NOTÍCIA
Para os moradores de comunidades de São Paulo, ter uma bolsa 100% integral nunca foi sinônimo de acesso
Publicado em 12/03/2020
Por Vagner de Alencar Silva*
Aos 13 anos, ouvi da boca de Ivone, uma professora de língua portuguesa, o enunciado: “Coloco minha mão no fogo que você vai entrar na USP”. Eu cursava a quinta série do ensino fundamental em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo. Era a primeira vez que eu ouvi aquela sigla e compreendia seu verdadeiro significado: Universidade de São Paulo. A instituição de ensino superior mais importante do país.
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Naquele momento, porém, botar a mão no fogo me aludia apenas à minha mãe Osmilda. No povoado onde me criei em Barra do Choça, na Bahia, e onde moramos por boa parte de nossas vidas, Milda havia perdido todos os dedos da mão esquerda depois de enfiá-la em uma fogueira.
Para ela, universidade significava impossibilidade, afinal, nenhum de meus cem primos e vinte tios havia sequer ultrapassado o ensino fundamental. Minha mãe abandonou a escola na quarta série; enquanto meu pai Valmir não saiu da primeira. Ele aprendeu a escrever o nome completo e a ler com extrema dificuldade.
Apesar do estímulo de outros professores para além de Ivone, ainda era difícil vislumbrar outro caminho a ser percorrido senão o da passarela de tábuas à beira do esgoto em direção ao barraco de dois cômodos onde vivíamos na favela. Entendia o potencial suportado em meu corpo franzino, mas como mantê-lo firme ao ter ao meu redor dezenas de familiares e colegas analfabetos ou semianalfabetos?
Após descobrir o que era a USP, sem outras referências em casa ou na escola, passei a ver no “Show do Milhão”, programa de perguntas e respostas exibido no SBT entre 1999 e 2009, um caminho possível ao ensino superior. Queria um dia ser o universitário chamado pelo Silvio Santos para ajudar os candidatos a seguir rumo ao prêmio de R$ 1 milhão. Ou o candidato que buscava no quiz o dinheiro para pagar um curso em uma faculdade. Por meio do programa, de certo modo, talvez tenha preconcebido a ideia de que, para estudar, eu precisava pagar por isso.
Duas décadas após a declaração de Ivone, tenha sido ela um presságio ou não, tornei-me jornalista – não pela USP, mas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie –, mestre e agora doutorando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Nordestino, morador de uma das maiores favelas do Brasil, minha trajetória no ensino superior mostra como jovens periféricos estão chegando ao ensino superior, mas como o acesso e permanência são permeados de dificuldades em busca do diploma universitário.
Em agosto de 2008, os 74 pontos obtidos na prova do Enem me garantiram, por meio do ProUni (Programa Universidade Para Todos), uma bolsa integral no curso de jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, considerada uma das melhores instituições privadas do país. O ProUni havia sido lançado quatro anos antes pelo governo federal. Apenas naquele semestre, em São Paulo, outros mais de 30 mil jovens ocupavam vagas em universidades particulares, com bolsas integrais e parciais. De lá para cá, a iniciativa se tornou política pública e permitiu o ingresso de mais de 2 milhões de estudantes pobres brasileiros.
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É inegável a importância do programa para o acesso ao ensino superior de jovens de baixa renda como eu, apesar das inúmeras críticas de ele colocar estudantes dentro da universidade sem se preocupar com a educação básica.
De volta ao Mackenzie, a permanência, no entanto, seria o maior desafio. O curso, vespertino, me lançaria ao desafio de administrar não apenas o tempo, mas a disposição física e psicológica necessária para continuar os quatro anos da graduação.
Eu trabalhava como atendente de uma lanchonete na “Feira da Madrugada”, no Brás, região onde se concentra o maior polo comercial de São Paulo. Os rendimentos obtidos ali me permitiam pagar as despesas básicas e o aluguel da casa de dois cômodos compartilhada com um tio paterno e um primo materno, em Paraisópolis.
Para chegar à firma eu precisava acordar às 2 horas. Após o expediente, de 3h às 11h, eu seguia para o Mackenzie, na região central da capital. A rotina era exaustiva. Distante do seio familiar, era preciso cozinhar almoço e janta (para levar marmita à faculdade, quando era possível), lavar roupa e arrumar a casa. Dormir era uma raridade.
Os percalços seguiram com a venda do trailer no qual eu trabalhava. Desempregado, como eu conseguiria uma atividade remunerada sendo universitário de 13h às 18h?
Sem poder contar com a ajuda financeira de meu pai sequer para pagar meu transporte, afinal, ele mal conseguia fechar as contas no sustento de meus quatro irmãos, as circunstâncias me levavam ao trancamento da faculdade. A bolsa integral era fundamental, mas não o bastante.
Após um ano fazendo trabalhos informais como cadastrar correspondências em uma agência dos Correios e receber R$ 25 por dia, a permanência aconteceu devido ao primeiro estágio na Secretaria Executiva de Comunicação da Prefeitura de São Paulo. A entrevista para a vaga foi breve. A admissão foi imediata.
Assim que os meus novos chefes saíram da sala, eu chorei como quando acessei, dentro de uma lan house em Paraisópolis, a nota do Enem que poderia me levar ao banco de uma universidade.
O estágio era realizado por quatro horas na sede da Prefeitura onde eu seguia a pé para economizar o dinheiro da condução. Mais tarde, uma bolsa de iniciação científica me dava o luxo de, pelo menos uma vez por semana, trocar a marmita por um almoço em algum restaurante barato.
Desistir do jornalismo se tornava um verbo fora de conjugação. Da primeira experiência vieram outras: em uma editora de revistas segmentadas, uma emissora de TV, uma ONG de direitos humanos em Educação e, antes do término do curso, já repórter contratado por um instituto mantenedor de um site especializado em inovações educacionais.
O desemprego já não mais me assombrava. O jornalismo me permitia contar não apenas as histórias de outras pessoas como me dava a oportunidade de reescrever a minha trajetória. Antes mesmo de deixar para trás os muros do Mackenzie, recebi dois prêmios: o de “Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão”, do Instituto Vladimir Herzog, e de melhor trabalho de conclusão da faculdade de jornalismo pela produção de um livro-reportagem sobre o cotidiano dos moradores de Paraisópolis.
Formado, meu salário como repórter era dez vezes superior ao recebido quatro anos antes como atendente da Feira da Madrugada.
Danilo Rafael Nunes é o melhor amigo de minha irmã Wadila. Natural de Carapicuíba, região periférica da Grande São Paulo, aos 15 anos ele se mudou para Barueri, outra cidade da região metropolitana. Os dois se conheceram durante o ensino médio quando Wadila acompanhou meu pai e meus irmãos para o novo endereço.
Assim como eu, Danilo foi o primeiro da família a frequentar o ensino superior. Apesar de minha irmã achar que nós temos um senso de humor parecido, nossa maior semelhança estava no fato de perseguirmos o sonho de nos tornarmos jornalistas. “Desde criança, eu gostava de acompanhar as notícias na TV. Amava entretenimento, no geral, até que amadureci a ideia e decidi arriscar”, conta.
Danilo tinha 23 anos quando se percebeu percorrendo um caminho oposto ao trilhado por sua família. Pai, mãe e seus três irmãos sequer ultrapassaram a linha de chegada do ensino fundamental.
“Minha mãe é dona de casa e meu pai trabalhava como autônomo até conseguir se aposentar por invalidez devido a um problema na coluna”, diz. “Meu irmão mais velho abandonou a escola e agora está tentando um negócio próprio. O outro, de 20 anos, trabalha num sacolão para sustentar a filha de 5 anos, enquanto o mais novo, de 15 anos, tem problemas psicológicos e está afastado da escola por recomendação médica.”
De acordo com dados da Síntese de Indicadores Sociais 2019 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apenas 25,2% dos jovens brasileiros entre 18 e 24 anos estavam cursando ou já haviam terminado o ensino superior. Danilo passou a integrar desse índice ao tornar-se universitário em uma instituição privada.
“Optei por pagar. Entrei com a cara e a coragem. Prometi a mim mesmo dar um jeito de pagar. Na época eu tinha um trabalho informal. Em contrapartida, precisava ajudar em casa. Não sobrava nada. Precisa levar alguma coisa pra comer porque não tinha dinheiro pra comprar.”
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Como no meu caso, o desconhecimento da universidade no ensino fundamental ainda é um fator impeditivo para se chegar às instituições públicas. Atrelado a ele, muitos jovens se sentem excluídos – ou alimentam uma sensação de autoexclusão – por não vislumbrarem no ensino superior gratuito uma realidade possível. Daí sequer a tentativa de prestar o vestibular.
Para Danilo, a universidade pública era uma alternativa a ser descartada. A formação escolhida por ele está entre as 15 carreiras com maior relação de candidatos por vaga na USP – 29 pessoas competindo por uma cadeira. “Eu precisaria me dedicar integralmente, o que era impensável para mim.”
O sonho de Danilo em ser repórter durou três semestres. Acabou quando ele perdeu o emprego e ficou sem condições de pagar a mensalidade. “Pensei em ir na secretaria da faculdade, mas eles não podiam fazer muita coisa.”
Danilo pensa em voltar a estudar, embora ainda não saiba como. Apesar de gostar da área de comunicação, ele sabe que se um dia voltar ao ensino superior substituirá a expectativa versus a realidade. “Infelizmente vou pensar em uma área que, ao contrário do Jornalismo, possa me garantir ao menos um emprego e um salário, já que o mercado nessa área é difícil.” Hoje com 26 anos, Danilo trabalha como vendedor em uma loja de cosméticos e produtos de beleza, em Jandira, na Grande São Paulo. “Não tenho privilégios. Penso que para estudar eu precisaria ter pais ricos.”
O acesso à universidade por meio de programas como ProUni e Sisu (Sistema de Seleção Unificada), além do sistema de cotas, catapultou milhões de estudantes de classes baixas ao ensino superior, nos últimos anos. No entanto, segundo pesquisa do Datafolha, de 2016, realizado com jovens da Grande São Paulo, apenas 16% dos jovens da região prestaram vestibular, e uma parcela ainda menor, 5%, tentou a USP. É o caso de Danilo como também de Julia Borges, de 30 anos, que optou por pagar por um curso universitário assim que terminou o ensino médio.
Moradora da Vila Engenho Velho, também em Barueri, Julia assume ter tido uma história sem tantas pedras como Danilo. Filha única de Valdete Macedo, a matriarca foi a única dentre os irmãos, nascidos no agreste baiano, a cursar uma faculdade na área fiscal. “Sou privilegiada. Se minha mãe não tivesse essa formação, provavelmente minha história teria sido outra”, enfatiza ela ao revelar que recebeu ajuda financeira para pagar as mensalidades do curso por um ano.
Assim que terminou o ensino médio, Julia engatou a faculdade de gestão financeira e recursos humanos em uma universidade privada. Em menos de um ano, ostentava um salário alto para o cargo.
Tão logo terminou a faculdade, aos 20 anos, foi efetivada no emprego. “Arrumei um muito bom. Pagava mais do que costumavam pagar nessa área. Fiquei lá quase três anos. Me mandaram embora porque estava tendo corte. Como era mais nova, fui cortada.” Com o dinheiro da rescisão, Julia comprou um carro e planejou um intercâmbio para trabalhar e aprender inglês nos Estados Unidos.
De volta ao Brasil em maio do ano passado, ela diz estar tendo dificuldade para se recolocar no mercado de trabalho. “As empresas não estão dando ainda o devido valor. Estão dando preferência à experiência na área do que necessariamente ser fluente no idioma.”
“Se não fosse a faculdade, eu não teria arrumado estágio; sem ele eu não teria conseguido o emprego que permitiu ter grana para viajar, por exemplo. Com certeza, foi um grande empurrão.”
Única das primas a terminar a graduação, Julia diz incentivar as familiares mais novas. “Na minha família faculdade é ainda algo raro. Então sempre pergunto para minhas priminhas de 12, 13 anos o que querem estudar na faculdade. Na nossa geração continuar os estudos é, basicamente, algo obrigatório; o que dirá na delas, que têm 12, 13 anos.”
Meus irmãos mais novos pertencem à geração de Julia e à de suas primas. Apenas Wadila, hoje aos 28 anos, fez faculdade, de secretariado executivo, na Unip (Universidade Paulista). Atualmente, ela trabalha numa clínica dermatológica.
Ueslen, 24 anos, é analista administrativo e, por conta da experiência no emprego, trocou a vontade de estudar marketing ou cinema pela área de recursos humanos. Já meus irmãos gêmeos Daniel e Daniele, de 20 anos, mal concluíram o ensino médio e veem a faculdade ainda como um caminho distante a ser percorrido, apesar de agora me terem como espelho.
Amigo de Daniele, Wesley de Araújo Martins também tem 20 anos e mora na Brasilândia, região periférica da zona norte de São Paulo. Manobrista há pouco mais de um ano, ele precisou interromper o ensino médio – e não pensa em fazer faculdade.
“Não me vejo fazendo algo que a faculdade me proporcione. No momento quero fazer curso de vigilância ou controle de acesso. Acho um emprego basicamente fácil e que recebe bem em benefícios e salário, obviamente”, revela Wesley, que tem três irmãos, sendo um de “consideração” (do padrasto).
Em sua opinião, o diploma de ensino superior não está em seus planos por causa do contexto de sua família, onde muitos sequer concluíram o ensino básico. “Na verdade, acho que foi a maneira com que fui criado. Nunca cresci com intuito de entrar em uma universidade e também nunca fui muito fã de estudar.”
Casado há dois anos e meio, “não no papel”, o jovem diz que sonha ter estabilidade financeira para trocar a Brasilândia por Vancouver, no Canadá. Ao lado de Vanessa Soares Ferreira, 21 anos, a renda do casal ganha reforço com o trabalho dela como vendedora em um shopping na Lapa, na zona oeste.
A opção pelo Canadá se deve ‘“basicamente por ser um país de primeiro mundo e também por ser um país frio. Eu amo frio, ao contrário da minha esposa”, revela Wesley, emendando: “Acho que vou depender muito do Google tradutor”.
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Também primogênita de dois irmãos, Jackline Venceslau nasceu em São Paulo, mas cresceu na periferia de Guarulhos, em um dos bairros mais pobres da região metropolitana de São Paulo. “Nossa família nunca teve muita grana, mas meus pais sempre trabalharam muito para poder suprir todas as nossas necessidades. Eles nunca puderam custear educação básica privada, mas tentavam pagar aqueles cursinhos bem básicos de inglês e informática para que eu pudesse arrumar um emprego melhor no futuro.”
O investimento deu certo. Esse contexto foi fundamental para conseguir a minha primeira oportunidade no mercado de trabalho. “Fui jovem aprendiz em uma multinacional, aos 16 anos.” “Meus pais sempre cobraram boas notas de nós. Estudei desde a 1ª série do ensino fundamental até o último ano do ensino médio na Escola Estadual Maria Aparecida Felix Porto, na mesma rua da minha casa.”
Em 2014, durante o 2º ano do ensino médio, Jackline começou a frequentar as aulas do cursinho comunitário Pimentas Unifesp, localizado a dez minutos de distância de sua casa. O conteúdo foi essencial para suprir a defasagem de ensino da rede estadual. “Decidi prestar o Enem no mesmo ano e consegui ser aprovada em Comunicação Social na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mas meus pais não deixaram eu me matricular.”
Ela tinha 16 anos, e para eles era ainda era muito nova para se virar sozinha em outro estado. Os custos também eram altos demais para a situação financeira da família. “Precisei estudar mais um ano, prestar o Enem novamente em 2015. Foi aí que consegui uma bolsa, no ProUni, para estudar Jornalismo no Complexo Educacional FMU | FIAM FAAM, na cidade de São Paulo.”
A partir de vivência com o cursinho e também com amigos aprovados em universidades públicas, sendo jovens periféricos e oriundos de cursinhos populares como ela, Jackline decidiu se aprofundar nesse tema em seu trabalho de conclusão de curso. “Ainda se fala pouco sobre esses jovens na mídia. Quando acontece, eles tratam apenas de números, e nunca de suas histórias.”
Durante a produção do livro-reportagem, Jackline entrevistou seis jovens de diferentes periferias paulistas. “Pude ter uma dimensão de quanta diversidade existe nas periferias e conhecer pessoas que, apesar de terem vindo de realidades aparentemente parecidas, seguiram caminhos totalmente diferentes, mesmo com objetivos comuns.”
Para a jornalista graduada em dezembro de 2019, esses jovens conseguiram reverter o aprendizado e as conquistas deles em algo em benefício à própria periferia. “Todos eles disseram ter planos que contribuir com a formação dos mais jovens, trabalhando como docentes, dando aulas na rede pública ou nos cursinhos comunitários. Literalmente nós por nós!”.
Para Jackline, o ProUni foi essencial para o acesso ao ensino superior, bem como o Passe Livre Estudantil, benefício oferecido para quem não pode pagar pelas passagens de ônibus, metrô ou trem na cidade de São Paulo, criado durante a gestão do prefeito Fernando Haddad (PT). Os custos de deslocamento chegaram a R$ 22,90, por dia, no último ano de curso.
Vale lembrar, o ProUni foi pensado para ser um programa de curta duração, com a expectativa de alcançar pelo menos 30% de jovens entre 18 e 24 anos matriculados e cursando o ensino superior.
Outra meta do programa era aumentar o ingresso à graduação de modo que não fosse necessário aumentar o orçamento de gastos públicos, já que as vagas ocupadas não são novas, mas ociosas das universidades particulares. Hoje é impossível negar que essa política pública permitiu, de maneira substancial, o acesso de estudantes pobres da rede pública às instituições superiores de ensino privado. Essa discussão avançou ao longo de minhas aulas no doutorado em Educação: História, Política, Sociedade, na PUC-SP, e nas conversas com colegas pesquisadores e professores que afirmam que, como em tantas outras ações afirmativas, o programa também é falho ao deixar de ser uma alternativa, paliativa, para ser uma solução, definitiva.
Além disso, ao longo da última década, o ProUni sofreu transformações, o que, para especialistas, permitiu alterações em favor das instituições privadas e de seus interesses. “As ações afirmativas surgiram para tentar solucionar um problema histórico no país. Como a nação é desigual, as políticas públicas acabam se tornando falhas, o que, de maneira bem clara, se torna uma forma de ‘tapar o sol com a peneira’. O ProUni coloca estudantes dentro da universidade sem se preocupar com a educação básica”, afirma a professora de Educação da PUC Leda Maria de Oliveira Rodrigues.
Adriano Magalhães, 42 anos, mora no Jardim Ângela, periferia do extremo sul da capital paulista, desde que nasceu. Depois de nove anos afastado dos estudos, Adriano decidiu procurar um cursinho para entrar na universidade, estudou por três anos e passou em Matemática na USP (Universidade de São Paulo). Atualmente trabalha fazendo cálculo de projeto e orçamento técnico e cursa a segunda graduação em Engenharia na Unisa (Universidade Santo Amaro).
“Foi difícil! O curso era de cinco anos, mas consegui fazer em oito anos e meio. Quem entra e não tem uma base muito sólida tem dificuldade para acompanhar quem teve um outro ensino. Eu tinha que trabalhar e estudar. Era puxado. Até pegar o ritmo da faculdade e encontrar professores para orientar da melhor maneira… Demorou bastante para engrenar.”
Depois que entrou na universidade, Adriano diz que muita coisa mudou. Assim como Julia, a faculdade impactou sua vida profissional. Poucos meses depois da graduação, ele recebeu uma promoção.
“Meus pais me apoiaram, foi novidade; dos quatro filhos eu fui o primeiro a fazer uma faculdade. Depois meus dois irmãos mais novos também decidiram fazer uma graduação. Minha esposa me apoiou muito também. Depois que me formei, ela começou a estudar Administração, pois quando eu comecei meu filho tinha três anos e ela preferiu deixar para depois”, comenta.
Ao contrário de você, meu pai não vai conseguir ler esta reportagem. A gente costuma se falar pelo áudio do WhatsApp. Talvez ele se emocione com o texto, que pode ser lido por meu irmão mais novo que ainda vive com ele.
Há oito anos, do alto do auditório Rui Barbosa, em minha colação de grau no curso de Jornalismo no Mackenzie, sem qualquer pudor, Val deixou as lágrimas inundarem seu rosto negro por causa do filho formado.
De lá para cá, além da graduação, do mestrado ao doutorado, publiquei o livro Cidade do Paraíso – há vida na maior favela de São Paulo, sobre o dia a dia de Paraisópolis, participei de dezenas de eventos como palestrante, dei um curso sobre comunicação em uma faculdade, fui escolhido pela Embaixada Americana para representar o Brasil no mais importante intercâmbio profissional do Departamento de Estado dos Estados Unidos, e viajei até para o Nepal, na Ásia, para mostrar meu trabalho na Agência Mural de Jornalismo das Periferias.
A faculdade mudou a minha vida. Meu pai sempre soube ler o mundo, mesmo sendo cego para as letras. E eu, conhecedor das letras, agora caio no mundo para continuar a escrever não apenas a minha história, mas a nossa, e a de tantos outros Silvas como nós.
*Vagner de Alencar Silva, 32 anos, é cofundador da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
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