante compreender que nenhuma crise é igual a outra, o que significa dizer que cada uma vai exigir estratégias e respostas específicas. Para ele, que atuou em diversas instituições de ensino e é um dos autores do premiado Como agir em momentos de crise (ed. Positivo), é fundamental que as escolas ajam preventivamente.
Para Claudio, as redes sociais deram uma dimensão inédita para as crises vividas nas escolas. “Toda crise é difícil de controlar, mas agora tudo se tornou muito imprevisível”, diz. Por isso, a maior agilidade possível na resposta, no uso estratégico das mídias sociais e o dimensionamento correto da extensão da crise se tornam fatores essenciais. Em sua visão, o contexto atual torna ainda mais importante o trabalho preventivo.
“Agir quando a crise já está instalada deixa menos alternativas”, considera.
Na visão do jornalista, de forma geral esse movimento aponta para um avanço social em que as instituições se tornem mais prontas para o diálogo. Por isso mesmo, as instituições que demonstram mais dificuldade em administrar crises são as mais fechadas, uma vez que são menos flexíveis. “É preciso dialogar com aqueles que fazem parte da comunidade, não apenas os pais. Profissionais de outras áreas, educadores, alunos, comunidades, todos os que se relacionam com a instituição devem ser cuidados”, finaliza.
A reportagem de Paulo Camargo foi originalmente publicada na Revista Educação. Acompanhe outros conteúdos em revistaeducacao.com.br