NOTÍCIA
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 1981)
Publicado em 21/10/2021
A afirmação (acima) de Paulo Freire, cujo centenário celebramos no mês passado, suscita desafios bastante atuais à educação superior. A ressignificação do papel do educador, a proposta de comunidades de aprendizagem e a importância da consciência sobre o mundo para além dos livros e das salas de aula são alguns dos paradigmas educacionais que incentivam a renovação das práticas das instituições de educação superior no Brasil. Para os desafios atuais, uma das fronteiras mais férteis é da extensão universitária.
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Tradicionalmente, tem-se como objetivo da educação superior as formações acadêmica, profissional e social aos(às) seus(suas) estudantes, preparando-os(as) para o mercado de trabalho. Trata-se, portanto, de atividade estratégica ao desenvolvimento econômico e social do país. A educação superior deve, ainda, formar essas pessoas também para o exercício da cidadania.
Embora esses objetivos permaneçam, a sociedade sofreu enormes transformações, com destaque para a evolução do digital com o surgimento da infosfera. Como as formas de ensino-aprendizagem se baseiam na organização da sociedade, nas relações econômicas e de trabalho e nas dinâmicas que impactam diferentes grupos sociais, é natural que essas transformações também ocorram na educação com a mesma intensidade. Há tempos, a fórmula tradicional, baseada no roteiro preponderantemente disciplinarizado da grade curricular tradicional, vem mostrando esgotamento. Daí explorar outros terrenos autorizados pela regulação.
Na nova dinâmica social, cada vez mais mutante, instituições de ensino superior no Brasil e no exterior têm revisto muitas de suas premissas, incorporado inovações para endereçar realidades cada vez mais complexas. Surgem espaços abertos e flexíveis de aprendizagem, marcados pela autonomia e pela multiplicidade de agentes; a figura do professor-educador passa a ser aquela de facilitador de métodos de ensino mais ativos e significativos; o ensino mediado por tecnologias, tanto no presencial quanto no remoto, expande fronteiras e possibilita novas relações entre a universidade, os estudantes e seus objetos de estudo.
Fomentar o pensamento crítico, a inovação e a criatividade, formando profissionais capazes de trabalhar em prol do desenvolvimento científico, da inclusão social e da geração de trabalho e renda integram essas novas premissas. Trazer tudo isso para dentro do programa requer mais que a mera “boa vontade”. A transformação requer um processo, o qual deve passar, antes, por uma experiência concreta, uma vivência que estimule análise e reflexão, que construa seus paradigmas e internalize seus significados.
É aqui que entra a “mediação do mundo” proposta por Freire. Teorias de aprendizagem baseadas na experiência fundamentam-se no aprendizado como resultado das relações estabelecidas entre indivíduo e meio. A exploração de contextos distintos e a consciência sobre diferentes realidades por meio da experiência têm potencial de produzir reflexões que, por sua vez, informam a própria prática. Em outras palavras, a forma com que processamos os problemas e desafios enfrentados em situações concretas define as escolhas e decisões futuras, moldando a forma com que enxergamos e nos posicionamos perante aqueles problemas.
Essas premissas de ensino, embora não sejam novas, assumem posição de relevância na prática de ensino atual. A Declaração Mundial do Ensino Superior, elaborada na última conferência da UNESCO, endossa a vocação e a responsabilidade desse nível de educação, especialmente no que diz respeito à importância de oferecer um ensino interdisciplinar, com foco no desenvolvimento de habilidades e aptidões que preparem os indivíduos para uma atuação em conexão com a realidade.
Ainda, desde 2019, o ranking internacional Times Higher Education passou a avaliar as universidades em relação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos pela ONU. Isso reflete a crescente expectativa de que as instituições de ensino superior produzam impactos para além do ensino e da pesquisa. A extensão universitária é mais que adequada para conduzir essa agenda.
A Resolução N⁰ 07 de 2018 do MEC representa um marco importante no reconhecimento e na valorização da extensão como pilar fundamental da universidade. Nesta norma, a extensão universitária é entendida como um processo interdisciplinar, político educacional, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre instituições de ensino superior e sociedade. Trata-se do reconhecimento da relação dialógica permanente entre a instituição de ensino e sociedade, por meio da qual a universidade deve pensar e se refletir na sociedade.
A resolução também evidencia o caráter formativo da vivência interprofissional e interdisciplinar dos estudantes, possibilitado pelo contato com questões complexas contemporâneas do contexto social.
Nos termos da nova normativa, a extensão representa, portanto, o resgate da função social da universidade e o canal por meio do qual estudantes e jovens profissionais desenvolvem a ética e a interpretação do mundo, bem como consolidam sua prática em relação ao contexto social.
Para que a extensão atinja seu potencial de viabilizar a aprendizagem conectada à realidade e comprometida com a transformação da sociedade, as instituições de ensino devem considerar as seguintes premissas:
Ações extensionistas devem ser baseadas na observação ativa e na exploração dos contextos e questões específicas dos indivíduos, grupos e localidades com as quais pretende atuar. Nesse processo, pressupõe-se a abertura ao diálogo intercultural e à troca de conhecimentos (saber acadêmico e saber popular).
Relevância
Cada instituição de ensino deve identificar sua vocação e/ou sua experiência acumulada a fim de atuar naquelas temáticas e práticas nas quais tem expertise e em que sua atuação terá maior impacto.
Método
As iniciativas devem ser planejadas e oferecidas levando em consideração, de um lado, o processo no qual os estudantes se engajarão, e, de outro lado, a intervenção externa. Do ponto de vista da relação com a sociedade, não basta a mera disponibilização de conteúdos, desconectados das circunstâncias concretas e sem o acompanhamento por parte da IES. Já em relação aos impactos pedagógicos da experiência extensionista, é necessário que haja um cuidadoso planejamento das etapas de experimentação, conexão com teoria, reflexão e avaliação. Clínicas, laboratórios e iniciativas de Aprendizagem Baseada em Projetos e pesquisa-ação são exemplos dessas metodologias.
Por diversas razões, a extensão universitária é uma oportunidade regulatória a ser explorada pelos programas universitários. Por exemplo: é fluida, sem conteúdo e formato predefinidos, o que permite maior experimentação e, portanto, aberta a inovação; comporta pluralidade com maior facilidade, servindo a diferentes programas de diferentes áreas e níveis ao mesmo tempo; é facilmente alterável, seja para criação, seja para modificação, seja para extinção de atividades; lida diretamente com demandas da sociedade, eis que voltada a enfrentar questões concretas existentes além dos muros da escola; possui vocação multi e interdisciplinar, pois lida com a complexidade do mundo real.