NOTÍCIA
A sala de aula virtual simplesmente não consegue absorver todas as complexas relações que se estabelecem num ambiente universitário mais amplo. Sem contar que não se propõe a desenvolver habilidades e competências
Publicado em 23/10/2020
Por Marina Feferbaum e Guilherme Forma Klafke*: Quando a situação sanitária se agravou no Brasil, em meados de março, as instituições de ensino superior tiveram que interromper as aulas presenciais. Algumas optaram por antecipar as férias escolares, outras resolveram postergar ou suspender o semestre letivo e outras, como a FGV Direito SP, na qual lecionamos, adotaram um ensino 100% remoto, conforme autorizado pela regulação emergencial. Em comum a todas essas opções, observou-se o mesmo cenário de estudantes voltando para as casas dos familiares, deixando moradias estudantis e se despedindo, de uma hora para outra, do ambiente universitário.
Leia: Com a pandemia, 423 mil alunos deixaram de ingressar ou evadiram do ensino superior
Para reagir rapidamente à situação, docentes tentaram transferir os cursos e a dinâmica presencial para o ambiente virtual. Perceberam assim que as portas físicas das universidades se fecharam e que isso seria impossível, já que nem todos os professores e estudantes possuíam acesso à Internet de qualidade (ou mesmo qualquer acesso) e condições de infraestrutura e rotina adequadas para dar aulas ou cursá-las de forma mediada pela tecnologia.[1] Mas não foram apenas os efeitos da desigualdade social no ensino, com diversas consequências na modalidade presencial e escancaradas ainda mais na modalidade a distância, que impuseram dificuldades para a transposição.
Como fazer aulas de laboratório? Atendimento nos departamentos jurídicos? Atividades de extensão?
Num momento em que todos discutem a adoção de um ensino híbrido emergencial, que reúne ao mesmo tempo estudantes em salas de aula com medidas sanitárias e estudantes em plataforma virtual, achamos necessário dar um passo atrás e ponderar:
o que existe de significativo no ambiente universitário presencial e que não podemos perder de vista para pensar o futuro?
Leia: Olgária Matos: temos de nos organizar para começar a viver de outro jeito
Para entendermos o que existe de significativo no ambiente universitário presencial, começaremos explorando a tentativa de transposição do currículo para o ambiente on-line.[2] E aqui destacaremos dois elementos centrais a este novo momento: a sala de aula por videoconferência e os ambientes virtuais de aprendizagem.
Desde que a pandemia se instalou, estamos todos, docentes e discentes, compartilhando apenas um único espaço: o da sala de aula — eventualmente participando de grupos de mensagem instantânea ou interagindo em outras plataformas de rede social.[3] Todas as demais possibilidades de encontro com o outro também foram deslocadas para uma tela de computador ou simplesmente tolhidas: a lanchonete, o corredor, os intervalos entre as aulas, o almoço em grupo, o centro acadêmico. Você já parou para refletir sobre o simples fato de que agora os estudantes devem providenciar o próprio lanche para acompanhar as aulas? Ou a janta? Isso, claro, quando já não o faziam por razões financeiras.
Se pararmos para observar a transposição das dinâmicas de dentro e de fora da sala de aula para as videoconferências, identificaremos mudanças sutis com impactos muito mais profundos do que a discussão “câmera ligada” ou “câmera fechada”, que dominou e ainda domina grupos de WhatsApp de professores. Vamos a algumas dessas observações:
Leia: Universidades precisam se reinventar e buscar inovações disruptivas
No ambiente de sala de aula mediada pela tecnologia, o ensino centrado em informações acabou acentuando ainda mais o abismo entre professor e aluno. Se antes essa distância já existia, o fato de o ensino ser digital e o(a) discente poder escolher se assistirá à aula com a câmera aberta ou fechada, prestando ou não atenção, mexendo no celular ou tomando notas da aula, aumenta a insegurança e fragiliza ainda mais a relação. Com o ensino on-line, aumentam-se os obstáculos à construção de uma relação horizontal e de cumplicidade entre professor(a) e alunos(as). Essa relação, que já pode ser frágil, reduz-se à sala de aula e à boa (ou não) conexão de Internet. Nela, a maioria dos(as) estudantes escolhe literalmente não se expor nem participar.
Embora o primeiro espaço que venha à nossa mente seja a sala de aula, a universidade não se resume apenas a esse local. Mesmo sendo central na ideia de aprendizado e construção de conhecimento, reduzir a experiência do ensino superior a essas quatro paredes seria ignorar todos os outros espaços extraclasse fundamentais na formação de um profissional e cidadão.
É aqui que destacamos o segundo espaço de transposição on-line das dinâmicas curriculares: os ambientes virtuais de aprendizagem.
Por mais que eles possibilitem a realização de atividades e até mesmo, quando muito bem usados, a construção de comunidades de aprendizagem, a combinação de falta de experiência de professores com as ferramentas, falta de funcionalidades e falta de usos criativos os torna um espaço estéril, um repositório de conteúdos que não serão acessados e de avaliações que serão aplicadas em datas pré-definidas.
Compare-se com o corredor, o diretório acadêmico, a sala de fotocópia, a biblioteca, a lanchonete e mesmo o bar e as festas. Os contatos que acontecem nesses ambientes tornam a experiência de cursar o ensino superior muito mais rica e completa. É na relação com o outro que nos desenvolvemos e consolidamos nossas visões de mundo, ao mesmo tempo em que as descontruímos para reconstruí-las. Além disso, os espaços coletivos da universidade são espaços de construção coletiva e de construção de redes de contatos que, futuramente, poderão inclusive servir para propósitos profissionais.
O argumento de que “aprendi muito mais no bar do que na sala de aula” não é falacioso. Há competências e habilidades que são delegadas pelos professores, de maneira mais ou menos consciente, para espaços fora da sala de aula, como o estágio, as extensões e os coletivos. Interação com pessoas, capacidade de debater ideias, mobilização em torno de pautas, planejamento e execução de projetos são algumas das características desenvolvidas em outros lugares que não a sala de aula – ou o ambiente virtual de aprendizagem.
Contudo, com o ensino exclusivamente mediado pela tecnologia, que é o que estamos praticando desde o início da pandemia, os encontros em locais extraclasse foram tolhidos, inclusive estágios, departamentos jurídicos e extensão, além do intervalo das aulas, das manifestações, do agrupamento de coletivos para discussão e resistência.
Os espaços que a formação universitária oferecia se reduziram a um único lugar, uma sala de aula mediada pela tecnologia, da qual não se tem muito controle e que dificilmente se propõe a formar essas habilidades e competências.
Leia: Diário de uma professora: como o afeto é a única forma de não enlouquecer
É aqui que nossa argumentação chega ao seu grande twist. Abstraindo questões financeiras e políticas, queremos ardorosamente o retorno do ensino presencial porque a sala de aula virtual simplesmente não consegue absorver todas as complexas relações que se estabelecem num ambiente universitário mais amplo.
Se há quem não queira se matricular em cursos on-line, é porque o presencial tem algo de especial. Ao mesmo tempo, porém, se retornar ao ensino presencial significa a esperança de poder isolar novamente a sala de aula dessas demandas e possibilitar que a delegação para outros espaços continue, parece que estamos falhando em algo que ficou evidente neste período em que a aula era tudo. Se sentimos tanta falta do presencial quando o foco recai 100% na sala de aula, é porque esse espaço também não oferece e não está incorporando experiências que gostaríamos de ver fora dele – por exemplo, o debate na mesa do bar, os desafios do estágio ou o propósito nos projetos das extensões.
Para que o espaço universitário não se reduza no futuro a apenas o espaço de uma sala de aula, física ou digital, com relações verticais entre docentes e discentes, sem espaços para o desenvolvimento de relações entre os discentes, é importante que haja momentos presenciais, como o intervalo entre as aulas, as discussões aleatórias entre colegas e a interação com pessoas de outros cursos. Mas não é só do espaço extraclasse presencial que precisamos. Também é importante trazer um pouco dos aspectos positivos de fora da sala de aula para dentro da dinâmica de ensino e aprendizagem.
O debate de ideias, a construção de laços sociais, os pequenos rituais de motivação e recuperação psicológica não podem ficar do lado de lá.
Somente assim a universidade continuará sendo um espaço de ebulição, de pensamento crítico, de resistência, de conexão, de encontro com o outro, de possibilidades de transformação individual e coletiva.
Obs.: alertamos quem está lendo de que nossa ideia de currículo não se resume à grade de disciplinas de um curso, mas envolve um conjunto de diretrizes para a prática, ações (que constituem a própria prática) e, nesse sentido, interações sociais e visões individuais de mundo que marcam as relações entre as pessoas no espaço universitário. Para mais informações sobre isso, cf. Ramon Rebouças Nolasco de Oliveira. Educação Jurídica em Contextos de Inovação Pedagógica e Sociocultural: A Experiência Brasileira nas Perspectivas Docente e Discente da FD-UnB e UFERSA. Dissertação (Mestrado, Faculdade de Direito), UnB, 2019, p. 198-222. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/322683193.pdf.
Vale lembrar que, em alguns casos, nem esse espaço é compartilhado. Aulas são gravadas e transmitidas por meio de sites, como o YouTube, ou por meio dos ambientes virtuais de aprendizagem para os estudantes.
Assista: O impacto das tecnologias no curso de Direito
*Marina Feferbaum é coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP, onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação.
Guilherme Forma Klafke é líder de projeto no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV DIREITO SP (CEPI) e professor do programa de pós-graduação lato sensu da mesma instituição (FGVLAW).
[1] O CETIC.br publicará, em sua 3ª edição da pesquisa Painel TIC COVID-19, os números referentes a ensino remoto. Os resultados poderão ser conferidos na página da pesquisa, disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/tic-covid-19/.
[2] Alertamos quem está lendo de que nossa ideia de currículo não se resume à grade de disciplinas de um curso, mas envolve um conjunto de diretrizes para a prática, ações (que constituem a própria prática) e, nesse sentido, interações sociais e visões individuais de mundo que marcam as relações entre as pessoas no espaço universitário. Para mais informações sobre isso, cf. Ramon Rebouças Nolasco de Oliveira. Educação Jurídica em Contextos de Inovação Pedagógica e Sociocultural: A Experiência Brasileira nas Perspectivas Docente e Discente da FD-UnB e UFERSA. Dissertação (Mestrado, Faculdade de Direito), UnB, 2019, p. 198-222. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/322683193.pdf.
[3] Vale lembrar que, em alguns casos, nem esse espaço é compartilhado. Aulas são gravadas e transmitidas por meio de sites,como o Youtube, ou por meio dos ambientes virtuais de aprendizagem para os estudantes.
[4] Disponível em: https://spatial.chat/.
Procura por pós-graduação latu sensu mantém crescimento mesmo na pandemia
Ensino remoto: o planejamento das aulas é, mais do que nunca, uma necessidade