NOTÍCIA
Gabriel Perissé escreve sobre a imortalidade de poetas e professores - na vida e na consciência dos seus alunos
Publicado em 27/01/2017
A poesia é sempre um grito contra a morte. A arte em geral luta contra a mortalidade, mas a poesia tem algo de especial. A poesia é uma palavra retirada do fluxo cotidiano e reapresentada sob uma nova luz. Os poetas não sabem morrer.
Recentemente, o falecimento do poeta Ferreira Gullar (1930-2016) não foi totalmente verdadeiro. Aconteceu, mas não aconteceu. Gullar se foi, mas continua em forma de poesia. Continua na leitura que façamos de sua obra.
Essa imortalidade se verifica quando os leitores trazem o poeta de novo para o encontro e para a interpretação. O diálogo da leitura é experiência renovadora da vida poética. E é aprendizado:
APRENDIZADO
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
(do livro Barulhos, de 1987)
O realismo da poesia não deveria ser subestimado. As palavras “desarrumadas” na página nos retiram do ritmo prosaico. As palavras pulam para outros lugares para que nossa visão pule também, e pule junto com elas nossa compreensão.
A vida docente é aprendizado. Como expressou Pedro Demo, “a principal função do professor é aprender”. Aprendemos na alegria e na dor. Os fracassos de nossos alunos, as dificuldades do ambiente escolar, as carências e as perdas, tudo isso deveria nos fazer aprender que mentiras, desculpas e ilusões não têm lugar, não deveriam ter lugar. São um tipo de corrupção.
MENTIRAS, DESCULPAS E ILUSÕES
O “avesso ardente” da alegria, das experiências positivas e entusiasmantes, é a consciência do muito a se fazer.
É mentira que a educação seja prioridade para além dos discursos demagógicos. É mentira que os professores sejam valorizados, se os valores salariais são insuficientes. É mentira que a preocupação seja educar a todos, se muitos desses “todos” vão sendo expulsos de modo silencioso e cínico da sala de aula.
Desculpas não resolvem culpas. Em lugar das desculpas, a responsabilidade. Não há desculpas para não dedicar tempo aos alunos. Não há desculpas para reproduzir os erros antigos que a pedagogia já resolveu: pensemos nas avaliações que não avaliam de fato.
Ilusões devem transformar-se em desilusões. A poesia pede que mergulhemos na realidade. É dentro dela que nos perdemos e nos achamos. Cada novo encontro em sala de aula é a oportunidade de viver intensamente, de aprender e ensinar com verdade.
A verdade da vida: a vida só consome o que a alimenta. Isto é, aprendendo com todas as experiências, damos sentido à vida.
A GRAÇA DE VIVER
OS MORTOS
os mortos veem o mundo
pelos olhos dos vivos
eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias
Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça
(do livro Muitas vozes, de 1999)
Este outro poema de Ferreira Gullar é outro grito contra a morte. O poeta não morre enquanto nós estivermos vivos, vendo, ouvindo e rindo com ele. A palavra “graça” está no campo do humor e da salvação. A gratuidade será cultivada, a beleza nos salvará, como sabem todos os artistas.
Também na vida docente existe uma morte não consumada. Professores sempre sobrevivem na vida dos seus alunos. Não estou recaindo no romantismo pedagógico, que mais prejudica do que resolve. É um fato que, mesmo ausentes de corpo e alma, os professores permanecem vivos na consciência dos alunos.
E é a essa consciência que, enfim, nos reportamos. A consciência é o conhecimento que conhece seu alcance e seus limites. Os golpes que recebemos não devem nos abater. Devemos ocupar. Ocupar a vida sem permitir que nos roubem a alegria. Poetas e professores não sabem morrer.