NOTÍCIA
Para fundador da psicanálise para crianças na Grã-Bretanha, o bom funcionamento do laço com a mãe é questão-chave para organização sadia do eu
Publicado em 15/03/2017
Com postura independente sem por isso deixar de ser solidário, o médico e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971) afirmava não gostar de seitas, de discípulos, de imitadores. Mostrando-se transgressor em sua prática clínica e, ao mesmo tempo, rigoroso em suas concepções teóricas, Winnicott não hesitou em apoiar os rebeldes e os dissidentes – principalmente Ronald Laing (1927-1989), um dos artífices da antipsiquiatria, e Melanie Klein (1882-1960), elaboradora de uma forte crítica ao freudismo clássico. Deixou uma herança conceitual fundamental para a psicanálise, embora nunca tenha fundado escola ou corrente.
A partir de 1923, orientou-se para a pediatria e para a psicanálise. Nesse ano, foi nomeado médico assistente no Paddington Green Children’s Hospital, lugar que ocuparia durante 40 anos, tratando de mais de 60 mil crianças e adolescentes. Após um divórcio complicado do primeiro casamento com uma ceramista, internada várias vezes em hospitais psiquiátricos, Winnicott se casou com Clare Britton, uma assistente social que se tornou psicanalista e professora brilhante. O casal não teve filhos.
Foi o fundador da psicanálise de crianças na Grã-Bretanha, antes da chegada a Londres de Melanie Klein. No centro do intenso conflito entre Anna Freud (que tinha uma concepção “pedagógica” da psicanálise de crianças) e Melanie Klein (cuja prática clínica era centrada nos jogos e na observação das psicoses primitivas, segundo ela presentes em todas as crianças), Winnicott foi afirmando sua independência. Embora admirasse Melanie Klein, com quem se submeteu a uma supervisão, entre 1935 e 1941, recusou-se a cumprir suas exigências. Assim, quando ela quis obrigá-lo a analisar seu filho Erich, para ela mesma supervisionar o tratamento, ele aceitou ser o analista do garoto, mas sem nenhum tipo de supervisão. Contudo, foi no grupo kleiniano que ele e sua esposa se agregaram, sendo fortemente influenciados por Klein.
Em sua obra Da psiquiatria à psicanálise, publicada em 1958, apresentou o conjunto de suas posições teóricas. Ao contrário de Melanie Klein, interessava-se menos pelos fenômenos de estruturação interna da subjetividade do que pela dependência do sujeito em relação ao ambiente. Não aceitava a explicação freudiana da agressividade como decorrente da pulsão de morte e definia a psicose como um fracasso da relação materna. Segundo ele, era o “bom funcionamento” do laço com a mãe que permitia à criança organizar o seu eu de maneira sadia e estável.
O tema da brincadeira já fora abordado por Freud, que afirmou que, ao brincar, a criança tem prazer na aparente onipotência que adquire ao manipular os objetos cotidianos, associando-os a símbolos imaginários, como no jogo do fort-da (uma espécie de escondeesconde), que evocava a rememoração da presença e da ausência da mãe. Não há dúvidas, porém, de que foi Melanie Klein quem efetivamente trouxe a brincadeira para o trabalho com crianças. Ela reconhecera um paralelismo entre a atividade lúdica infantil e o sonho do adulto, e entre as verbalizações da criança ao brincar com a associação livre clássica. Discípulo de Klein, Winnicott redimensionou a brincadeira, situando o brincar como fundamental para o trabalho com crianças, reconhecendo o valor que essa atividade possuía em si, instituída como atividade insubstituível do mundo infantil, mas que também fazia parte do mundo adulto. Para ele, “brincar é algo além de imaginar e desejar; brincar é o fazer”.
Foi a partir do trabalho durante a Segunda Guerra com crianças refugiadas, muitas delas privadas da presença materna, que Winnicott desenvolveu um conjunto de novas intervenções clínicas e teóricas. Em sua opinião, a dependência psíquica e biológica da criança em relação à mãe tem uma importância considerável. Daí o célebre aforismo de 1964: “O bebê não existe”. Para ele, o lactente nunca existe por si só, mas sempre e essencialmente como parte integrante de uma relação. Se a mãe estiver incapaz, ausente ou, pelo contrário, demasiadamente intrusiva, a criança desenvolverá depressão ou condutas antissociais, como o roubo ou a mentira, que são maneiras de reencontrar, inconscientemente, uma “mãe suficientemente boa”.
A partir de 1945, a obra winnicottiana tomou importância no mundo anglófono, na medida em que as mulheres foram estimuladas a voltar ao lar, depois do esforço de guerra, e em que os homens retornaram à vida civil. Winnicott tornou-se uma figura popular em seu próprio país, depois de fazer, entre 1939 e 1962, cerca de 50 conferências radiofônicas na BBC, quase todas dirigidas aos pais.
Ele tinha uma verdadeira paixão pela infância, como mostra o relatório do tratamento da “pequena Piggle”, publicado depois da sua morte. A menina tinha dois anos quando foi paciente de Winnicott. Ele a viu durante três anos, a pedido, e fez com ela dezesseis sessões memoráveis. Sua técnica psicanalítica sempre esteve em contradição com os padrões da IPA (Internacional Psychoanalytical Association). Winnicott não respeitava nem a neutralidade nem a duração das sessões, e não hesitava em manter relações de amizade calorosa com seus pacientes, reencontrando sempre a criança neles e em si mesmo. Via na transferência uma réplica do laço materno. Assim, oferecia a seus analisandos um “ambiente” especial. Às vezes, tomava-os nos braços e prolongava a sessão durante três horas. Dedicou a sua última obra, O brincar e a realidade, aos seus pacientes, que “pagaram para me ensinar”. Morreu subitamente de problemas cardíacos em 1971. Ele dizia: “Quero estar vivo na hora da minha morte” – e seu desejo, de fato, se realizou, pois, embora padecesse de problemas cardíacos há várias décadas, a morte o surpreendeu enquanto ele exercia todas as suas atividades rotineiras.
A mãe suficientemente boa e o ambiente
Para Winnicott, cada ser humano traz um potencial inato para amadurecer, para se integrar; porém, o fato de essa tendência ser inata não garante que ela realmente vá ocorrer. Isso dependerá de um ambiente facilitador que forneça os cuidados de que precisa. No início da vida, esse ambiente é representado pela mãe suficientemente boa. É importante ressaltar que esses cuidados dependem da necessidade de cada criança, pois cada ser humano responderá ao ambiente de forma própria, apresentando, a cada momento, condições, potencialidades e dificuldades particulares.
A mãe suficientemente boa não é necessariamente a própria mãe do bebê, mas quem efetua uma adaptação ativa às necessidades dele. Possíveis dificuldades da mãe em olhar para o filho como diferente dela, com capacidade de alcançar certa autonomia, podem tornar o ambiente desfavorável para aquela criança amadurecer. Não basta, apenas, que a mãe olhe para seu filho com o intuito de realizar atividades mecânicas e práticas (por exemplo, alimentação e higiene) que supram as necessidades dele; é necessário que ela perceba como fazer para satisfazê-lo em suas necessidades emocionais e possa reconhecê-lo em suas particularidades.
O holding
A capacidade da mãe de identificar-se com seu filho permite satisfazer a função sintetizada por Winnicott na expressão holding. Ela é a base para o que gradativamente se transforma em um ser que experimenta a si mesmo. A função do holding é fornecer apoio egoico, em particular na fase de dependência absoluta antes do aparecimento da integração do ego. O holding inclui principalmente o segurar fisicamente o bebê, que é uma forma de amar; contudo, também se amplia a ponto de incluir o ambiente e o conceito de “viver com”, isto é, de proporcionar ao bebê vivências como uma pessoa separada, que se relaciona com outras pessoas separadas dele.
A mãe, ao tocar seu bebê, manipulá-lo, aconchegá-lo, falar com ele, e, principalmente ao olhá-lo, se oferece como espelho no qual o bebê pode se ver.
O holding é necessário desde a dependência absoluta até a autonomia do bebê. Resumidamente, o holding são as ações que protegem da agressão fisiológica, levam em conta a sensibilidade cutânea do lactente – tato, temperatura, sensibilidade auditiva, sensibilidade visual, sensibilidade à queda (ação da gravidade) e defendem o bebê da falta de conhecimento da existência de qualquer coisa que não seja ele mesmo. Inclui a rotina completa do cuidado dia e noite, que não pode ser o mesmo para dois lactentes, que nunca são iguais.
O objeto transicional
No curso “normal” da vida, o bebê naturalmente passará da “dependência absoluta” para a “dependência relativa”, o que é essencial para seu amadurecimento.
O amadurecimento exige que, vagarosamente, algo do mundo externo se misture à área de onipotência do bebê. Ser capaz de adotar um objeto transicional (um brinquedo, um paninho, qualquer objeto em particular de que a criança goste) já anuncia que esse processo está em curso. O bebê está passando para a dependência relativa.
No início da passagem da dependência absoluta para a dependência relativa, os objetos transicionais exercem a indispensável função de amparo, por substituírem a mãe que se desadapta e desilude o bebê.
Na progressão da dependência absoluta até a relativa, Winnicott definiu três realizações principais: integração, personificação e início das relações objetivas.
O bebê vai desenvolvendo meios para poder prescindir do cuidado maternal, por meio da acumulação de memórias de maternagem, da projeção de necessidades pessoais e da introjeção dos detalhes do cuidado maternal, com o desenvolvimento da confiança no ambiente.
É importante ressaltar que, segundo Winnicott, a independência nunca é absoluta. O indivíduo sadio não se torna isolado, mas se relaciona com o ambiente de tal modo que ambos se tornam interdependentes.
> O brincar e a realidade, de Donald Winnicott. Rio de Janeiro, Imago, 1975.